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1. INTRODUÇÃO

1.3. O conceito de saúde

Uma vez entendido que o trabalho humano é um elemento central na constituição de identidades individuais e coletivas e, portanto, fundamental para a organização da vida social e construção de um sentido existencial, cabe agora discutir o conceito de saúde, assim como expor o que é o campo da Saúde do Trabalhador.

A definição2 de saúde apresentada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1948, será o ponto de partida. Entende-se a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de enfermidade ou invalidez”. O grande avanço dessa definição, apoiado pela teoria da multicausalidade3, é o reconhecimento da multideterminação da relação saúde/doença. Todavia, mantém um caráter passivo e estático de saúde, impossibilitando a definição precisa do que viria a ser bem-estar físico, mental e social. Além disso, Berlinguer (1988), alerta para o estabelecimento de uma confusão etiológica decorrente da justaposição e da falta de articulação entre fatores causais, em que, por exemplo, mal-estar mental e social passa a ser encarado como uma doença ou um desvio da normalidade e não como fator determinante de uma afecção.

Alguns autores entendem que a saúde deve ser vista como algo dinâmico, em constante processo de ajustes e trocas com o meio, em que o trabalho ocupa um lugar privilegiado. Numa alusão ao conceito da OMS, Dejours (1986) aponta que a saúde deve ser considerada como a possibilidade de se obter meios de construir um caminho pessoal e original em direção ao bem- estar físico, psíquico e social. Além disso, Berlinguer (1988) entende a saúde como um estímulo ao conhecimento, à criatividade, à solidariedade (fortalecimento comunitário e agregação familiar) e à transformação das condições de vida, do ambiente e do trabalho.

2 Essa definição pode ser encontrada no site: http://www.who.int/home-page/index.es.shtml. Acessado em

02/12/2009.

3 Essa teoria reduz a realidade complexa da relação saúde/doença a uma série de fatores, que atuam e condicionam a

doença de maneira igual, não importando suas características. Assim, os fatores sociais, biológicos e psicológicos não se colocam como distintos, pois todos são reduzidos a "fatores de risco", que atuam da mesma maneira sobre a pessoa (CAMPOS; SOARES, 2003).

O fato é que a polissemia do termo ‘saúde’, em que estão embutidas inúmeras significações, favorece os questionamentos citados acima, o que leva a uma questão epistemológica determinante: nenhuma disciplina por si só comporta todas as dimensões desse objeto, exigindo-se, dessa forma, a elaboração de projetos interdisciplinares que articulem essa multiplicidade de objetos e áreas do conhecimento, que vão desde as ciências naturais às ciências sociais (CANESQUI, 1995).

Para Sawaia (2003), é possível afirmar que nos diversos campos do saber admite-se tanto a compreensão de que a saúde deve ser vista como processo, quanto o fato de que a relação saúde/doença é multideterminada por fatores sociais, políticos, culturais, econômicos e, até, subjetivos. No entanto, essa autora alerta que tais fatores não devem ser encarados como variáveis independentes, ou seja, algo que é possível controlar ou eliminar da vivência da relação saúde/doença.

Concorda-se com Canguilhem (1978) que afirma que ter saúde significa poder adoecer e sair do estado patológico, com a possibilidade de criar e instaurar normas vitais; de produzir, criar, transformar e interagir com o meio e com os outros. Implica poder desobedecer, produzir ou acompanhar uma transformação, ou seja, administrar de forma autônoma a margem de risco, de tensão, de dificuldade, de mal-estar que acompanha o cotidiano das pessoas. Por outro lado, o patológico é a perda dessa capacidade normativa, a impossibilidade de mudança nas situações em que há algum sofrimento. Se o trabalho é algo fundamental para a constituição da identidade humana, então, para Clot (2006), essa definição de saúde está intimamente relacionada com a atividade de trabalho, pois não se trata de uma questão naturalmente determinada, mas de uma capacidade de agir sobre si e sobre o mundo.

Entende-se então que a visão de saúde proposta por Canguilhem (1978) articula-se com o paradigma da complexidade na construção de um conhecimento multidimensional, que não visa encontrar ou oferecer todas as informações sobre um evento ou fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões, concebendo a articulação, a identidade e a diferença entre elas (PAIM; ALMEIDA FILHO, 2000; WALTNER-TOEWS, 2000; PALMA; MATTOS, 2001; CHIAVEGATO FILHO, 2002; SAWAIA, 2003).

Como afirma Morin (1998, p. 140), “é, portanto, necessário enraizar o conhecimento físico, e igualmente o biológico, numa cultura, numa sociedade, numa história e numa humanidade. A partir daí, cria-se a possibilidade de comunicação entre as ciências” (MORIN, 1998, p. 140).

A mediação dessa comunicação deve ser feita pela dimensão ética da saúde. Isso significa enaltecer a importância do significado e dos sentidos atribuídos pelas pessoas à saúde, doença, práticas de saúde, medicamentos, trabalho, ao corpo, etc., na compreensão da relação saúde/doença. “O sentido, como mediador do desenvolvimento humano é o lugar em que o biológico, o psicológico e o social se encontram e se autoconfiguram” (SAWAIA, 2003, p. 87).

A ausência da dimensão ética da saúde, ou seja, a falta de compreensão de seu contexto sócio-histórico acaba por promover a individualização da saúde, que culpabiliza as pessoas pela sua doença, confirmando a hipótese de que possuímos, em nosso interior, todos os recursos necessários para a cura e reabilitação. Para Sawaia (2003, p. 91), sem tal reflexão crítica,

a incorporação do simbólico, do subjetivo, da ética na saúde tornam-se imperativos categóricos e ideologias como vêm ocorrendo com a ênfase na autoestima... A autoestima virou um remédio muito recomendado às pessoas que procuram assistência à saúde, como condição básica do tratamento.

Portanto, o papel de regulação que a saúde exerce no desenvolvimento da capacidade de ação das pessoas deve ser valorizado. De modo que “a expressão mais correta para designar a práxis em saúde não é nem prevenção, nem promoção, mas potencialização que demanda ações no plano biológico, subjetivo, social e ético” (SAWAIA, 2003, p. 93).