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SEÇÃO 1 – O ANTROPOZOOMORFISMO

1.3 Monstros

1.3.2 Monstros em viagens marítimas

Mary Del Priore relata que, no período das viagens marítimas do século XV, tanto o conceito de “monstro” quanto suas representações vinculam-se a uma bagagem já recebida daqueles que se aventuraram a realizar viagens marítimas e estavam abertos a novas descobertas. Viajantes declararam ter visto monstros nas terras descobertas, assim como tiveram surpresas ao desembarcar em lugares considerados paradisíacos. Serão incluídos, ao discorrer sobre este tema, os conceitos de “zoologia” e “quimerismo”.

27 Caio Plínio Segundo (23-79 d. C.) foi historiador, naturalista e oficial romano. Conhecido como Plínio, o velho, escreveu várias obras, entre as quais a mais famosa é História natural, a qual consiste num tratado de 37 volumes que conferem panorama de botânica, geografia e zoologia da Antiguidade.

No Renascimento, o termo “monstro” conduz a uma aplicação àquilo que se desvia do curso natural. O monstro adquire características por meio das quais as diferenças são cada vez mais ressaltadas. É evidente que a diversidade torna abundante a variação da vida, mas o monstro era como um apontamento à desordem, ao caos, por se desviarem da lógica natural estabelecida.

Eram considerados monstros animais com essas características, como tucano, pelo bico desproporcional, o peixe-voador, pelo fato de voar, ou o avestruz, por ser uma ave que não voa. Este era o modo de reconhecer os monstros: uma associação das características de animais com regras e pensamentos cultivados, tornando-os reais e palpáveis.

Nesse período, também, o pensamento oscilava entre ciência e magia, sendo diversa a representação de monstros advinda de inspirações e de influências espirituais. Havia uma expressiva variação de representações na figuração do demônio, o que fazia com que as outras variações de monstros tangenciassem tanto em forma quanto em conceito semelhante.

O fluxo de pensamento ocidental na Antiguidade, influenciado pelo cristianismo, produziu uma quantidade maior de monstros, com figurações e conotações, paralelas às representações de demônios. Ademais, somam-se às lendas e figuras de outras mitologias, bem como seus modos de representá-los.

É interessante perceber a presença de criaturas quiméricas e até algumas antropozoomórficas em mapas cartográficos antigos. Isso se deve ao fato de contos e figuras místicas da Antiguidade, medievo e Renascimento influenciar no contexto social, e por consequência, no próprio contexto marítimo, cheio de surpresas.

Em longas viagens sobre o oceano, impulsionadas pelas grandes navegações, frequentemente indagava-se o que seria encontrado pelo caminho. Imaginava-se o encontro de criaturas assombrosas mitológicas no imenso mar, que era um local de isolamento do homem e seu refúgio. Nesse instante de deslocamento físico (viagem marítima), o homem estava fora de seu meio comum e encontrava-se de certa forma vulnerável. Nessas mesmas viagens marítimas, o assunto mais frequente eram os contos assustadores de monstros marinhos, como dragões, serpentes e feras muito armadas (DUZER, 2013). Os homens estavam no que era considerado o território dos monstros e se dirigiam para locais onde se pensava que encontrariam ainda mais monstros. Dentro dos barcos, por meio de narrativas, trocavam suas experiências.

As baleias eram consideradas monstros, pelas dimensões que possuíam, representadas nos mapas, de forma estilizadas, uma vez que os tripulantes de embarcações eram, por sua vez, representados como se fossem pequenos bonecos. A figura 14 mostra baleias atacando um barco e um tripulante tocando corneta para assustá-las.

Figura 14 – Detalhe de Carta Marina de Antonio Lafreri, gravura (séc. XVI).28

Os grandes cetáceos e outros animais marinhos inspiraram histórias que são conhecidas até a atualidade. Alguns vêm de mitos e outras de histórias reais. A exemplo da história de Moby Dick (obra de Herman Melville, 1851), inspirada num naufrágio causado por uma baleia cachalote (Physeter macrocephalus). A espécie atinge até 57 toneladas e tem uma forma de combate bastante agressiva. Por mergulho, ela nada ganhando velocidade de baixo para cima e atinge embarcações, podendo romper estruturas de navios. Um tipo de cera está presente e envolta em sua pele e o enrijecimento desta atua como um revestimento, sendo ainda mais agressivo no impacto com o navio.

Outro exemplo de monstro marinho é o “Kraken, uma espécie escandinava do zaratán e do dragão-do-mar ou cobra-do-mar dos árabes” (BORGES, 2011, p. 129). A obra História natural da Noruega (1752), do bispo dinamarquês de Bergen, conta que o lombo do Kraken mede uma milha e meia de comprimento (o que corresponde

28Disponível em: <https://tinyurl.com/ybqkw3js>. Acesso em: 23 maio 2018. Imagem completa da carta no anexo F.

a 2,414 km). Ergue-se como uma ilha flutuante e os braços abarcam o maior dos navios. Outras descrições afirmam que este descarregava líquido o qual deixava turvas as águas do mar e, por isso, associou-se à ideia de que era uma espécie de polvo gigante. O maior molusco marinho encontrado (recorde) foi uma lula de 14 metros de comprimento.

Apesar do destaque aos grandes monstros, também existiam os pequenos, criaturas representadas que fazem menções a histórias e contextualizadas pelo imaginário renascentista. A figura 15 mostra uma imagem de ictiocentauro.

Figura 15 – Icthyocentauro em detalhe de mapa Theatrum Orbis Terrarum, de Abraham Ortelius (1571).29

A ilustração acima mostra um ictiocentauro em mapa renascentista, representado com corpo de homem e a outra metade de um peixe marinho, assemelhando-se a uma serpente ou um dragão.

Borges traduz o termo “ictiocentauro” para centauros-peixes. A mesma representação foi aplicada aos centauros-tritões da mitologia. Frequentemente, encontram-se na escultura grega helenística e romana quimeras de homem da cintura para cima, peixes da cintura para baixo com patas dianteiras de leão ou cavalo. Os ictiocentauros são mencionados, unicamente, nos textos dos escritores Licofonte, Claudiano e do gramático bizantino João Tzetzes.

A mesma criatura faz conexão com as sereias. Estas, inicialmente, na mitologia grega eram mulheres-pássaros (descrição de Ovídio) e sua forma foi transferida para a de mulheres-peixes (Tirso de Molina), sendo consideradas monstros no dicionário de Quicherat. A figura da sereia também foi associada às descrições de Ipupiara, que era um monstro relatado em costas brasileiras por Pero de Magalhães em 1564, o qual a descreve com cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina (DEL PRIORE, 2000).

Em muitas viagens, era frequente o imaginário de que existia um paraíso localizado nos extremos do mundo. Isso ocorria tanto no pensamento pagão quanto no cristão. Ambos costumavam situar esta terra maravilhosa no Oriente ou nas ilhas do Atlântico. Com a descoberta da América e o fascínio pelo novo mundo, resgatou- se a visão do paraíso cultivada na Idade Média. Enviado pelo conde João Maurício de Nassau em 1637, Margrave30 é o primeiro estudioso a relatar os animais

encontrados no Novo Mundo.

No séc. XVII, monstros apareciam nas literaturas descritas pelos viajantes ao Novo Mundo, que relatavam experiências no local paradisíaco (costas do Brasil, África e ilhas). Ambroise Paré (1510-1590) escreveu o livro de criaturas On monsters and marvels, Pero de Magalhães Gândava relatou suas experiências em História da província Santa Cruz (publicada em 1576). Também se tem conhecimento dos relatos do jesuíta Fernão Cardim (1590), padre João Antônio Cavazzi de Montecuccolo (1645 e 1670), Gabriel Soares de Souza e os estudos de Luís Câmara Cascudo.

Também no século XVII, mais especificamente em sua segunda metade, eram constantes nas publicações os relatos de monstros marinhos, nos quais aqueles que descreviam estas histórias manifestavam uma tendência a “aperfeiçoar” ainda mais as criaturas. Era o caso dos relatos do padre Stansel. “Os monstros marinhos, de tanto impacto que causaram entre colonos na América portuguesa, constituíam a pedra de toque da autêntica experiência da viagem ou da estada no Novo Mundo” (DEL PRIORE, 2000). Em momento posterior às navegações, quando monstros estavam embutidos na cultura e no imaginário popular, os navegadores começaram a se focar naquilo que realmente encontravam nos lugares aonde chegavam.

30 Jorge Margrave (1617-1644) foi um médico alemão, que, juntamente com o holandês Guilherme Piso, foi enviado para o Brasil. Tinha apenas 27 anos quando partiu para a missão de estudar a zoologia sul-americana e teve sua obra publicada em 1644.

Apesar do choque entre os mitos e o que os marinheiros encontravam, alguns monstros eram conservados em seus imaginários. Mary del Priore, historiadora, relata que se findou a coexistência do fantástico com o real depois do século XII, quando os cartógrafos desvendaram grande parte do planeta.

No século XVIII, por exemplo, os conhecimentos taxidermistas já estavam bem avançados. O naturalista e farmacêutico Albertus Seba (1665-1736) elaborou um atlas com vários volumes sobre ilustrações de animais, o qual foi uma das obras naturalistas mais preciosas do período, sendo referência por mais de 300 anos. Chamada de O gabinete de curiosidades naturais (Gabinet of natural curiosities), a obra contém coleções taxonômicas de animais, plantas e insetos de todo o planeta. A obra apresentava também conchas, corais e algumas criaturas fantásticas, como a hidra e o dragão. A figura 16 mostra a ilustração da hidra segundo Seba: uma quimera com corpo de tartaruga, cauda de serpente e cabeças semelhante à baleia cachalote com dentes de serpentes.

Figura 16 – Ilustração de hidra, de Albertus Seba (séc. XVIII).31

A hidra é natural da mitologia grega, conhecida como hidra de Lerna. É uma quimera filha de quimera. O Tártaro e a Terra geraram o disforme Tifão, e este, junto com Equidna (metade mulher e metade serpente) geraram a hidra de Lerna. Era uma serpente com cabeças humanas (que a faz ser antropozoomórfica), apresentando o número de 100 cabeças, de acordo com o historiador Diodoro; e 9 para a Biblioteca

de Apolodoro, que é a versão mais aceita. Onde se cortava uma cabeça surgiam duas no local, sendo a do meio eterna, segundo Lemprière. A criatura foi eliminada por Hércules e Iolau: enquanto um cortou as cabeças, o segundo queimou as feridas e a cabeça eterna foi enterrada debaixo de uma pedra.

O estudo da ciência natural se fortificou intensamente no século XIX, o que favoreceu as novas descobertas e esclarecimentos sobre muitos animais. Porém, é interessante indagar o seguinte: por que a humanidade continuou a cultivar monstros em seu imaginário, uma vez que as viagens marítimas os colocaram à prova? A mentalidade advinda da Antiguidade e que continuou no Medievo e Renascença, quando monstros dominavam lugares desconhecidos, foi desmascarada. Seria um momento em que os naturalistas podiam romper com toda a bagagem e desertar os monstros do imaginário da humanidade daquele período em diante. Porém, não foi o que ocorreu. Os monstros continuaram vivos na mente das pessoas e sempre eram reinventados em contos, histórias, divulgados segundo as mídias. Dessa forma, eram revividos, transcritos, ressignificados e até se tornavam recentes novamente. Pode- se constatar até mesmo monstros em novas roupagens, mas eles sempre descendem ou se alimentam de argumentos anteriores. A classe de monstros que provém de grandes animais marinhos continuará, pela própria descrição bíblica, lendas e outros gêneros de histórias. Há e haverá monstros transcritos de outros conceitos ou lendas, que configuram no gênero de monstros recentes.

No contexto de imaginário, os monstros recentes são apresentados como monstros que surgem no cinema. Eles voltam a ter grandes dimensões e se reintegram ao conceito de Schneider de que o monstro traz significado em si só.