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5 A RESERVA DO POSSÍVEL

5.3 CONCEITO

De acordo com sua fonte imediata, qual seja, a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, firmada nos precedentes do numerus clausus I e II e na

Hochschul-Urteil, a reserva do possível é conceituada como o “limite imposto pela

razoabilidade, como aquilo que o indivíduo pode racionalmente esperar da sociedade”. Encontra-se no âmago de tais decisões o alcance racionalmente concebível dos direitos sociais e, conseqüentemente, elementos centrais à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, notadamente a ideia de razoabilidade e proporcionalidade.

Apenas secundariamente vem à tona, na corrente jurisprudencial alemã acima mencionada, a questão da escassez de recursos, levando-se em consideração, conforme Luís Fernando Sgarbossa, o aumento desmesurado da demanda alemã pelos direitos sociais então debatidos e a necessidade de uma alocação equilibrada de recursos, constitucionalmente exigida291.

Ao ser importada para o Brasil, entretanto, a reserva do possível sofreu um processo de transformação (mutação), como já visto alhures, tendo passado para o primeiro

289

OLSEN, Ana Carolina Lopes. Op. Cit., p.182. 290

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.206.

291

plano de discussão a questão da escassez dos recursos públicos, característica esta que vem dando a tônica do debate nacional acerca do assunto.

Analisando-se diversos conceitos de reserva do possível elaborados pela doutrina nacional, verifica-se que a preocupação inicial do Tribunal Constitucional Federal alemão (com a proporcionalidade e razoabilidade da postulação feita pelo cidadão em face do Estado) foi relegada para o segundo plano ou simplesmente substituída pela mera verificação da disponibilidade de recursos públicos para a implementação dos direitos vindicados, isto é, pela questão da escassez de recursos.

Ana Paula de Barcellos, por exemplo, tem uma definição segundo a qual “a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas”292.

Já Vicente de Paulo Barreto resume a reserva do possível como custos dos direitos, o que representaria uma falácia do projeto neoliberal para minar a realização dos direitos sociais. Segundo ele, a reserva do possível seria um argumento decorrente do neoliberalismo contemporâneo, sob o disfarce de uma racionalidade enganosa, que toma a reserva do possível como limite fático à realização dos direitos sociais prestacionais, ocultando a verdade sobre os custos inerentes a todos os direitos fundamentais293.

Vidal Serrano Nunes Júnior também se distancia da construção original da Corte alemã, aproximando-se, outrossim, da escassez de recursos. Para ele, a reserva do possível é um limite contingente à realização dos direitos sociais que advoga que a concretização de tais direitos ficaria condicionada ao montante de recursos previstos nos orçamentos das respectivas entidades públicas para tal finalidade294.

Para Marcos Maselli Gouvêa, a reserva do possível é um dos principais argumentos sustentados contra os direitos fundamentais, na medida em que o obstáculo não mais diz respeito a possíveis defeitos no dispositivo positivador do direito prestacional, mas sim ao dado concreto de que tais situações jurídicas precisam, para sua concretização, de dispêndio de recursos financeiros que o Estado, sabidamente, detém de forma limitada295.

292 Op. Cit., p.261. 293 Op. Cit., p.120-121. 294 Op. Cit., p.171. 295

GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas de implementação dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.19.

Andreas Joachim Krell refere-se à reserva do possível como uma teoria, que submete a prestação material dos serviços públicos estatais à disponibilidade de recursos, cuja disponibilidade e aplicação residem no âmbito da discricionariedade administrativa e das escolhas legislativas, o que se verifica por meio dos orçamentos públicos296.

Luiz Fernando Calil de Freitas conceitua a reserva do possível como um limitador fático, que atua necessariamente sobre os direitos às prestações materiais, devida sua conotação econômica297.

Aproximando-se um pouco mais do conceito originário alemão, Ana Carolina Lopes Olsen introduz a problemática da razoabilidade e proporcionalidade em seu conceito, definindo a reserva do possível como uma condição da realidade que influencia na aplicação dos direitos fundamentais, a exigir um mínimo de coerência entre a realidade e a ordenação normativa objeto da regulação jurídica. Prossegue a autora afirmando que:

A reserva do possível acaba por possuir uma dimensão preponderantemente jurídica, de mandamento de realização dos direitos fundamentais sociais dentro de um padrão de razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de ferimento do sistema constitucional como um todo, bem como uma dimensão especialmente fática, de mandamento de observância da realidade, da existência de recursos materiais e da exigência razoável e proporcional da alocação de recursos. Ainda, a reserva do possível acaba por determinar a ponderação entre o bem jurídico que se visa realizar e a escassez artificial de recursos, ou seja, aquela escassez que resulta da alocação de recursos existentes para outros fins298.

Nessa mesma linha é o magistério de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem a reserva do possível deve assumir uma posição tríplice:

A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, que abrange: a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade299.

Além de as considerações destes dois últimos autores envolverem a indisponibilidade de recursos públicos, verifica-se que eles, na linha do que este trabalho

296 Op. Cit., p.52. 297 Op. Cit., p.173. 298 Op. Cit., p.214. 299

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais

na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. 3. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,

entende correto, fazem expressa referência à razoabilidade e proporcionalidade da pretensão formulada pelo particular em face do Estado.

Entretanto, a maior parte dos autores brasileiros toma como núcleo central do conceito de reserva do possível a inexistência ou insuficiência de recursos públicos para a implementação de direitos, sem maiores indagações quanto à proporcionalidade e razoabilidade300, o que parece ser equivocado.

De fato, entende-se que a escassez de recursos deve ser reconhecida como elemento integrante do conceito da reserva do possível, mas não de forma isolada, alheia à razoabilidade e proporcionalidade, e sim de forma conjunta com as mesmas. Assim, pode-se afirmar que, tanto a escassez de recursos quanto a proporcionalidade e razoabilidade são elementos inerentes ao conceito de reserva do possível.

Destarte, sem a pretensão de exaurir todas as circunstâncias envolvidas nessa problemática, e pretendendo contribuir na busca da efetivação dos direitos fundamentais sociais, mas sem perder de vista a realidade existente, este trabalho oferece como proposta de conceito a seguinte: a reserva do possível é uma restrição fática e jurídica, que condiciona, excepcionalmente, os direitos fundamentais sociais à existência fática e jurídica dos recursos, bem como ao exame da razoabilidade e proporcionalidade, tanto do ponto de vista do indivíduo (aquilo que razoavelmente se pode exigir do Estado), quanto do Estado (efetivar determinados direitos, respeitando, entretanto, a existência de outros).

Tecidas essas breves considerações acerca do conceito da reserva do possível, passar-se-á a tratar, ainda que de forma sucinta, a questão dos custos dos direitos, matéria umbilicalmente ligada à escassez de recursos.