• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1. O INFANTE D. AFONSO, SEGUNDOGÊNITO DE AFONSO III

1.1. O conceito de infante

Para que seja possível compreender a condição social da prole de Afonso III, da qual nos interessa especialmente D. Afonso, é necessário que se parta do próprio título que os

39 LN; Chr. Con, p. 4. Frei Fernando Félix Lopes, recorrendo a essa última fonte, afirma que o infante nasceu no dia 6 daquele mesmo mês e ano (LOPES, 1997, p. 196). O erro possivelmente derivou da confusão entre os homônimos D. Afonso – segundogênito de Afonso III – e D. Afonso – primogênito e sucessor de D. Dinis –, tendo em vista que as datas de nascimento desses dois estão contidas na mesma página do citado documento;

contudo, o futuro Afonso IV foi quem nasceu a 6 de fevereiro, mas no ano de 1291.

40 Leontina Ventura elaborou uma sucinta biografia para cada um desses filhos de Afonso III: VENTURA, 1992, p. 534-541.

nominava: infante. A detecção dos elementos que essa distinção atribuía àqueles que a carregavam junto ao seu nome figura como ponto de partida para o estabelecimento do lugar que os filhos e filhas dos monarcas portugueses ocupavam na organização da sociedade medieval portuguesa no século XIII.

Hoje, quando um interessado em saber o significado da palavra infante recorre ao Dicionário Aurélio, além de soldado de infantaria ou peão, encontra: “[Do lat. infante, „que não fala‟, „incapaz de falar‟, „criança‟.] [...] Que está na infância; infantil [...] Criança [...]

Filho dos reis de Portugal ou da Espanha, porém não herdeiro da coroa [...]”41. Não satisfeito, o curioso poderia ainda recorrer ao dicionário Michaelis e ler:

in.fan.te¹ adj (lat infante) 1 Pertencente ou relativo à puerícia; infantil. 2 Que está na infância. s m+f 1 Filho ou filha de rei de Portugal ou da Espanha, mas não herdeiro da coroa. 2 Irmão ou irmã de príncipe herdeiro. 3 Irmão ou irmã de rei.

in.fan.te² sm (ital fante) 1 Soldado de infantaria; peão. 2 ant Corista, entre os monges beneditinos.42

Esse conjunto de significados oferecidos pelos dicionários contemporâneos tem o mérito de reunir em um único verbete as informações dispersas em obras produzidas por outros estudiosos, como frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, que, empreendendo esforço de elucidar as palavras usadas na documentação medieval, apresenta o verbete infante da seguinte maneira: “Tempo houve, em que na religião de S. Bento se chamaram Infantes os monges novos, ou de poucos anos de professos, que hoje commummente se dizem Coristas”43.

Para que se compreenda o lugar social de D. Afonso é preciso que se centre o debate em torno do termo infante enquanto filho de reis não herdeiro da coroa, entendimento para o qual contribuem os dicionários supracitados, mas também o já referido frei Joaquim e o Dicionário de História de Portugal.

Embora Viterbo tenha formalmente expressado o significado de infante como monge beneditino recém-admitido na ordem, os usos que esse autor faz desse mesmo termo nas páginas de sua obra implicam em outros dois entendimentos. O primeiro atribui valor de título à palavra, usada por frei Joaquim para designar indistintamente toda a prole régia44. O segundo aparece quando, abordando o verbete infanção, afirma: “[...] os Infanções nada mais

41 FERREIRA, 2009, p. 1101.

42 MICHAELIS, 1998, p. 1152.

43 VITERBO, 1865, v. II, p. 40.

44 VITERBO, 1865, passim.

eram que os netos dos Reis, e filhos dos infantes, irmãos do Príncipe herdeiro, e sucessor da coroa [...]”45. Por essas palavras, o autor parece indicar que, sendo irmãos do príncipe herdeiro, eram chamados por infantes apenas os membros da prole régia excluídos da herança ao trono.

Alinhando-se ao mesmo entendimento implicitamente indicado por frei Joaquim Viterbo, o Dicionário de História de Portugal igualmente restringe o termo infante aos filhos segundos dos reis, quando afirma: “(do latim infante, «que não fala»). Título inerente aos filhos dos reis de Portugal e de Espanha, com excepção do primogénito”46.

Considerando as especificidades constatadas para o uso do termo infante na documentação medieval portuguesa do século XIII, é preciso respeitar o enquadramento histórico daquela palavra e demarcar com maior precisão qual o significado que seu emprego pretendia indicar naquele contexto. Ora, em que pese o esforço de síntese contido nas obras dos autores supracitados, eles não intentaram analisar o percurso que a definição daquele conceito experimentou no decurso dos séculos que compõem a História Medieval portuguesa.

Contudo, esse enquadramento temporal é caro aos objetivos dessa tese; passemos a ele.

O entendimento do termo infante enquanto designação dos filhos e filhas do rei à exceção do príncipe – primogênito e herdeiro – só pode ser aceito para períodos posteriores aos finais do século XIV, pois, como exposto por Gama Barros:

Até primeiros anos do seculo XIII o titulo de rei dava-se tambem a todos os filhos legítimos do imperante, e no mesmo caso dava-se ás filhas o titulo de rainhas [...] Desde 1207 chamam-se infantes os segundos genitos, continuando, porém a denominar-se rei o primogenito, e rainhas todas as filhas. Mas em 1211 apparece já o titulo de infante, infans, aplicado tambem ao sucessor da coroa e ás filhas do rei; e esta pratica torna-se constante desde o reinado de Afonso II. Foi, segundo parece, o primogenito do rei D. Duarte o primeiro herdeiro da coroa que se chamou principe.47

Portanto, abandonado o título de infante por Afonso Henriques na virada do ano 1139 para o seguinte – a partir de quando passou a figurar como rei48 –, aquela primeira titulação voltou a ser empregada de maneira constante somente no início do reinado de Afonso II (1186-1211/1223), o que significa dizer que a partir de princípios do século XIII esse termo passou a ser adotado como indicativo de filho ou filha do rei, independente de sexo ou idade.

45 VITERBO, 1865, v. II, p. 39.

46 TORRES, 1985b, p. 319.

47 BARROS, 1946, t. III, p. 209-210.

48 MATTOSO, 1993a, p. 215.

A homogeneidade na atribuição designatória de infante a toda a prole régia no decorrer do século XIII e quase a totalidade do XIV é indicada pelos documentos utilizados por Antonio Geraldo da Cunha em seu Vocabulário histórico-cronológico do português medieval49, aos quais se somam os registros chancelares de Afonso III e de D. Dinis, assim nos possibilitando constatar que D. Branca, D. Dinis, D. Afonso, D. Sancha, D. Fernando – filhos daquele rei – e D. Afonso e D. Constança – prole do segundo monarca –, eram nomeados sob a titulação de infante ou infanta.

Essa mesma adoção do conceito de infante pode ser constatada na prática régia do reino de Castela, onde a partir do século XIII o título de infantes ou infantas era empregado para designar exclusivamente os filhos e filhas dos reis, conforme apontado por Luis García de Valdeavellano50, registro de uso que pode encontrar nas palavras escritas por D. Juan Manuel em seu Libro de los Estados uma explicação que nos possibilita acesso ao pensamento de alguém que nos escreve desde o século XIV, oferecendo-nos uma perspectiva para o entendimento daquele conceito a partir do pensamento de um vivente do contexto medieval que fora, ele próprio, filho de um infante – o poderoso D. Manuel, filho de Fernando III de Castela (1201-1217/1252). O nobre escritor registrou:

E infante quer dizer em latim «menino pequeno», e esse nome tem todos os meninos pequenos, e esse nome lhes dão quando estão em idade de inocência, que quer dizer que são sem pecado [...] e infans quer dizer

«infante». E porque os filhos dos reis são os mais honrados e os mais nobres que nenhum que são no mundo, tiveram por bem os antigos de Espanha que, como quer a cada menino pequeno chamam em latim infans, quanto ao nome de romance que chamam « infante » não tiveram por bem que chamassem a outro senão aos filhos dos reis; e tiveram por bem que nunca perdessem esse nome, mas que sempre os chamassem infantes, o que pela nobreza que tem mais que as outras gentes [...]51

O que nos aponta D. Juan para o caso ibérico vai muito além da mera explicação acerca do uso de uma palavra, haja vista que nos oferece elementos indicativos para a adoção de um termo cujo emprego estava limitado a designar um número muito restrito de atores sociais: os filhos dos reis. Conforme a pena do nobre, a titulação de infante estava

49 CUNHA, 2007.

50 VALDEAVELLANO, 1952, p. 43.

51 “Et infante quiere decir en latin «niño pequeño», et este nombre han todos los niños pequeños, et este nombre les dan en cuanto están en edad de inocencia, que quiere decir que son sin pecado […] et infans quiere decir

«infante». Et porque los fijos de los reys son los mas honrados et los mas nobles que ningunos que son en el mundo, tovieron por bien los antiguos de Spaña que, como quier á cada niño pequeño llaman en latin infans, cuanto el nombre de romance que llaman « infante » non tovieron por bien que lo llamasen á otro sinon á los fijos de los reys; et tovieron por bien que nunca perdiesen este nombre, mas que siempre los llamasen infantes, lo uno por la nobleza que han mas que las otras gentes [...]” (LE, p. 334).

condicionada àqueles que, pelo seu estatuto inerente à nascença, eram mais nobres e honrados que todos os outros filhos de todos os demais viventes, assim sendo pelo fato de que o sangue do rei lhes enchia o corpo e, sem se limitar à fisicidade da carne, transbordava para a dimensão metafísica da cultura daquela sociedade, a qual reconhecia no nascimento um de seus elementos ordenadores.

É preciso chamar atenção ainda para o fator linguístico contido nos apontamentos explicativos de D. Juan Manuel para o emprego do título de infante, já que a língua também constituiu suporte para a consolidação do termo como elemento de distinção social. Mostra-se significativo, para nossos propósitos de compreensão de um grupo social, que tenha havido uma ruptura entre o latim e o romance, tendo sido esta última a linguagem que marcou a transição do latim vulgar52 para as línguas românicas modernas. É preciso recorrer a alguns apontamentos acerca dessa questão a fim de pôr em relevo a importância desse fenômeno linguístico.

Após o século V, o uso do latim vulgar não apenas suplantou o do culto53, como experimentou um fenômeno de diversificação linguística, influenciado espontaneamente pelos hábitos próprios das comunidades romanizadas – caso que se aplica à Península Ibérica. Os novos dialetos surgidos a partir desse movimento de alterações foram fixados por escrito séculos depois: francês no IX, castelhano no XII, português em princípios do XIII. A fase de transição entre esses dois momentos foi chamada de romance – ou romanço –, cuja existência coincide com o contexto da descentralização política feudal e da ruralização entre os séculos VIII e X54.

Ora, é profundamente significativo que no momento em que a linguagem sofria intensa modificação – influenciada pela necessidade de se ajustar e dar significado a um contexto histórico dinâmico, marcado pela reordenação das estruturas sociais –, se constate também a perda do caráter abrangente da palavra latina infans, atribuída a todos os meninos pequenos, para se verificar seu estreitamento designativo somente à prole régia, quando usada em romance, demarcando a circunscrição de seu emprego a um muito reduzido grupo social, para o qual o sangue real configurava único elemento possível de caracterização.

52 O Latim Vulgar é aquele modelo que se configurava como uma transformação do Latim Culto (veja nota abaixo) efetivada pelos povos romanizados, sob a influência espontânea de hábitos linguísticos mantidos por estes mesmos povos (SARAIVA; LOPES, 1975, p. 15-16).

53 É chamado de Latim Culto aquele modelo polidamente construído sobre bases gramaticais e que, apoiado nas tradições culturais e escolares, se caracterizava como o modelo oficial que Roma buscou estender de maneira uniforme sobre os povos romanizados (SARAIVA; LOPES, 1975, p. 15).

54 SARAIVA; LOPES, 1975, p. 15-18.

Ainda no esforço de indicar a restrição do título de infante à prole régia, frisamos a ausência desse termo junto do nome de filhos de infantes, como indicado por D. Juan Manuel, quando afirma: “Ademais os filhos dos infantes não tem outro nome senão que se chamam filhos de infantes, que quer dizer que são diretamente de direito linhagístico dos reis”55, e detectado pelo tratamento dado às filhas do infante D. Afonso na documentação régia56. Acrescenta-se, ainda, que o termo é igualmente ausente para a designação de prole bastarda, como indicam os documentos das chancelarias de Afonso III e de D. Dinis quando registram os filhos naturais desses dois monarcas57.

Dessa maneira, apresentado o debate em torno do título de infante com o recurso às ponderações de cunho historiográfico e indicações de documentação chancelar, esclarece-se que, quando o termo for invocado por esta tese, referir-se-á ao seu emprego nos séculos XIII e XIV para o reino de Portugal, isto é: filho ou filha de rei, concebido no interior de matrimônio legitimamente reconhecido, independente de idade ou sexo, fossem o primogênito e herdeiro do trono ou seus irmãos e irmãs.

Deve ser igualmente considerado que a circunscrição do título de infante unicamente à prole régia atua como marca de distinção advinda do fato de que aquela sociedade considerava-os os mais nobres dentre todos os nobres, característica que lhes era inerente à condição de nascimento, ou seja, de possuidores do sangue régio. Esse lugar social lhes conferia posição superior na sociedade, estando eles inseridos logo abaixo do rei e acima de todos os estratos que compunham o grupo nobiliárquico português, como se buscará demonstrar nas linhas que se seguem.