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Como anteriormente explicitado, esta tese tem por fundamentação te- órica a perspectiva sócio-histórica e cultural de letramento, ancorada na abordagem dialógica da linguagem (BAKHTIN, 2006). Foram utilizadas como suporte bibliográfico para investigar as práticas de uso da lingua- gem escrita as pesquisas do movimento denominado Novos Estudos do Letramento (The New Literacy Studies - NLS) desenvolvidas por Barton (1994), Barton e Hamilton (2005), Gee (2004), Hamilton, Barton e Ivanic (1994) e Street (1984, 1995, 2003a, 2003b). Embora Fischer (2007), ba- seada em Gee (2004), mencione que a utilização do termo “novo” nesses estudos pode ser problemática, pois tudo que é “novo” pode ser caracte- rizado rapidamente como “velho”, a opção em mencioná-lo visa a corro- borar a posição desses autores de que “[...] o que justifica a caracterização ‘novos’ a esses estudos é a idéia de que leitura, escrita e sentido são sem- pre situados em práticas sociais específicas” (FISCHER, 2007, p. 24). Esses estudos buscam detalhar as práticas de uso da língua escrita, de- monstrar sua complexidade e seus significados e a forma como os indi- víduos a utilizam na comunidade de que participam (KALMAN, 2004a). Nesse enfoque, o letramento é entendido como

[...] as maneiras utilizadas pelas pessoas quando consideram a leitura e a escrita vêm em si mes- mas enraizadas em conceitos de conhecimento, de identidade e de ser. Neste sentido, o letramento é sempre contestado, tanto seus significados quanto suas práticas, e assim as versões específicas so- bre ele serão sempre ‘ideológicas’, serão sempre

fundamentadas em uma visão particular do mun- do, e com freqüência em um desejo de que aquela visão do letramento seja dominante e que venha a marginalizar outras (STREET, 2003a, p. 5). O letramento é então visto como práticas, no plural, relacionado às interações cotidianas em diferentes esferas e não como um conjunto de competências cognitivas individuais. Por ser ideológico, esse conceito está intrinsecamente relacionado com questões de identidade e de poder construídas nas interações verbais entre os falantes. Ampliar as práticas de letramento implica em ressignificar a identidade de leitor e escritor, uma vez que modifica as formas de interação com a língua escrita. Essa perspectiva contribuiu com este estudo na compreensão de como as hí- bridas leituras dos adultos em processo de escolarização são aprendidas, apreendidas, significadas e ressignificadas. Possibilita, também, verificar os aspectos heterogêneos dos letramentos, nas práticas de leitura dos jo- vens e adultos dentro e fora da instituição escolar, ou seja, nos seus co- nhecimentos sobre leituras, os quais dependem “[...] dos contextos, dos papéis, dos objetivos e das formas de interação que guiam os sujeitos em atividade” (VÓVIO; SOUZA, 2005, p. 44).

Para a discussão sobre as identidades constituídas no processo de inte- ração e da cultura, privilegiou-se a abordagem dos estudos culturais, com destaque para as contribuições de Bauman (2005), Hall (2009) e Silva, T. (2009). E os estudos sobre as práticas de leitura de adultos em processo de alfabetização, ressaltando a sua pluralidade e desmistificando estereó- tipos existentes, estão ancorados nas contribuições de Abreu (2001, 2010), Galvão e Batista (2005), Goulemot (2001), Kalman (2003, 2004a), Kleiman (2004, 2010), Lahire (2002, 2004, 2005, 2006) e Vóvio (2007a).

A perspectiva de Bakhtin e seu Círculo sobre a dialogicidade da lin- guagem, presente nos gêneros do discurso, compreendendo a língua como fenômeno social e a linguagem como interação verbal, também constitui aporte à presente pesquisa. Os principais conceitos bakhtinia- nos utilizados para compreender as identidades de leitor expressas nos processos discursivos foram: enunciado, palavra, relações dialógicas, sentido, gêneros do discurso e exotopia. Com o apoio desse referencial, buscou-se conhecer as diferentes vozes que constituem o discurso dos adultos que participaram/participam de classes da alfabetização da EJA sobre suas práticas de leitura. Como afirma Bakhtin (2006, p. 327), “a

palavra (em geral qualquer signo) é interindividual”: não faz parte apenas de quem a falou, estando relacionada ao autor, ao ouvinte e àquele que a proferiu antes dele e se abre para o diálogo na grande cadeia discursiva. Abre-se para a reação-resposta, implicando uma atitude responsiva.

Para a definição das práticas de leitura, optou-se pelos conceitos de

disponibilidade, acesso e apropriação25, utilizados por Kalman (2003, 2004a) que estudou as práticas de linguagem escrita de mulheres com pouca ou nenhuma escolarização de uma comunidade mexicana. Tais conceitos ajudam na percepção de como os indivíduos participam das situações mediadas pela escrita. A disponibilidade está relacionada à presença de materiais (diferentes suportes de leitura), lugares e infraes- trutura para utilizar esses materiais (bibliotecas, livrarias, correios...). O

acesso refere-se à oportunidade de os sujeitos participarem de eventos

de leitura e escrita e está relacionado aos processos interativos de uso da língua escrita. A disponibilidade, no entanto, contribui, mas não garante o acesso. Já a apropriação é o domínio efetivo das práticas de leitura e escrita. Por igualmente ter por base a teoria de Bakhtin, Kalman (2003) ressalta que a apropriação corresponde à atitude responsiva ativa do su- jeito diante de um enunciado, uma ação social, já que consiste em apro- priar-se dos enunciados dos outros. O sujeito desenvolve sua autonomia enquanto leitor quando há a apropriação dos conhecimentos que possibi- litam a realização de práticas de leitura. Tais práticas, entretanto, ficam impossibilitadas sem a disponibilidade e o acesso.

Advoga-se que os quatro casos singulares aqui pesquisados configu- ram complexas redes sociais de leitores, que só se explicam com uma análise profunda de realidades específicas articulando-as ao conjunto das relações sociais mais amplas a elas relacionadas. A especificidade nas leituras desenvolvidas pelos indivíduos são fatores que contribuirão para explicitar a pluralidade das práticas de leitura.

Esta tese está dividida em seis capítulos. O primeiro caracteriza-se pela introdução acima apresentada. O segundo capítulo esclarece o pro- cesso de geração de dados desta pesquisa, enfatizando a Educação de Jovens e Adultos no município investigado, os sujeitos desta pesquisa e a maneira como os dados foram sistematizados. O terceiro e o quarto

capítulos baseiam-se em discussões sobre as abordagens teóricas utili- zadas com ênfase aos estudos do letramento, à concepção dialógica de linguagem e à perspectiva plural de leitura. O quinto capítulo analisa as práticas de leitura de cada um dos quatro adultos investigados, organi- zando os dados em identidade de leitor, práticas e eventos de leitura e produções escritas sobre a leitura. Por fim, são feitas as considerações fi- nais, destacando a pluralidade e singularidade das práticas de leitura dos sujeitos investigados, enfatizando a importância da EJA para possibilitar aos alunos a disponibilidade, o acesso e a apropriação de práticas de le- tramento para além das que participam.