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O CONCEITO DE IDENTIDADE EM QUESTÃO E O CASO DE ITUETA, MG

CAPÍTULO 1: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2. O CONCEITO DE IDENTIDADE EM QUESTÃO E O CASO DE ITUETA, MG

Conforme nos aponta Hall (2007) o conceito de identidade tem sido alvo de muitas discussões, ao mesmo tempo que tem sofrido severas críticas. A crítica principal que tem sido feita a esse conceito diz respeito à idéia de uma identidade que possui traços/características relacionadas à fixidez, à integralidade, unicidade, etc. isto é, aquela concepção de identidade imutável e acabada.

Dessa forma, Hall (2007) cita o tipo de crítica que não elimina totalmente o conceito de identidade como até então era concebido, mas aponta que a perspectiva desconstrutiva da identidade a coloca “sob rasura”. Em suas palavras indica que:

[...] A identidade é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma idéia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas. (HALL, 2007, p. 105).

Segundo Hall (2007), os novos significados do conceito de identidade remetem às características de ser estratégico e posicional, que rompe com a representação de um eu estável que não sofre as influências externas e nem mesmo passa por mudanças que acompanham os diferentes períodos históricos. Como argumenta Hall (2007), “[...] As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação”. (HALL, 2007, p. 108). Hall (2007) tece uma argumentação bastante enfática em relação ao rompimento da aceitação da noção de identidade pensada a partir de pressupostos que a vincule a um passado histórico com seus processos e práticas estabelecidos. Dessa maneira, sinaliza que esse passado histórico que se associa a uma identidade definida, deve ser vinculado aos processos e práticas que desestruturem o que está “dado”. Sendo assim, argumenta que:

[...] As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos ou de onde nó viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’ [...]. (HALL, 2007, p. 109).

Outros elementos e fatores também são colocados em evidência quando se desenvolve o conceito de identidade a partir desse viés que Hall (2007) aponta. O referido autor trata a questão das relações de poder que se relaciona diretamente com o processo de diferenciação em uma determinada sociedade, e que se vincula com a identidade, uma vez que se concebe a produção da identidade a partir da diferença.

Além disso, a discussão acerca da identificação dos sujeitos com o espaço que ocupam, vivem, sentem, etc. deve ser entendida sob a lógica da identidade do indivíduo em relação a sua espacialidade. Dessa maneira, a maior identificação do sujeito com o espaço que ocupa perpassa a lógica de seu próprio reconhecimento, uma vez que “[...] a construção e a conquista do direito à cidade está no centro do aumento da identificação dos cidadãos com a cidade que serve de base a sua existência [...]”. (COSTA; GONDAR, 2000, p. 48).

Essa identidade é construída a partir das diferentes subjetivações que os sujeitos apresentam, uma vez que essas se articulam cada vez mais com o:

[...] descompasso causado pelo fim das referências que levam a estabilidade do sujeito, daquele sujeito que se reconhece e é reconhecido como tal, à luz de fenômenos diferenciadores e diferenciados, entre eles o da globalização, que desafia as idéias de identidade, memória, cultura e representação [...]. (COSTA; GONDAR, 2000, p. 58).

Com base nessas reflexões é que procuramos pensar o processo de construção de identidade em Itueta, pensando a partir da perspectiva da construção de novos referenciais e práticas socioespaciais na nova cidade. Isso se dá a partir da concepção dinâmica do conceito de identidade, não como algo dado, pronto e acabado, mas ao contrário, como construção, ao mesmo tempo individual e coletiva. É dessa forma que se pode pensar uma nova identidade, matizada sob os signos da dialética construção e reconstrução, numa complexidade que perpassa o que os ituetenses têm de representação da velha Itueta e da nova, e diante de todas as mudanças já engendradas e aquelas que ainda não se estabeleceram.

Cruz (2008) traz uma abordagem que enfatiza para o contexto da Amazônia questões relacionadas aos espaços de referência identitária e sobre a consciência socioespacial de pertencimento. O referido autor desenvolve sua análise apoiada na idéia de que nos espaços de referência identitária “[...] são forjadas as práticas e

representações espaciais que constroem o sentimento e o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em relação a um território”. (CRUZ, 2008, p. 59). Além disso, argumenta que:

O sentido de pertença, os laços de solidariedade e de unidade que constituem os nossos sentimentos de pertencimento e de reconhecimento como indivíduos ou grupo em relação a uma comunidade, a um lugar, a um território não é algo natural ou essencial, é uma construção histórica, relacional e contrastiva, já que consciência de pertencimento e identidade não são uma ‘coisa em si’ ou um ‘estado ou significado fixo’, mas uma relação, uma posição relacional, uma posição de sujeito construída na e pela diferença. (CRUZ, 2008, p. 59).

Cruz (2008) também desenvolve sua análise se apoiando na discussão que Lefebvre (1986) realiza acerca dos espaços de representação e da representação do espaço. Sendo assim, Cruz (2008) afirma:

No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um território, essa é construída a partir de práticas e representações espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio funcional-estratégico sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropriação simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades). O domínio do espaço, nos termos de Lefebvre (1986), está ligado às representações do espaço (espaço concebido), e a apropriação está mais associada às práticas espaciais e aos espaços de representação (dimensão de um espaço vivido). É na relação dialética entre domínio e apropriação, entre vivido e concebido que é construída a construção socioespacial de pertencimento. (CRUZ, 2008, p.60).

Assim como Cruz (2008) realiza uma reflexão que busca compreender o processo de construção de identidade das populações ribeirinhas na Amazônia, objetiva-se aqui compreender processo semelhante em relação à nova cidade de Itueta. O referido autor destaca a necessidade de se conhecer as experiências culturais das populações, através dos modos de vida, suas territorialidades, bem como os saberes e fazeres coletivos em seus cotidianos.

O autor salienta no contexto da Amazônia como esse processo de formação de uma consciência socioespacial de pertencimento é marcado pela predominância dos aspectos das representações do espaço, uma vez que:

[...] tais identidades são construídas deslocadas das experiências do espaço vivido cotidianamente e têm sua ‘matéria-prima’, sua ‘base’ no conjunto de representações do espaço (concebido), dos planos, teorias, imagens, discursos e ideologias dos atores hegemônicos, como o Estado, o grande capital, os cientistas, os burocratas, os políticos, a mídia, etc. (CRUZ, 2008, p. 61).

Dessa forma, como pensar a força da imagem do rio Doce, para a população de Itueta, que agora já não mais se encontra às margens desse rio? Sob a perspectiva

espacial são inúmeras as implicações que isso traz. Podemos abordar o aspecto da própria organização espacial da antiga cidade, que se dispunha às margens do rio Doce, como mostra Figura 3.

Figura 3: Localização da antiga cidade de Itueta à margem direita do rio Doce.

Fonte: Fonte: Fotografia exposta no museu da cidade nova por meio da exposição realizada pela UHE Aimorés, 2004.

A nova cidade passou a ter uma outra forma, e marcada por outros elementos que caracterizam suas paisagens, como o córrego Quatis, que atravessa a cidade em toda sua extensão, conforme se pode visualizar na Figura 4.

Figura 4: Córrego Quatis que atravessa a nova cidade de Itueta. Fonte: Priscila Costa (2010).

Uma das transformações que a nova cidade de Itueta apresenta sob o ponto de vista geomorfológico diz respeito à diferença de características do sítio da velha para a nova cidade. Sendo assim, a velha cidade se localizava numa planície, às margens do rio, como já comentado, ao passo que a nova cidade situa-se em um terreno um pouco mais elevado em relação ao antigo leito do rio. Que implicações podem ser

consideradas a esse respeito? Que conseqüências tanto de ordem social e cultural quanto ambiental essa alteração na localização da cidade de Itueta provocou?

Psicologicamente o rio influenciava os moradores da velha Itueta? É possível verificar a influência do rio na vida das pessoas ao analisarmos a obra de Tuan (1974), que nos compartilha a idéia sobre como o meio repercute no modo de vida das pessoas. Nesse caso, como o rio Doce influenciava na sociabilidade dos ituetenses, nas atividades econômicas, nas referências em geral do cotidiano, etc.? Como assinala Cruz (2008) acerca do papel que os rios na Amazônia assumem no modo de vida local:

Esse padrão espaço-temporal se molda a partir de uma forte dependência da natureza, num ritmo lento plasmado num modo de vida e numa sociabilidade pautadas no esquema rio-várzea-floresta. A vida se tece pelas relações estabelecidas com e através do rio. (CRUZ, 2008, p. 49).

Seus argumentos enfatizam que o homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana na Amazônia. Destaca que o rio enche a vida do homem de motivações psicológicas, que o rio imprime à sociedade rumos e tendências e dessa forma cria modos de vida característicos na realidade regional. Cruz (2008) aponta que o rio representa esse espaço de referência identitária.

Com suas peculiaridades e observadas as devidas circunstâncias, podemos dizer que o rio Doce para a antiga Itueta, possui também essa particularidade de imprimir rumos e tendências, caracterizando a realidade socioeconômica, ambiental e cultural da população local. Dessa forma, observar essas tendências é refletir sobre as transformações suscitadas na nova cidade de Itueta, uma vez que a nova cidade não possui mais o rio como referência presente em sua estrutura.

1.3. O COTIDIANO VISTO A PARTIR DE NOVAS