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SEÇÃO 1 – O ANTROPOZOOMORFISMO

1.3 Monstros

1.3.1 Conceito de monstro

A figura 13 mostra a abrangência dos termos “monstro”, “quimera”, “antropomorfismo” e “antropozoomorfismo”. O monstruoso (monstro) é uma característica inicial de todos os seres antropozoomórficos, quimeras, híbridos, e praticamente todas as denominações fantásticas. Ele engloba tudo o que se relaciona a estranhamento, diferente, impactante. A monstruosidade é uma característica que se manteve viva no imaginário humano desde a antiguidade até os dias atuais, embora tenha alterado sua forma.

Figura 13 – Monstro, quimera, antropomorfo e antropozoomorfo, de Gabriel Z. dos Anjos, 2018.

A quimera traz uma limitação, isto é, a união de duas ou mais espécies, o que será melhor explicado na subseção 1.3 “Conceito de quimera”. Nela, inclui-se a união de animais com plantas, elementos minerais, entre muitas outras possibilidades. O antropomorfismo, por focar nas aplicações de valores e sentimentos humanos a objetos e animais, reduz sua abrangência, porque sempre se relaciona necessariamente com o homem. O antropozoomorfismo se restringe ainda mais a

seres que são apenas animais com humanos. A seguir, é abordado o termo “monstro” em algumas fases da humanidade.

Na Antiguidade, o termo “monstro” tem origem no grego (terato); no latim, monstrum torna-se, morfologicamente, adjetivo, no sentido de “notável”, “mostrar” e “designar”; e, como substantivo, adquire o sentido de “algo divino” (SCHNEIDER, 2015). No antigo francês, monstre, e para o Middle English monster, o termo significa primeiramente um presságio divino ruim, agouro e também se relaciona com os verbos latinos monstrare (mostrar, relacionado à mensagem divina) e monere, o que quer dizer advertir, prevenir (MESSIAS, 2017). O monstro se caracteriza e transmite mensagem por si só. Portanto, essa terminologia também se aplicava a quimeras e seres sobrenaturais de zoologia fantástica. Um exemplo é o unicórnio. Os monstros foram significativos para crenças da Antiguidade até o séc. XV, sendo um enigma vivo, uma forma de conhecer a natureza, decifrando-a, por meio de criaturas que fogem ao padrão conhecido (SCHNEIDER, 2015).

A questão da monstruosidade se relaciona diretamente com a estética do feio. Umberto Eco narra sobre isso no quarto capítulo “Monstros e portentos” de seu livro A História da feiúra (2007). Tomando nota que a estética é relativa, pode haver diferentes conceitos de belo e feio de acordo com a época e a sociedade. No entanto, sempre houve tentativas de padronização. A monstruosidade é uma variação da feiúra que possui “múltiplas declinações na diversidade de reações que suas várias formas estimulam nas nuances comportamentais com que se reagir a elas” (ECO, 2007, p. 20). O monstruoso está no esquisito, no incômodo, e de forma mais palpável no deformado, naquele que sai de um padrão comum. Primeiramente, Eco conta a sensibilidade do mundo clássico em relação aos acontecimentos extraordinários, os quais eram sempre vistos como signos de desgraça iminente. Esses indícios podiam ser chuva de sangue, chamas no céu, incidentes inquietantes, crianças hermafroditas, crianças que nasciam com deformidades, etc. Eco ainda aborda relatos de contatos e situações impactantes que se encontram nas aventuras de Alexandre e nos escritos de Giulio Ossequente, Platão, Jó, Ctesias, Plínio e Luciano de Samósata.

Um outro exemplo, Giulio Ossequente (séc. IV), escreveu o Livro dos prodígios no qual, em algumas das partes, ele narra que presenciou 9 dias de orações, porque em Piceno caiu uma chuva de pedras e em muitos lugares caiu fogos do céu, além de haver um vento que queimou as roupas de muitas pessoas. Também uma furiosa

tempestade gerou graves consequências em Roma com o tombamento de algumas estátuas no Campidoglio. E assim segue com uma consequência de ações de alguns desastres e nascimentos de bebês com deformidades.

Platão (séc. V-IV a. C.) descreve a figura do andrógino em O Banquete como o precedente da raça humana. Este possuía o sexo masculino e feminino, costas redondas e costelas circulares, 4 pernas, 4 mãos, 2 rostos com um oposto ao outro, 4 orelhas e 2 partes pudendas. Formidáveis e orgulhosos, os andróginos se atreveram contra os deuses e Zeus decidiu enfraquecê-los, de forma a manter a existência da humanidade. Zeus dividiu-os em dois e Apolo medicava o corpo e virava o rosto e pescoço para o lado do corte, de forma que contemplassem o trabalho de Zeus e passassem a se comportar. Fendidos em dois, cada metade sentiu saudades da outra e tentavam se juntar. Agarravam-se, mas sempre uma metade morria de inanição por querer fazer tudo junto. E assim, após a morte dessa metade, desesperavam-se e procuravam outra, e ocorria a mesma coisa, sendo homem ou mulher. E assim foram se destruindo (ECO, 2007, p. 108).

O romance de Alexandre (séc. Xll) narra um encontro de Alexandre e sua tropa com nativos selvagens muito fortes e habilidosos, que só são afugentados com o uso de fogo. São descritos como gigantes redondos com olhos de fogo e parecem leões. Após a primeira vitória de Alexandre com a perda de 180 soldados, ele decide explorar as cavernas e encontra feras semelhantes a leões de 3 olhos guardando as portas da entrada. Partiram para o país dos Papamel e capturaram um homem enorme com o corpo muito peludo. Após apresentar a mulher nua para ele e esse agir com agressividade, começou a gritar, e muitos de sua espécie começaram a surgir do pântano e vir ao seu socorro. O exército de Alexandre com 40.000 homens afugentou- os, incendiando os alagados, e capturaram 3 indivíduos que morreram depois. Estes seres não falam como humanos, mas latem como cachorros.25

Esse fluxo de narrações acabou alimentando o surgimento de uma estética do desmesurado, chamada de estética hispérica.

Este foi o estilo dos “séculos obscuros” da Europa que sofria com a decadência da agricultura, abandono de cidades, desmoronamentos de estradas e grandes aquedutos romanos, um clima de barbarização e um território coberto de florestas. Poetas, monges e iluminadores viam o mundo como uma selva escura, habitada por monstros e

atravessada por caminhos labirínticos. Tudo isso é parte de uma reviravolta do gosto entre os séculos VII e X que ocorria da Espanha às ilhas Britânicas, tocando a Gália (ECO, 2007, p. 111).

O mundo cristão permitiu a redenção do monstro pela visão pancalística. Santo Agostinho (séc. IV-V) dizia que os monstros eram dotados de beleza, por serem criaturas de Deus. Nos escritos de A cidade de Deus, livro XVI, capítulo 8, Agostinho afirma o seguinte: “a quem é incapaz de contemplar o conjunto, choca certa desproporção em determinada parte, por ignorar a parte a que se adapta e a que diz relação” (op. cit., p.114).26

Da mesma forma que Agostinho tentou regulamentar a interpretação das Sagradas Escrituras para um entendimento espiritual além do literal, enfatizou a necessidade de ter acesso a uma enciclopédia que decifrasse cada criatura, apresentando seu sentido alegórico. Assim, apareceram os bestiários moralizados.

O primeiro texto com este caráter foi o Fisiólogo (séc. II-III), inicialmente em grego. Ele descreve e vincula ensinamentos éticos e teológicos a uma lista de 40 animais, plantas e pedras.

Entre os séculos VII e IX, surge o Liber monstrorum de diversis generibus, que narra figuras monstruosas de todos os tipos. Até as letras iniciais de parágrafos eram pessoas impactantes e demais criaturas contorcidas. Demais bestiários e enciclopédias famosas foram História natural de Plínio, Da natureza das coisas de Rabano Mauro (séc. VIII-IX), uma grande copilação; A imagem do mundo de Honório de Aut; A natureza das coisas de Alexandre Neckham; A composição do mundo de Ristoro d’Arezzo e muitos outros livros que testemunham a atração do mundo medieval pelos territórios ainda não explorados por meio de viagens imaginadas e outras formas de descrição. Um monstro famoso foi o unicórnio (ECO, 2007).

O unicórnio, por exemplo, é descrito por Maurice van Woensel e Jorge Luis Borges como uma quimera. Porém, a aparência desta criatura coincide com os relatos antigos e as representações recentes. Van Woensel (2001) descreve o unicórnio com partes de jumento, cavalo, bode e rinoceronte. Borges (2011) distingue o unicórnio comum e o unicórnio chinês.

A primeira versão do unicórnio é do grego Ctésias (400 a. C.), que os relata como asnos silvestres muito velozes. Plínio (séc. I)27 acrescenta características dos

unicórnios vistos na Índia com o corpo de cavalo, cabeça de cervo, patas de elefante e cauda de javali, além do chifre longo na testa. Seus relatos se apresentam nas Etimologias de Isidoro de Sevilha (séc. VII), na simbologia da união dos reinos da Inglaterra com a Grã-Bretanha (séc. XVI); na Idade Média, são representados com fórmulas para capturá-lo, como na representação do Espírito Santo no cristianismo e o mercúrio e o mal na obra de Jung (Physiologie und Alchemie, Zurique, 1944). A imagem mais conhecida do unicórnio é um cavalinho branco com patas traseiras de antílope, barba de bode e o característico chifre longo e retorcido na testa. O orientalista Schrader, em 1892, opinou que o unicórnio possa ter sido sugerido aos gregos pelos relevos persas de touros de perfil, nos quais só se via um chifre. O unicórnio chinês (chamado de k`i-lin) é um animal de bom agouro, portando corpo de cervo, cauda de boi, chifre de carne e cascos de cavalo. O pelo de seu lombo é de 5 cores mescladas, sendo pardo ou amarelo na barriga. Ele vive até mil anos (BORGES, 2011).

Outros monstros temíveis eram o Basilisco, a Quimera, a Mantícora, a fera leucrocota e o homem silvestre. A seguir, no Renascimento, os monstros contêm um papel agradável, devido à sua feiúra, o que viabilizou a entronização de suas imagens em palácios e demais localidades públicas. Com isso, surgiu a expectativa de encontrá-los em expedições marítimas.