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2.2 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE WALTER BENJAMIN

2.2.3 O conceito de experiência e narração

Pois qual o valor de todo o patrimônio cultural, se a experiência não mais se vincula a nós? Essa é a interrogação que Benjamin (1994a) nos faz em seu texto

Experiência e pobreza. Nesse ensaio, Benjamin faz uma série de constatações na

arte, na arquitetura e na cultura, acompanhadas de questionamentos cruciais a respeito da pobreza que se estabelece na experiência no campo da Modernidade. Ele nos instiga por meio de uma pequena parábola de um velho que, no leito de morte, revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos procuram, cavam e não descobrem vestígio de tesouro algum. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido certa experiência de que a felicidade está no trabalho, e não no ouro.

Em seu ensaio O narrador, Benjamin (1994b) aponta que a arte de narrar toma sua fonte de uma experiência no sentido pleno do termo (Erfahrung), que foi progressivamente abolida com o desenvolvimento do capitalismo. Em seu texto, diz que a arte de narrar histórias se perde gradualmente e discute o fato de ser tão raro, atualmente, encontrar alguém que saiba narrar uma história. Essa experiência

(Erfahrung), para Benjamin (1994b), está ligada a uma tradição viva e coletiva,

característica das sociedades em que os indivíduos não estão separados pela divisão do trabalho, mas onde a organização coletiva perpassa por uma vinculação consciente a um passado comum, vivo nos relatos dos narradores. Nessas sociedades, a experiência coletiva (Erfahrung) predomina sobre a experiência do indivíduo (Erlebnis), isolado em seu trabalho e em sua história pessoal.

Benjamin (1994b) aponta que as condições de realização da arte de narrar não existem mais na sociedade capitalista moderna. Ele distingue entre elas, três condições principais:

a. A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica sobretudo, destruiu.

b. O caráter de comunidade entre vida e palavra apoia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O ritmo

do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo em que ainda se tinha, justamente, tempo para contar e tempo para ouvir.

c. A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito.

Nessa direção, Gagnebin (1982) aponta que, no pensamento de Benjamin, a obtenção de uma memória comum, que se transmite através das histórias contadas de geração a geração, é hoje destruída pela rapidez e pela violência das transformações da sociedade capitalista. “Agora o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido a sua história privada, tal como ela é reconstruída no romance” (GAGNEBIN, 1982, p. 68).

Benjamin (1994b) aponta que o desaparecimento de uma memória e de uma experiência coletivas traz sempre, como consequência, a valorização extrema do novo. A informação jornalística afasta-se da informação fornecida por uma história contada de acordo com a narrativa tradicional. Submissa à estrutura da experiência individual (Erlebnis), a informação jornalística deve dar ao leitor a impressão de que algo totalmente novo e excepcional acaba de acontecer, talvez, segundo Gagnebin (1982), para preencher o vazio uniforme da vida subjugada ao ritmo do trabalho capitalista.

A experiência contida no relato do narrador concerne a uma experiência antiga e pacientemente retransmitida. Esse conceito de experiência (Erfahrung) articula-se, como dito anteriormente, a estruturas sociais hoje extintas, como as sociedades camponesas, entre os narradores anônimos, os artesãos e os viajantes. Seu sentido não é imediato e evidente, como na parábola das vinhas descrita acima.

Para Benjamin (1994b), a arte de narrar também é a arte de contar, sem a preocupação de se ter que explicar detalhadamente tudo:

[...] ao contrário da coerência psicológica do romance e da plausibilidade da informação jornalística, o relato do narrador permanece irredutível a interpretações posteriores, capaz por isso mesmo de provocar surpresa e reflexão mesmo depois de muitos séculos (BENJAMIN, 1994b, p. 70).

Benjamin (1994b) relaciona a narrativa a um modelo de sociedade cuja organização coletiva reforça a vinculação consciente a um passado comum, permanentemente vivo nos relatos dos narradores. O homem contava, ouvia e trabalhava num mesmo tempo, o que é muito difícil de ocorrer na sociedade capitalista em virtude das modernas formas de produção e organização das classes sob as relações sociais de produção.

O processo de pobreza da experiência e, em consequência, da arte de narrar também é evidente quando Benjamin aponta o evento da guerra mundial no qual os combatentes voltavam mudos dos campos de batalha, mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos: “Porque nunca houve experiências mais radicalmente tão desmobilizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (BENJAMIN, 1994a, p. 114-115).

A pobreza da experiência (Erfahrung) pode ser vislumbrada em diferentes campos, inclusive nas artes. Para Benjamin (1994a), Charles Baudelaire não se esquivava de considerar, em seus versos, o caráter mecânico da relação entre os homens nas capitais, incluindo a indiferença e as massas. Em seus textos sobre esse autor, Benjamin (1994a) aponta outra categoria essencial da Modernidade, a perda da aura. O tema da secularização da arte, na qual o artista não é mais considerado um “santo” e as obras de arte perderam a sua função original de objeto de culto, é apontado por Benjamin (1994a) como a perda da “aura”. A aura desaparece no momento em que o desenvolvimento técnico torna obsoleta a singularidade da obra, reprodutível ao infinito.

A sinfonia pode ser registrada em um número incontável de discos, o quadro multiplicado em inumeráveis reproduções, e o texto sempre reeditado. O estatuto privilegiado do original é questionado pela profusão e perfeição das reproduções (GAGNEBIN, 1982, p. 53).

Benjamin (1994a) também estabelece uma relação entre contar e morrer. Se nós não morrêssemos, não contaríamos; contar está ligado ao fato de que sabemos que vamos morrer. Por isso a imagem do moribundo que transmite uma narrativa domina o palco. A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. Nessa direção, Ferreira (2011) aponta que sempre que se invoca a centralidade da narrativa na

tradição oral, vêm à lembrança as imagens da morte nas sociedades anteriores à Modernidade, visto que a narrativa se assenta em expressões da finitude dos homens e das coisas, mas, ao mesmo tempo, da continuidade da tradição. Aquilo que é transmitido é preservado do esquecimento.

Benjamin (1994b) enfatiza que é como se estivéssemos cada vez mais privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Prezamos muito a informação e pouco o conhecimento experimentado, vivenciado. Talvez as experiências estejam deixando de ser comunicáveis.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte da narrativa está em evitar explicações. [...] O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1994b, p. 203).

A informação, marca da contemporaneidade, só tem valor enquanto é nova. No momento frenético em que vivemos, tudo se torna descartável e apenas o imediato tem importância. Há sempre algo novo criado em pouco tempo que substitui o que está em voga. O maior exemplo da descartabilidade e superação das coisas está na tecnologia, pois não cessam as inovações em aparelhos eletrônicos, computadores, câmeras digitais e outros.

Mesmo ao se lembrar da beleza daquilo que não é mais possível na Modernidade, Benjamin (1994a) inclui em sua filosofia da história o trabalho do narrador, desta forma:

O historiador materialista não abre mão de considerar que seu olhar sobre o passado é uma perspectiva e de que a relação entre o presente e o passado se assenta na emergência de uma “imagem” que passa como um relampejo, requisitando a atenção do estudioso (FERREIRA, 2011, p. 70).

Conforme Benjamin (1994a), não se pode mais transmitir uma experiência comum e por todos compartilhada no sentido forte da palavra experiência (Erfahrung). O que se deve narrar agora são as dificuldades da narração, da partilha, o estraçalhamento

da transmissão. Se a necessidade de narrar persiste na contemporaneidade, sua realização se torna cada vez mais problemática. De acordo com Gagnebin (2011), a preocupação de Benjamin é com a importância da narrativa para a constituição do sujeito e com a experiência que supõe uma relação com sua própria história.

Assim, a filosofia da história de Benjamin ajuda-nos a pensar e compreender a escrita da história de vida dos jovens com deficiência e TGD, participantes de nossa pesquisa, considerando em suas narrativas sobre a própria vida as vicissitudes da sociedade e do tempo histórico em que estão imersos.

Em seu ensaio Infância em Berlim por volta de 1900, Benjamin rememora, na forma de pequenos textos, a metrópole onde vivera até o exílio, na qual se desenrolou a experiência da infância e da juventude. Quando escrevia os pequenos textos, Benjamin estava ciente de que essas lembranças de forma alguma “resgatavam” a história de sua infância e juventude: tratava-se de condensar a experiência então vivida, segundo os interstícios da memória e do esquecimento, com a experiência atualizada, do adulto que conserva e perlabora a textura de sua memória. A abordagem desse ensaio sugere a visita a temas e motivos benjaminianos relacionados à infância e seus lugares, subjetivos e objetivos, no mundo contemporâneo, o que nos ajudará a refletir sobre as narrativas das memórias dos jovens de nossa pesquisa sobre aspectos de sua infância.

3. DO PERCURSO ESCOLAR DE JOVENS COM DEFICIÊNCIA: DAS