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5 IMPLICAÇÕES DO ESTUDO DO LETRAMENTO

5.1 CONCEITOS BÁSICOS

Os alunos que fizeram o curso EJA/PROEJA, o qual correspondeu ao Ensino Médio, foram considerados aptos pela própria escola que os certificou na conclusão do Ensino Fundamental. Desse fato, podemos deduzir que já tivessem certo letramento, pois a alfabetização se constituiu em seus primeiros passos na escolarização, e eles já possuíam vivências com as quais tinham produzido muitos conhecimentos.

Apesar de diferentes idades e tempo afastados da escola, como relatei na apresentação do perfil dos alunos no capítulo 2 (o grupo era constituído por pessoas entre 18 e 53 anos, algumas só trocaram das aulas do diurno pela EJA à noite e outras chegavam a estar afastados por mais de vinte anos das salas de aula), posso afirmar que todas se mantiveram aprendendo e desempenhando funções em sua vida diária, que demandavam certos conhecimentos e habilidades.

168 As ações cotidianas relatadas por meus alunos ao ingressarem no curso, já comentadas no capítulo 2, sofreram significativas alterações com a informatização, por exemplo. Os mais velhos precisaram se adaptar às novas formas de pagar as contas nos caixas eletrônicos, fazer fichas de crediário em lojas, receber salários ou sacar dinheiro. Todas essas práticas devem ser analisadas dentro de contextos sociais e históricos, retratam a cultura e são frutos de políticas e ideologias, porque refletem aspectos como a escolarização e o letramento.

A escola tradicionalmente tem sido responsabilizada pelo acesso à tecnologia da leitura e da escrita e pela aprendizagem das habilidades e atitudes necessárias para seu uso nas práticas sociais, que são conhecidas respectivamente por alfabetização e letramento54. São vistas como aquisição da escrita, alfabetização, as técnicas constituídas pelos procedimentos e habilidades de decodificação dos sinais gráficos, habilidades motoras para usar instrumentos para a realização da decodificação e até a manipulação dos suportes de escrita e leitura. Ao letramento cabe o uso efetivo e competente da tecnologia da escrita, que implica o desenvolvimento de capacidades como ler e escrever variados gêneros, interpretar, comparar.

No entanto, cabe salientar que a alfabetização não é pré-requisito para o letramento, como se comprova pelas análises das pesquisas do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)55, as quais mostram que pessoas com baixa ou

54 A definição e diferenciação entre alfabetização e letramento aparecem pela primeira vez na literatura educacional brasileira, em 1988, na introdução do livro “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, escrito por Leda Maria Tfouni. Internacionalmente o termo aparece nos trabalhos de Barton, Street, Gee e Heath chamados de teóricos dos Novos Estudos do Letramento, em inglês New Literacies Studies (NLS).

55 “O INAF - Indicador de Alfabetismo Funcional - é um indicador que mede os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira adulta. O objetivo do INAF é oferecer à sociedade informações sobre as habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade, de modo a fomentar o debate público, estimular iniciativas da sociedade civil e subsidiar a formulação de políticas nas áreas de educação e cultura” (Instituto Paulo Montenegro. In: <http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina .php?mpg=4.01.00.00.00&ver=por)>. Em 2001, 2003 e 2005 foram medidas as habilidades de leitura e escrita (letramento) e em 2002 e 2004, as habilidades matemáticas (numeramento). A partir de 2007, a pesquisa passou a ser bienal, trazendo simultaneamente as habilidades de letramento e numeramento e mantendo a análise da evolução dos índices a cada dois anos.

169 nenhuma escolaridade apresentaram alto desempenho no teste, enquanto que outras com alta escolaridade, nível superior completo e incompleto, não se saíram bem56.

Além disso, vale lembrar ainda que países desenvolvidos como os Estados Unidos, a França e a Inglaterra, os quais já erradicaram o analfabetismo, apresentam número alto de pessoas com dificuldades para utilizar a leitura e a escrita em tarefas cotidianas. Esses dados evidenciam que o problema não é com o nível de alfabetismo, mas com as práticas sociais ligadas ao letramento.

As pessoas que realizam atividades cotidianas em uma sociedade grafocêntrica, mesmo aquelas que ainda não dominam os códigos gráficos para realizarem suas próprias leituras e escrituras, não podem ser consideradas iletradas, pois não há como lhes atribuir grau zero de letramento. De alguma forma essas pessoas interpretam as informações que precisam e se locomovem pela cidade, tomando ônibus; fazem compras no supermercado, escolhendo produtos; se comunicam com outras pessoas, usando estratégias orais letradas (TFOUNI, 1988);

enfim, realizam suas tarefas diárias e vivem. Essas pessoas podem ser chamadas de não-alfabetizadas, mas não podem ser chamadas de iletradas.

Para os indicadores do INAF a escolaridade é uma das principais variáveis que explicam o desempenho dos testados, já que os dados coletados em 2003 mostram que pessoas com quatro anos de escolaridade não atingiram o nível 2 de leitura57. Dentro dessa perspectiva ainda, outros aspectos se destacam:

56 Os casos que surpreenderam por suas relações inesperadas, receberam análise detalhada das professoras Marta Kohl de Oliveira e Cláudia Lemos Vóvio, publicadas no livro Letramento no Brasil de Vera Masagão Ribeiro de 2003, e compreendem oito pessoas que se autodeclararam analfabetas ou que afirmaram ler e escrever sem ter frequentado a escola, as quais alcançaram os dois níveis mais altos no teste. Em contrapartida, dos cinco casos que ficaram no nível mais baixo de alfabetismo, dois declararam ter nível superior incompleto e três, completo (RIBEIRO, 2003). Os dados referidos são das pesquisas de 2001 e 2003.

57 O INAF classifica as pessoas de acordo com o resultado dos testes em níveis de habilidade: Analfabetismo:

sem domínio das habilidades medidas; Alfabetismo - Nível 1: localização de uma informação simples em enunciados de uma só frase; Alfabetismo - Nível 2: localização de uma informação em textos curtos ou médios, com necessidade de realizar inferências simples; Alfabetismo - Nível 3: localização de mais de um item de informação em textos mais longos, comparação de informação contida em diferentes textos, estabelecimento de relações entre as informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fonte), manutenção da informação textual, mesmo quando contraria o senso comum (INAF, 2011).

170 - 20% dos que não completaram sequer uma série aprenderam a ler e escrever, provavelmente por outros meios que não a escolarização;

- quase um terço dos que completaram de uma a três séries escolares (32%) se encontram ainda na situação de analfabetismo absoluto – não sabem ler e escrever. Outros 51% se mantém num nível muito rudimentar de domínio da leitura e escrita (Nível 1);

- mesmo entre pessoas com 4 a 7 anos de estudo, pouco mais da metade atinge os níveis básico e pleno de habilidade (Níveis 2 e 3);

- só o ensino fundamental de 8 anos (nível de escolaridade obrigatório segundo a Constituição Brasileira) garante um nível pelo menos básico de leitura e escrita para mais de 80%;

- O domínio pleno das habilidades testadas (Nível 3) só é majoritário entre as pessoas com ensino médio completo ou mais. (INAF- Instituto Paulo Montenegro, 2011).

Os estudos realizados por Soares (2003), a partir das análises dos dados do INAF, tentam explicar a discrepância entre grau de instrução e nível de letramento, desvinculando a escola dessa responsabilidade. Soares lembra que pode ter ocorrido uma reversão a níveis de habilidades inferiores aos já atingidos pelo processo de escolarização devido a pouco ou nenhum uso da leitura e escrita, por variadas causas.

Além disso, a pessoa pesquisada pode ter estranhado a situação teste por ter ficado afastada muito tempo das avaliações escolares ou não ter desenvolvido aquelas habilidades específicas na época de sua escolarização. Outra questão ainda foi levantada por Soares: pode ocorrer um distanciamento entre o letramento escolar e o social ou não escolar, fato que explicaria o baixo desempenho no teste de pessoas com alto nível de escolaridade.

Uma hipótese apontada por Soares (2003) para esse distanciamento é o fato da escola realizar atividades de leitura e escrita desvinculadas do contexto social, isto é, a escola faz a interpretação de textos, busca a exploração dos gêneros textuais do cotidiano do aluno; no entanto, as leituras são levadas até eles por cópias em folhas soltas ou em livros didáticos.

A análise descrita acima se atém aos resultados de baixo grau de letramento, mas o que poderia ter acontecido nos casos em que as pessoas têm baixos níveis de escolaridade e alcançaram graus de letramento mais elevados? O letramento não

171 ocorre apenas no período da alfabetização ou na escola, ele se estende por toda a vida da pessoa e de acordo com as práticas sociais que os indivíduos têm pode ir mudando.

O letramento, portanto, é um processo contínuo que faz parte de sociedades letradas, e como tal leva as pessoas a participarem, direta ou indiretamente, de muitas práticas letradas no cotidiano, proporcionando-lhes aumento no nível de letramento.

Para entender melhor o que foi dito é preciso conhecer os conceitos de eventos e práticas de letramento. O primeiro foi proposto por Heath, o segundo por Street, ambos são discutidos por Barton e se constituem “chaves para a compreens~o do letramento como fenômeno social”58 (HEATH, 1982, p. 48).