• Nenhum resultado encontrado

2.2 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE WALTER BENJAMIN

2.2.1 Walter Benjamin: a história e a leitura do passado

Nascido em Berlim, em 1892, Walter Benedix Schönflies Benjamin (1892-1940) foi um dos mais notáveis intelectuais alemães do século XX. Sua obra abrange uma

pluralidade de temas, como a filosofia da história, a estética e a crítica literária, a historiografia e a política, a filosofia da linguagem, a crítica epistemológica, entre outras. Filho de judeus assimilados na Alemanha do século XIX, Benjamin esteve intelectualmente envolvido com a elaboração de uma abordagem sensível da Modernidade.

Na adolescência, Benjamin, adotando ideais socialistas, participou no Movimento da

Juventude Livre Alemã, colaborando na revista desse Movimento. Nessa época,

notava-se uma nítida influência de Nietzsche (1844-1900) em suas leituras. Em 1915, conheceu Gerschom Gerhard Scholem (1897-1982), de quem se tornou muito próximo quer pelo gosto comum pela arte, quer pela religião judaica que estudavam.

Conforme Gagnebin (2011), o percurso biográfico de Benjamin evidencia os efeitos

que as vicissitudes de uma época histórica produzem em um indivíduo, pois ele vivenciou o período de um dos mais dramáticos acontecimentos da Europa: a Segunda Guerra Mundial. Vítima da perseguição nazista, passou parte de sua vida no exílio, sem residência fixa, fugindo de um lugar para o outro. Sua vida foi marcada por fracassos e dificuldades materiais, profissionais e individuais. Até meados dos anos 1930, quando passou a receber uma espécie de bolsa do Instituto de Pesquisa Social (Instituto de Frankfurt), dependia financeiramente de sua família.

Walter Benjamin assumia uma dinâmica fragmentária da escrita, fugindo aos preceitos acadêmicos tradicionais. Foi “convidado” a renunciar à apresentação de sua tese de livre docência, intitulada A origem do drama barroco alemão, no Departamento de Literatura Alemã, tese também recusada pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt. Para Gagnebin (2011), tratava-se de uma obra complexa, renovadora e erudita, obscura e brilhante, que revelava a relação ambígua que Benjamin tinha com a tradição acadêmica.

Nas Teses sobre o conceito de história, publicadas em 1940, ano de sua morte, Benjamin reuniu textos nos quais tecia críticas ao historicismo, que expressava uma concepção aditiva e acumulativa de história a partir de uma noção de tempo linear. Benjamin se opôs a essa perspectiva e revelou sua inquietação na defesa de uma história materialista construtiva que busca articular o passado com o presente. Conforme Gagnebin (2011), a metáfora da articulação é interessante porque articulação, no corpo humano, por exemplo, é aquilo que dá movimento entre o

braço e o antebraço. Portanto, quando Benjamim usava essa palavra, ele queria articular o passado e o presente, queria criar o movimento entre o passado e o presente, movimentar o presente para dentro, e não só, como dizem os historiadores do historicismo, descrever o passado histórico. Contra isso, ele colocava um movimento, uma transformação, uma articulação.

Benjamin (2008) chamou a atenção para o papel do historiador materialista, que deveria lembrar-se de que a imagem do passado, que é a sua imagem do passado, não pode oferecer um ponto de partida imediato à sua análise, mas que a condição prévia de todo julgamento do passado é o exame crítico da constituição histórica da representação desse passado. De outra forma, ele estaria arriscado a cair nas armadilhas de uma tradição cultural que se deleita em fazer da história uma espécie de caminho ascendente, com seus pontos altos e seus períodos de decadência, seus sábios e seus fracassados, em direção ao coroamento, que figuraria o estabelecimento da democracia burguesa. Para o autor, a análise materialista deveria, antes de tudo, proceder a uma releitura profundamente desconfiada da historiografia vigente.

Segundo Benjamin (1994a), é preciso descolar, por assim dizer, o núcleo do passado de um invólucro de imagens pré-fabricadas que nos impedem de percebê- lo em sua verdade. Essa verdade não é, na filosofia benjaminiana, a luminosidade ofuscante das origens, como se fosse possível remontar a uma fonte tanto mais pura quanto mais distanciada no tempo. Ao contrário, a verdade do passado reside antes no leque dos possíveis que ele encerra, tenham eles se realizado ou não. Assim, a tarefa do pesquisador materialista, como dito anteriormente, é justamente revelar esses possíveis esquecidos, mostrar que o passado comporta outros futuros além desse que realmente ocorreu.

Gagnebin (1982) expõe que a reflexão benjaminiana sobre a crítica materialista da literatura conduz a uma reflexão sobre a história em seu duplo sentido: como conjunto dos eventos do passado e como sua própria escritura. Benjamin critica o ideal de pesquisa histórica do historicismo que escreve uma história universal: “O historicismo culmina legitimamente na história universal. Seu método consiste em ‘apresentar uma imagem eterna do passado, isto é, utilizar a massa de fatos para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio’” (BENJAMIN, 1994a, p. 230).

O tempo histórico no historicismo é semelhante a um espaço vazio, uma linha infinita que os acontecimentos vêm preencher. O tempo é concebido como homogêneo e vazio e se conjuga em uma série de pontos perfeitamente semelhantes. Essa concepção do tempo, comum à historiografia burguesa e à teoria social democrata do progresso, permite postular a existência de uma história universal, na qual é possível conhecer todos os pontos do continuum histórico, formando a partir dele uma imagem exata, ainda que esse processo seja infinito. Nessa perspectiva, cada acontecimento do passado espera pacientemente ser conhecido; sua descoberta é só uma questão de persistência e habilidade do pesquisador. De acordo com Benjamin (2008, p. 232), o historicismo se contenta em estabelecer uma relação causal entre vários momentos da história, contudo, aponta:

Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário (BENJAMIN, 2008, p. 232).

Conforme Gagnebin (1982), para Benjamin, o historiador burguês do historicismo não questiona nem sua posição nem a maneira como a história nos foi contada e transmitida, e ainda menos a maneira como se realizou. A história não é considerada como uma versão possível entre outras, mas como o relato incontestável e edificante das múltiplas manifestações da vida humana. A ausência de reflexão crítica sobre seus postulados e essa concepção acumulativa da pesquisa explicam o conformismo do historicismo. Ele descreve o vasto espetáculo da história universal, mas não o questiona; está consequentemente bem longe de poder discernir, por detrás da história dos vencedores, as tentativas de uma história que fracassou (GAGNEBIN, 1982). Nessa perspectiva, não interessa identificar as causas do fracasso, e elas não se constituem em um objeto de pesquisa. Assim, a vitória é considerada como uma manifestação do mais forte, sem que se indague a respeito das condições preestabelecidas de luta desigual. Para Benjamin, o historicismo se identifica sempre com o vencedor, na medida em que é sobre este que existe o maior número de testemunhas e registros.

O conceito de história em Benjamin está contido em uma noção de tempo diferente do da tradição ocidental. A crítica ao tempo homogêneo e vazio do historicismo do

século XX se realiza na recorrência de Walter Benjamin à mística judaica, em que o pensador encontra uma concepção de tempo não escravizada à cronologia, ou seja, a linearidade que aponta sempre para o futuro. Benjamin não problematiza a história sem, necessariamente, refletir sobre a concepção de tempo. Nessa direção, também o pensamento marxista fornece a Benjamin a possibilidade de “interrupção” do fluxo homogêneo do tempo histórico, ou seja, a possibilidade de uma crítica ao tempo imanente ao modo capitalista. Dessa forma, preocupado com uma concepção de tempo que não seja uma abstração, Benjamin relaciona o materialismo histórico à mística judaica.

No lugar do conceito de história cíclica, baseada na doutrina do eterno retorno, e em vez do tempo linear, Benjamin (2008) propõe o tempo saturado de “agoras”, ou seja, repleto de atualidades, cheio de pontos descontínuos como as estrelas no céu: “A história de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras [...] sob o livre céu da história” (BENJAMIN, 1994a, p. 229-230).

Assim o conceito de tempo, para Benjamin, não é representado pela noção de tempo cíclico ou linear; com efeito, uma outra história pode surgir, pois há a quebra da continuidade e os fatos não se desenrolam em uma sequência temporal.

Em oposição à visão do historicismo, a tarefa do historiador materialista, para Benjamin (2008), é a de saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história; escrever, ou melhor, escovar a história a contrapelo, ou ainda a história da barbárie, sobre a qual triunfa uma cultura dominante. Contudo, escrever a história dos vencidos requer o acesso a uma memória que não está nos documentos oficiais e nos livros de história.

Ao contrário, o historiador materialista não pretende descrever o passado da forma como ocorreu de fato, mas de outro modo; busca desvelar os sentidos não considerados nesse processo para inscrever em nosso presente o apelo por um futuro diferente. Sua tarefa está na capacidade de estabelecer uma ligação entre o passado submerso e o presente. Trata-se aqui não só de recuperar o que foi vivido, mas também de estabelecer conexões do que foi vivido pelos jovens e adultos de nossa pesquisa, em sua atualidade.

Cada momento da história forma uma unidade em si, dotada do mesmo valor que as outras, que só pode ser compreendida e descrita de maneira adequada se o historiador deixar de lado qualquer opinião preconcebida sobre o curso global da história, para mergulhar no estudo dos fatos e tentar reviver cada época de acordo com seus próprios critérios. Walter Benjamin propõe uma inconclusividade do passado para defender a legibilidade do tempo histórico e ressalta que quem tem em mente esse fato pode ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.

2.2.2 Lembrar e esquecer: a memória e o conceito de tempo