Em qualquer situação em que o poder de decisão é transferi- do ou compartilhado, surge, em maior ou menor grau, uma
assimetria informacional. Em uma empresa privada ou pública,
clube, associações, cooperativas, universidades, sempre exis- tirão conflitos de interesse, derivados da delegação de algum tipo de poder. Isto é, “alguém” governa em nome de “alguém”, que delegou direitos para o exercício de poder. Na sua essência, a governança trata da minimização de assimetrias e conflitos de interesses inerentes à delegação de poder.
Nas sociedades democráticas, as instituições de governan- ça do Estado são implementadas à medida que o exercício da cidadania se aprofunda. As sociedades implementam os me- canismos pelos quais seus governantes são monitorados, por meio de um conjunto de regras resultantes da interação dos diferentes atores sociais. O exercício e o cumprimento da lei são uma função tanto do aparato legal existente como da própria pressão informal exercida pela sociedade no cumprimento e na melhoria dessas regras. Esse processo complexo é parte da
evolução institucional da sociedade conforme o sistema demo- crático se consolida e amadurece.
Analogamente, as organizações privadas também criam mecanismos de governança para lidar com a delegação de po- der. A gênese de uma organização que nasce e cresce no mer- cado, simplificadamente, passa por algumas etapas: O “dono” cria a empresa, a empresa cresce, o dono não mais executa sozi- nho, a empresa passa por sucessivos processos de delegação. O “dono” se vê obrigado a implementar mecanismos de incentivo e monitoramento, para que os agentes aos quais ele delegou poderes estejam alinhados com as suas expectativas.
Este é o processo genérico em uma organização com fins lucrativos. No limite, o reinvestimento dos lucros e a alavan- cagem via financiamento bancário não são mais suficientes para sustentar o crescimento. Em um grau mais intenso de crescimento, a empresa necessita rever a sua estrutura de capi- tal. Abre-se o capital da organização, ocorrendo, em maior ou menor medida, a dispersão do controle acionário. Mesmo nas empresas que mantêm o crescimento sem abertura de capital, ao longo das gerações que se sucedem, a dispersão do capital é intrínseca, a menos que a organização pereça no meio do proces- so. O problema de governança torna-se mais complexo quando ocorre esta dispersão, tornando-se um típico problema de ação coletiva entre investidores para o equacionamento dos direitos de decisão e direitos sobre os resíduos (lucros) gerados pelo empreendimento.
A questão da separação entre propriedade e controle nas organizações modernas foi acentuada em um artigo clássico dos autores Berle e Means (1932), analisando o crescimento das empresas norte-americanas na década de 1920, com a pulveri-
zação do capital das organizações e o controle disperso. Esse artigo ocupa posição de destaque no desenvolvimento da teoria das organizações, que se aprofundou posteriormente com o desenvolvimento, por Jensen e Meckling (1976), da teoria da agência, que trata dos conflitos quando um determinado agente age em nome de outro, o chamado principal, e os objetivos de ambos não coincidem integralmente.
Discutiu-se em capítulos anteriores a visão dos stakeholders
versus stockholders, que permeia grande parte do debate acadêmi-
co e empresarial acerca da função das organizações na sociedade moderna. Boa parte desse debate pauta-se por preconceitos ide- ológicos arraigados. A polarização é conseqüência da retórica inflamada de grupos com visões distintas do papel da empresa na sociedade, e deve ser relativizada. Os críticos das ações de responsabilidade social das empresas se atêm ao engajamento em ações de cunho social (responsabilidade discricionária ou filantrópica), que não seria o papel das empresas.
Existe uma e apenas uma responsabilidade social da atividade de negócios – utilizar seus recursos e engajar-se em atividades deli- neadas para incrementar lucro tanto quanto possível dentro das
regras do jogo, qual seja, engajar-se em mercado livre e competiti-
vo sem fraudes. (Friedman, 1970, p. 123)
Mas, mesmo para Friedman, o engajamento em ações so- ciais pode ser aceitável pragmaticamente, desde que se vislum- brem retornos para as empresas:
No clima presente de opinião, com a disseminada aversão ao ca- pitalismo, lucros e corporações sem alma, ações sociais são uma maneira para as corporações gerarem goodwill, por meio de gastos extraprodução inteiramente justificados sob a ótica do auto-interesse. (Friedman, 1970, p. 123)
Quadro 4.1 – Governança e responsabilidade social
No ambiente empresarial, a percepção de que o exercício da respon- sabilidade social pode trazer retornos à empresa é crescente, embora com pouca comprovação empírica. O Banco Nacional de Desenvolvi- mento Econômico e Social divulgou um relatório relacionando em- presas e responsabilidade social, assinalando a possível existência de ganhos de reputação positiva (BNDES, 2000, p. 6):
Na visão de governança corporativa exclusivamente direcionada para a performance financeira, o exercício da responsabilidade social pode ser entendido, à primeira vista, como um custo adicional para as empresas, seus sócios e acionistas, pois são re- cursos que de outra maneira seriam reinvestidos ou distribuídos na forma de lucros e dividendos. Todavia, a adoção de uma pos- tura pró-responsabilidade social parece indicar que há ganhos tangíveis para as empresas, sob a forma de fatores que agregam valor, reduzem custos e trazem aumento de competitividade, tais como a melhoria da imagem institucional, criação de um ambiente interno e externo favorável, estímulos adicionais para melhoria e inovações nos processos de produção, incremento na demanda por produtos, serviços e marcas, ganho de participa- ção de mercados e diminuição de instabilidade institucional e política locais, entre outros.
Ou seja, a função clássica de uma organização com fins
lucrativos é a mesma, desde sempre. Entretanto, para se atingir
esses objetivos, é crescente a necessidade de aprofundar as rela- ções e atender as demandas dos diferentes stakeholders da orga- nização, de forma constante e negociada. Isso é parte da própria evolução institucional, formal e informal, da sociedade:
• Os consumidores mais atentos e informados querem mais transparência e responsabilidade da empresa na oferta de seus bens e serviços. Mecanismos re- gulatórios são implementados (Código de Defesa do
Consumidor, por exemplo), além de o ativismo de organizações da sociedade civil aumentar.
• Os funcionários buscam negociar com a organização a participação na riqueza gerada pelo empreendimento, o que se traduz em maior necessidade de transparên- cia e criação de mecanismos de incentivo, na busca de maior lucro. Toda a moderna gestão estratégica de recursos humanos lida com essa questão, associando incentivos – pecuniários ou não – com a geração de riqueza do empreendimento.
• Os credores são mais seletivos e buscam não só maior transparência e prestação de contas, mas, em muitos casos, ter assento nos conselhos das organizações. • As comunidades são mais ativas, menos tolerantes às
externalidades negativas geradas pelo empreendimento no local (por exemplo, os danos causados ao meio am- biente), ao mesmo tempo em que não querem perder as externalidades positivas (emprego e geração de renda). • O Estado amplia normas legais e implementa meca- nismos de monitoramento, para o cumprimento das normas legais por parte das empresas.