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5 A RESERVA DO POSSÍVEL

5.4 CUSTOS DOS DIREITOS

Percebe-se a influência da doutrina neoliberal em sede do direito constitucional na medida em que jamais se falou tanto sobre aspectos econômicos da efetivação dos direitos fundamentais sociais. E o interessante é que tal falácia vem revestida de uma pseudo-carga de cientificidade como se só agora se estivessem abrindo os olhos para a realidade da escassez de recursos.

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Destarte, se faz necessário, antes mesmo de se tratar propriamente da questão da escassez de recursos, uma breve análise da doutrina dos custos dos direitos.

Em obra célebre sobre o assunto, os americanos Stephen Holmes e Cass Sunstein301 chamam a atenção para a dimensão econômica do custo dos direitos, aspecto que o direito tradicionalmente pouco se ocupa.

Nessa obra, os mencionados autores observam que todos os direitos tem custos, seja os direitos a prestações, seja os direitos de liberdade ou de defesa, haja vista implicarem na realização de despesas públicas para sua realização e para que sejam exercidos por todos. Eles questionam a classificação dos direitos em puramente negativos (que exigem uma abstenção estatal, e que por isso seriam indiferentes economicamente) e positivos (que exigem prestações estatais, as quais, por sua vez, demandam despesas), chegando mesmo a demonstrá-la como imprópria e inútil:

“Onde há um direito, há uma ação para defendê-lo” é uma máxima legal clássica. Indivíduos gozam de direitos, num sentido legal como oposto a moral, somente se males por eles sofridos forem justa e previsivelmente reprimidos pelo seu governo. Este simples fato revela a inadequação da distinção entre direitos negativos e positivos. Ele demonstra que todos os direitos legalmente protegidos são necessariamente direitos positivos.

Direitos são custosos porque ações são custosas. (...) Quase todo direito implica um dever correlato, e deveres só são levados a sério quando seu descumprimento é punido pelo poder público servindo-se dos cofres públicos302.

Em resumo, como todos os direitos são sindicáveis perante o poder Judiciário, e como sua estrutura implica custos para o Estado, todos os direitos, sem distinção, traduzem-se em custos a serem arcados pelo Estado.

Com efeito, não apenas os direitos a prestações positivas, mas mesmo os direitos a prestações negativas tem custos. Virgílio Afonso da Silva afirma que “qualquer direito implica custos – às vezes altíssimos – ao Estado. Ou seja, não são apenas aqueles direitos garantidos pelo que se convencionou chamar de ‘norma de eficácia limitada’ que exigem uma ação onerosa do Estado, mas também as liberdades públicas e os direitos políticos (e todos os

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HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W.W. Norton & Company, 2000.

302 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W.W. Norton & Company, 2000. p.43. “’Where there is a right, there is a remedy’ is a classical legal maxim, Individuals enjoy rights, in a legal as opposed a moral sense, only if the wrongs they suffer are fairly and predictably redressed by their government. This simple point goes a long way toward disclosing the inadequacy of the negative rights/positive rights distinction. What it shows is that all legally enforced rights are necessarily positive rights. Rights are costly because remedies are costly. (…) Almost every right implies a correlative duty, and duties are taken seriously only when dereliction is punished by the public power drawing on the public nurse”.

outros direitos)”303. É inegável que mesmo os direitos de liberdade precisam de recursos estatais para serem efetivados. O direito à segurança pública é um exemplo, haja vista a estruturação da Polícia necessitar de (altíssimos) recursos para sua manutenção. O direito de acesso ao judiciário é outro exemplo, onde manter a estrutura dos Tribunais judiciários do país demanda (também altíssimos) recursos financeiros.

O reconhecimento dos custos de todos os direitos não é problema. O problema surge quando se passa a admitir a escassez de recursos para a promoção dos direitos fundamentais.

A partir da constatação de que todos os direitos tem custos, a teoria sufragada pela doutrina neoliberal (as liberdades custariam nada ou muito pouco ao Estado, enquanto que os direitos sociais seriam altamente dispendiosos) tem sua cientificidade (por isso reportar-se antes como pseudo-cientificidade) extremamente abalada, revelando, assim, o seu real caráter ideológico. Com efeito, a própria noção de “Estado mínimo”, defendida pelo neoliberalismo, fica comprometida, uma vez que as liberdades defendidas pelos neoliberais só têm sentido caso protegidas por órgãos eficazes do Estado (pois só ele tem legitimidade para tanto)304, o que custa tanto ou mais recursos do que os direitos sociais.

Por conseguinte, Stephen Holmes e Cass Sunstein pontuam que a defesa de direitos só se torna viável se eles forem sindicáveis, isto é, caso haja uma estrutura pública capaz de impor coercitivamente o respeito às normas jusfundamentais, obrigando, assim, os destinatários delas a cumprir os deveres nelas previstos. Nesse ponto, complementando a célebre frase de Ronald Dworkin (“levando os direitos a sério”305), Stephen Holmes e Cass Sunstein asseveram que “levar os direitos a sério é levar a escassez a sério”306. Seguindo nessa linha de pensamento, frente à escassez de recursos para efetivar os direitos, eles perdem seu significado, não passando de promessas feitas no papel. Como, para Stephen Holmes e Cass Sunstein, nada que custe dinheiro pode ser absoluto, os direitos fundamentais, por óbvio, também não seriam absolutos, vivendo, ao contrário, na dependência econômica do poder público307.

303

Op. Cit., p.232. 304

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. Op. Cit., p.50-51. 305

“Taking rights seriously”. (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010).

306

Op. Cit., p.94. “Taking rights seriously means taking scarcity seriously”. 307

Nesses termos, a realização dos direitos fundamentais só poderia ser efetivada quando o Estado dispusesse de verbas, isto é, quando o orçamento público permitisse gastos nesse sentido, como bem obtempera Flávio Galdino:

Na medida em que o Estado é indispensável ao reconhecimento e efetivação dos direitos, e considerando que o Estado somente funciona em razão das contingências de recursos econômico-financeiros captados junto aos indivíduos singularmente considerados, chega-se à conclusão de que os direitos só existem onde há fluxo orçamentário que o permita308.

Estabelece-se, portanto, uma premissa segundo a qual, pelo fato de os bens serem escassos, eles não permitem que todos os direitos sejam realizados de modo uniforme para todos os cidadãos. Assim, realizar direitos implica em fazer escolhas de alocação de recursos, de sorte que alguns direitos serão atendidos, outros não309. Como pontua Flávio Galdino, aferir os custos “permite trazer maior qualidade às trágicas escolhas públicas em relação aos direitos. Ou seja, permite escolher melhor onde gastar os insuficientes recursos públicos”310.

É aí que se verifica a forte influência da dimensão econômica sobre a teoria jurídica. Aliás, pode-se dizer mesmo que tal influência se transmuda em prevalência, na medida em que, de acordo com as ideias dos autores americanos, não existem direitos se não houver meios econômicos para efetivá-los. A escassez de recursos deixa de ser um elemento externo dos direitos para ser um elemento intrínseco, aproximando-se, assim, da ideia contida na teoria interna das restrições. O aspecto econômico foi introduzido no próprio âmago da existência dos direitos, os quais, sem recursos, deixam de existir311. Frente a tal realidade Stephen Holmes e Cass Sunstein propõem um novo conceito de direito subjetivo:

Assim, para dar conta desta realidade instável, não se deve considerar direitos fora da dimensão de tempo e espaço, ou como um dado absoluto. É mais realista e mais produtivo definir direitos como poderes individuais, derivados da pertinência a uma comunidade política, e investimentos seletivos de recursos públicos escassos, feitos para alcançar objetivos comuns e resolver o que é geralmente percebido como problemas comuns e urgentes312.

Em que pese a inegável contribuição de Stephen Holmes e Cass Sunstein, entende-se que enxergar o custo dos direitos e, por consequência, a reserva do possível, como limite imanente dos direitos fundamentais, ainda que seja logicamente aceitável, enfraquece

308

GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. p.204.

309 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. Op. Cit., p.118-132. 310

Op. Cit., p.205. 311

OLSEN, Ana Carolina Lopes. Op. Cit., p.187. 312

Op. Cit., p.123. “To take account of this unstable reality, therefore, we ought not to conceive or rights as floating above time and place, or as absolute in character. It is more realistic and more productive to define rights as individual powers deriving from membership in, or affiliation with, a political community, and as selective investments of scarce collective resources, made to achieve common aims and to resolve what are generally perceived to be urgent common problems”.

por demais o sistema de proteção jusfundamental, uma vez que os poderes públicos legitimados a descrever o âmbito normativo de um direito terão total discricionariedade para prescrever o que é e o que não é possível em sede de direitos fundamentais.

Não se pode, entretanto, realizar um estudo honesto acerca da efetivação dos direitos sociais sem que se refira à questão dos custos dos direitos. Daí Flávio Galdino sustentar que a questão suscitada pelos custos dos direitos não pode ser o único fundamento a embasar decisões judiciais e políticas, embora não possam ficar de fora; tampouco se justifica uma escolha pela satisfação de direitos individuais sob o argumento de que eles não teriam custos, ao contrário dos direitos sociais, o que, apesar de não ser tolerável, por vezes acontece313.

5.5 A ESCASSEZ DE RECURSOS COMO ELEMENTO COMUM E CENTRAL: AS