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2.1 Gramaticalização na teoria funcionalista

2.1.1 Conceito de gramaticalização

O conceito de gramaticalização será discutido a partir das definições de autores distintos. São eles: Meillet (1912), Dubois (1973), Heine, Claudi e Hunnemeyer (1991), Givón (1991), Hopper e Traugott (1993), Martelotta, Votre e Cezario (1996), Castilho (1997) e Bybee (2001).

A gramaticalização pode ser entendida em termos diacrônicos e/ou sincrônicos. No Dicionário de Linguística, Dubois (1973) define a perspectiva diacrônica, “fala-se de gramaticalização quando um morfema lexical, durante a evolução de uma língua em outra, tornou-se um morfema gramatical”. Os estudos diacrônicos investigam a origem das formas gramaticais e o caminho que essas percorrem no sentido da mudança, numa trajetória em que itens lexicais se tornam gramaticais e itens gramaticais se tornam mais gramaticais. É o caso, por exemplo, de mens, mentis, palavra latina do ablativo mente, que se tornou em português um sufixo de advérbio de modo, como docemente, violentamente, bobamente, etc.

Na perspectiva sincrônica, a gramaticalização é vista como um fenômeno primariamente sintático-discursivo-pragmático (HOPPER E TRAUGOTT, 1993, p. 2). Para Hopper e Traugott (1993), a gramaticalização é o processo por meio do qual itens e construções lexicais, em um determinado contexto linguístico, desempenham funções gramaticais, e uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Os autores usam o termo gramaticalização quando o processo é analisado numa perspectiva diacrônica e gramaticização quando é estudado dentro de uma perspectiva sincrônica. O termo pancronia é usado para designar uma abordagem do fenômeno da mudança de um determinado elemento linguístico na sua trajetória através do tempo. Tal termo é considerado uma combinação das duas perspectivas: a diacrônica, já que envolve mudança, e a sincrônica, já que implica variação.

Nas abordagens mais recentes, tem sido significativa a quantidade de estudos que aliam a diacronia e a sincronia, numa visão pancrônica. Furtado da Cunha et al. (2003) propõem a adoção de uma visão pancrônica do fenômeno, uma vez que as mudanças, ao longo do tempo, explicam alterações sincrônicas; envolvem o sistema e o uso. A adoção de apenas uma das abordagens não permite a observação da “natureza sistemática e estável das relações polissêmicas, dos usos e das construções em que se encontram os itens focalizados” (FURTADO DA CUNHA et al., 2003, p. 73). Nessa perspectiva, se detectam processos de mudança de um determinado elemento linguístico na sua trajetória através do tempo, isto é, através de várias sincronias, e se observam, na atual, os sentidos e usos adquiridos sem perda dos antigos.

Neves (1997), discorrendo sobre as divergências nos estudos da gramaticalização, diz que a primeira delas relaciona-se justamente à avaliação do campo primário no qual o fenômeno se enquadra: “diacronia ou sincronia?”. E introduz, na discussão, a posição pancrônica:

Uma posição pancrônica, como diz Burridge (1993), referindo-se a Lichtenberk (1991), acentua a interdependência entre o sistema linguístico e o uso, e entre a natureza fluida da gramática e a importância da história para a compreensão da gramática sincrônica; ou, como ainda diz Burridge (op. cit.) em referência a Nichols e Timberlake (1991), enfatiza “a natureza interativa das forças inovativas e idiomatizantes” (p. 144), rejeitando a noção de gramaticalização como um processo que vai para ossificação, ou idiomatização. (NEVES, 1997, p. 118)

Mais adiante, a autora avalia que a questão “diacronia” versus “sincronia” está ligada à questão “caráter gradual” versus “caráter instantâneo” da gramaticalização. Sobre o caráter gradual, ela diz o seguinte:

Se considerado do ponto de vista histórico, o processo é gradual: o que ocorre é que, embora se possa encontrar, num determinado momento, uma estrutura substituindo completamente outra, por um considerável período de tempo coexistem a forma nova e a velha, que entram em variação, sob diversas condições; e essa variação encontrada nada mais é do que o reflexo do caráter gradual da mudança lingüística. (NEVES, 1997, p. 118)

Tendo em vista o modo gradual pelo qual as mudanças sofridas pelos itens em processo de gramaticalização ocorrem, associamos o processo a estudos diacrônicos que estejam preocupados em observar o desenvolvimento das formas gramaticais desde a sua origem e a processos sincrônicos que estejam preocupados em observar um fenômeno em um determinado período.

Para se referir ao “caráter instantâneo” da gramaticalização, a autora se apoia em Givón (1991):

Explicando a gramaticalização vista na diacronia, Givón (1991, p. 122) mostra que uma construção pode desenvolver-se gradualmente no tempo: por exemplo, no caso dos verbos seriais, que ele estuda, orações independentes finitas podem chegar a uma gramaticalização plena, com passagem por estágios diversos. Do ponto de vista cognitivo, entretanto, segundo Givón (que se concentra, em particular, nas correlações entre “empacotamento” temporal e processamento da informação nessas construções com verbos seriais), a gramaticalização é um processo instantâneo, envolvendo um ato mental pelo qual uma relação de similaridade é reconhecida e explorada: por exemplo, pode-se dar a um item primitivamente lexical um uso gramatical, em um novo contexto; e no momento mesmo em que, num determinado esquema, um item lexical está sendo usado como marca gramatical, ele se gramaticaliza. (NEVES, 1997, p. 119)

A partir dos estudos feitos, compreendemos de modo mais efetivo o fenômeno da gramaticalização. Elencamos diferentes concepções de gramaticalização, ancoradas em alguns pesquisadores, a fim de caracterizar esse termo. Vejamos algumas delas:

Hopper e Traugott (1993, p. 14) consideram a gramaticalização como o processo por meio do qual itens e construções lexicais em certo contexto linguístico desempenham

funções gramaticais, e uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais.

O conceito de Hopper e Traugott (1993) inclui a noção de “processo”, não incluída no conceito de Traugott (2001) que considera gramaticalização um tipo de mudança na qual, itens lexicais e construções desempenham, em determinados contextos linguísticos, funções gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções gramaticais.

Hopper (1991), ao caracterizar o fenômeno da gramaticalização, apresenta algumas noções básicas para a concepção de gramática. Segundo ele, a gramática de uma dada língua é emergente. O termo “emergente” da designação “gramática emergente” traz a noção de caráter provisório, transitório, fluído da estrutura da língua, algo adiado, negociável na interação real, cujo processo de formação nunca está concluído. Para essa concepção a gramática emerge a partir do discurso e da produtividade dos falantes. Seu propósito contraria o pressuposto de que as línguas residem em estruturas organizadas em regras sistemáticas e completas. Hopper (op. cit.) nega a imagem da língua como um sistema abstrato, fixo, pré- discursivo, sustentado por um conjunto fechado de regras. A visão de gramática emergente de Hopper (op. cit.) considera que a construção da gramática dá-se apenas pelo discurso, e o aparecimento de novos itens gramaticais não obedece a determinadas “leis” da língua, dependendo apenas da criatividade do falante.

O conceito de Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991, p. 2) expõe um grande problema, que é definir o que é “mais gramatical”. Para Heine, Claudi e Hunnemeyer (1991) existe gramaticalização quando uma unidade lexical assume uma função gramatical, ou quando uma unidade gramatical assume uma função mais gramatical. Tal definição é vista como clássica e aceita por muitos linguistas.

Gramaticalização consiste na ampliação dos limites de um morfema que avança de um status lexical para um gramatical ou de um menos gramatical para um mais gramatical, isto é, de um formante derivacional para um flexional. (HEINE, CLAUDI e HUNNEMEYER (1991, p. 3)12

Martelotta, Votre e Cezario (1996) designam gramaticalização um processo unidirecional segundo o qual itens lexicais e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais.

12 “Grammaticalization consists in the increase of the range of a morpheme advancing from a lexical to a

grammatical or from a less grammatical to a more grammatical status.” (HEINE, CLAUDI e HUNNEMEYER 1991, p.3)

Traugott e Heine (1991) entendem que a gramaticalização é um tipo de mudança linguística sujeita a certos processos gerais e mecanismos de mudanças, caracterizada por certas consequências, como, por exemplo, a mudança na gramática.

De acordo com Bybee e Hopper (2001, p. 13) a gramaticalização é o mecanismo pelo qual as estruturas emergem a partir da língua em uso. Bybee (2001) caracteriza a gramaticalização pelo aumento da frequência de uso de uma palavra ou construção que aumenta a possibilidade/probabilidade de expansão do seu sentido, com decorrências morfossintáticas e morfofonêmicas.

Castilho (1997) entende por gramaticalização:

O trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do qual ele muda de categoria sintática (= recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer, como consequência de uma cristalização extrema (CASTILHO, 1997, p.7)

Para Neves (2006, p. 20) a gramaticalização é:

um processo que tem encontrado abrigo privilegiado no funcionalismo (….) exatamente porque reflete a relação entre o sistema gramatical e o funcionamento discursivo, ou seja, porque se explica pela interação entre as motivações internas ao sistema e as motivações externas a ele. (NEVES, 2006, p.20)

Outros termos são usados como sinônimos de gramaticalização, mas, em geral, não são aceitos como termos adequados para descrever o processo em si, por se referirem apenas a certas características semânticas ou sintáticas da gramaticalização: “reanálise”, “sintaticização” (GIVÓN, 1979), “esmaecimento semântico”, “enfraquecimento semântico” (GUIMIER, 1985), “condensação” (LEHMANN, 1982), “redução” (LANGACKER, 1977).

Vimos que existem várias definições e formas de nomear esse processo, como “Gramaticização (GIVÓN, 1975) e “Gramatização” (HEINE, CLAUDI E HÜNNEMEYER, 1991), sendo que "Gramaticalização” é o termo mais usado. Também existem características que são comuns a muitas definições de gramaticalização. São elas: 1) A gramaticalização é concebida como um processo: diacrônico, sincrônico e pancrônico; 2) A gramaticalização é aplicada em toda espécie de domínio, incluindo o fonológico, mas muitos estudiosos tratam a gramaticalização como uma noção morfológica, isto é, que diz respeito apenas ao desenvolvimento de uma dada palavra ou morfema; 3) A unidirecionalidade da mudança, tanto sintática como semântica, é apontada como uma propriedade caracterizadora de gramaticalização. A ideia de unidirecionalidade perpassa todas as definições e está implícito

em muitas definições que a unidirecionalidade do processo é devido ao fato de a mudança partir de uma unidade menos gramatical para uma unidade mais gramatical e não ao contrário. De acordo com as definições de gramaticalização apresentadas, podemos dizer que o processo de gramaticalização pode ser encontrado em todas as línguas e pode envolver qualquer tipo de função gramatical. Um item lexical ou uma construção sintática se gramaticaliza quando, ao ser empregado em nova função, passa a assumir um novo status como elemento gramatical, tendendo a se tornar mais regular e mais previsível, de acordo com motivações pragmáticas e de repetição de uso. Através desse processo, itens lexicais e construções sintáticas passam a assumir funções referentes à organização interna do discurso ou a estratégias comunicativas. É um processo unidirecional através do qual esses elementos, em determinados contextos, assumem funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver outras funções gramaticais.

São atribuídos ao paradigma da gramaticalização os seguintes fenômenos (MARTELOTTA, VOTRE e CEZARIO, 1996):

• a trajetória de itens lexicais de valor semântico X para valor semântico Y;

• a trajetória de itens lexicais de uma categoria léxica X para uma categoria léxica Y;

• a trajetória de elementos linguísticos em condição menos gramatical para uma condição mais gramatical;

• a trajetória de elementos linguísticos do léxico à gramática;

• a trajetória de elementos linguísticos de uma condição mais referencial para uma condição menos referencial.

Todas essas propostas de trajetória se apresentam de um ponto de chegada a um ponto de partida e surgem de constatações empíricas, não podendo prevê-las enquanto o elemento em análise não entrou no processo.