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2 O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO

2.3 PROCESSO DE GERAÇÃO DE DADOS

O planejamento metodológico desta investigação foi flexível no sen- tido de se poder captar as vivências e experiências de leitura de cada sujeito. Desde o início, previa-se que a pesquisa não seria realizada es- pecificamente na instituição escolar, pois não se buscava conhecer ape- nas os processos formais de aprendizagem, mas a prática da leitura em distintas esferas sociais. Assim como Kalman (2003), entende-se que no interior de todas as comunidades existem locais em que ler e escrever são formas de comunicação articuladas com as práticas cotidianas. Para efe- tivamente conhecer as práticas sociais de leitura e seus sentidos para os participantes, não bastava apenas investigá-las no ambiente da EJA, seria necessário observar essas práticas em seus diferentes contextos de uso. E apesar de se ter um percurso metodológico previamente elaborado, os

caminhos da pesquisa foram desenvolvidos gradativamente, comparti- lhados e autorizados pelos sujeitos investigados. Esses procedimentos de pesquisa, no entanto, levam a corroborar pensamentos de Lahire (2004, p. 19), para quem “[...] embora a idéia possa parecer perfeita, pura e rápi- da, a realização empírica sempre é imperfeita, impura e lenta”.

Dúvidas surgiram sobre como acompanhar os sujeitos em suas ati- vidades sociais, sem ser inconveniente e nem provocar práticas artifi- cializadas por parte dos entrevistados, elaboradas especificamente para a pesquisa. O espaço escolar é um território de investigação conheci- do, com horários e rotinas estabelecidos, mas as casas, os trabalhos e as atividades de lazer de que os sujeitos participavam seguiam lógicas próprias a serem conhecidas, para se perceber a heterogeneidade das prá- ticas de leitura lá desenvolvidas.

A investigação de Carrano (1999) sobre a vivência de jovens em vá- rios locais da cidade de Angra dos Reis, concebendo a educação como um espaço amplo desenvolvido na vida cultural e ultrapassando os li- mites da escola, contribuiu para essas reflexões sobre a investigação em espaços distintos da esfera escolar. O autor diferencia o “sujeito edu- cacional”, que se buscou conhecer nesta tese, participante de variadas práticas educativas em distintos tempos e espaços sociais, do “sujeito escolar”, definido como o aluno participante das atividades instituciona- lizadas. Nas palavras de Carrano (1999, p. 37):

Ao reconhecermos que as cidades se constituem na multiplicidade de lugares que negociam a homo- geneidade e a heterogeneidade das práticas, assim como a continuidade e a descontinuidade educati- va, podemos estar contribuindo para a compreen- são da totalidade do processo educacional, da qual a escola faz parte. É nesse sentido que considera- mos a cidade e os seus territórios como redes de relações e práticas que configuram um amplo es- pectro dos fatos sociais educativos.

Percebe-se que as distintas esferas sociais estão inter-relacionadas, e as práticas educativas influenciam e são influenciadas por aquelas das quais os sujeitos participam. Na mesma perspectiva, Lahire (2004, p. 38) afirma que, mesmo parecendo esferas sociais autônomas com “[...] espa- ços-tempos específicos, quando se trata de família, escola ou trabalho as

realizações estão muito mais entrelaçadas do que se imagina, quando se começa a detalhar as práticas”.

Para compreender as leituras desenvolvidas na família, na escola, no trabalho e em atividades de lazer de que os sujeitos participavam, as quais estavam inter-relacionadas (apesar de serem distintas), baseou-se o trabalho de campo, primeiramente, em entrevistas compreensivas com os sujeitos para conhecer seu aprendizado escolar da leitura, sua perma- nência na EJA e se aceitariam fazer parte da longa investigação proposta. A opção pela utilização desse tipo de entrevista, realizada durante toda a investigação, ocorreu por ter uma organização prévia, mas flexí- vel, o que permitiu a reestruturação de questões durante a interlocução. Vóvio e Souza (2005, p. 58) ressaltam que as entrevistas permitem “[...] ir além de generalizações estereotipadas ou evasivas e chegar a lembranças detalhadas dos sujeitos”, o que possibilita a compreensão das práticas co- tidianas em que ler é uma atividade comunicativa.

A escolha pelas entrevistas compreensivas nos diferentes momentos da interlocução ocorreu considerando-se que, segundo Lahire (2002, p. 78), “[...] o entrevistado sempre diz sua ‘vida’ (suas práticas, suas opiniões, seus gostos, suas emoções...) através da estrutura de uma interação pesquisador/ pesquisado”. Ao contar sobre sua vida e suas práticas de leitura, os entre- vistados comentavam o que se queria conhecer, mostravam-se como leito- res para mim e a articulação desse procedimento com as observações nas esferas sociais, lócus da pesquisa em momentos previamente combinados, foi uma maneira de aprofundar os conhecimentos sobre onde, o que, como e por que os sujeitos realizam as leituras. A residência dos participantes foi onde se localizou a maior parte das entrevistas, pois nesse espaço os en- trevistados sentiam-se mais à vontade e era o local onde todos afirmaram participar de maior variedade de eventos de leitura.

As observações feitas nos espaços de vivência dos sujeitos durante as entrevistas foram significativas, portanto, uma vez que nem sempre o declarado representa o que efetivamente acontece em situações reais e presenciais de interação. Os locais onde estavam os suportes de leitura nos diferentes contextos sociais e as enunciações dos entrevistados so- bre eles revelam o sentidos e a apropriação ou não das leituras realizadas (KALMAN, 2003). O que realmente fazem é diferente do que falam para mim (professora pesquisadora) que fazem.

Teve-se dificuldade na escolha dos sujeitos para a continuidade da in- vestigação no período de 2009 a 2011 em razão de não mais encontrar

todas as pessoas que cursaram aquela turma da EJA, com a qual trabalhei, no período anterior a esse. E eles precisariam estar dispostos a participar durante todo tempo da pesquisa. Como foi realizada em ambientes priva- dos, exigiu ampla relação de confiança, cumplicidade e respeito entre os envolvidos (pesquisadora e pesquisados). A primeira entrevista com cada um deles foi realizada em novembro e dezembro de 2009 na casa de cada sujeito. É importante ressaltar que Jonatas, apesar de não ter participado de toda a investigação, durante a primeira entrevista teve ciência da duração, dos objetivos e das finalidades da pesquisa e aceitou participar do estudo.

Como já afirmado, a experiência de ter sido professora de três sujei- tos desta pesquisa e ter acompanhado suas aulas, no segundo semestre de 2007, contribuiu para o estabelecimento dos laços de confiança. Eu também participei de algumas aulas (na EJA) da aluna não pertencente à turma investigada, que se mostrou, a todo o momento, interessada e dis- ponível a participar da pesquisa. Conforme Martins (2004, p. 294), para que uma pesquisa qualitativa “se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador, disponha-se a falar sobre sua vida, introduza o pes- quisador no seu grupo e dê-lhe liberdade de observação”.

Os entrevistados permitiram que eu entrasse em territórios para mim desconhecidos. Durante as entrevistas, eles falavam sobre suas vidas, des- tacavam as leituras realizadas e manifestavam posicionamentos sobre a concepção de leitura e leitor, formados pelas diferentes vozes que consti- tuíam seus enunciados. Os sujeitos mostraram-se responsivos durante as entrevistas e atividades propostas44 (fotografar os materiais de leitura, ler

textos do cotidiano, apresentar os materiais de leitura existentes em casa...), e as pessoas de suas famílias (filhos, esposas...) que compartilhavam das práticas de letramento também forneceram importantes informações.

Neste estudo, com base em Bakhtin (2006), compreende-se que não é possível conhecer o outro na totalidade, é fundamental, por conseguin- te, levar em conta o contexto, considerar o lugar de onde se observa para ver aquilo que o próprio sujeito não consegue ver, pois o olhar do outro completa o dele. Nas entrevistas, quando os sujeitos falavam de suas ex- periências com a leitura, era um olhar incompleto, construído no proces- so dialógico, em que compreendiam e desenvolviam novos sentidos para suas próprias práticas, com base em suas experiências e no olhar do ou- tro que questionava (eu a pesquisadora) e possuía um excedente de visão 44 As atividades propostas serão apresentadas detalhadamente no decorrer desta seção.

relacionado com a singularidade, o momento e o lugar em que estava si- tuado. É pela alteridade que é possível se ver e que a identidade é cons- tantemente construída. Como afirma Bakhtin (2006, p. 21),

Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inte- gralmente urge fundir-se em um todo único e tornar- se uma só pessoa.

Foi necessário o distanciamento da minha posição, o estranhamento, para que eu pudesse conhecer os eventos de leitura que os sujeitos reali- zavam, sem ter como base apenas os eventos por mim conhecidos e va- lorados. Para realizar essa forma de análise, segundo Bakhtin (2006, p. 23), é necessário

[...] entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retomado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha von- tade e do meu sentimento.

Por ser uma continuidade da pesquisa desenvolvida em 2007 (AGUIAR, 2009), tem-se um período não investigado de formação des- ses sujeitos como leitores que foi o ano de 2008. Procurou-se conhecer as práticas de leitura desenvolvidas nesse período com a realização da entrevista e com o recolhimento para análise dos cadernos escolares uti- lizados naquele período. As lembranças de 2008 relatadas nas entrevis- tas foram confrontadas com os dados expressos nos cadernos escolares daquele período. Sabe-se que muitos dos processos de ensino e apren- dizagem não são relatados nos cadernos, como as interlocuções entre professores e alunos, alunos e alunos, atividades de leitura desenvolvi- das em sala que foram somente oralizadas. Por não se ter acompanhado esse período dos letramentos dos adultos investigados, não é possível reconstruir as experiências de leitura que tiveram na EJA, caso tenham frequentado a instituição em 2008. Contudo, os cadernos escolares e as

entrevistas permitiram a aproximação “[...] do passado e reconstruí-lo de modo parcial e com um enfoque determinado” (VIÑAO, 2008, p. 25).

São também materiais de análise esses cadernos escolares utilizados pelos estudantes durante todo o período que permaneceram na EJA. Eles são importantes instrumentos para a pesquisa, pois “[...] permitem estu- dar tanto os objetos de ensino que foram, de fato, escolhidos e ensinados pelas professoras quanto as atividades escolares e outros aspectos que compõem a disciplina escolar” (BUNZEN, 2009, p. 145). Nos cadernos, verificam-se as leituras priorizadas naquele contexto e não os eventos de letramento, pois esses ocorrem no processo de interação.

Outro instrumento de análise é o “caderno de anotações dos eventos de leitura” entregue a cada sujeito na primeira entrevista, para fins da pesqui- sa deste doutorado, em 2009. Foi solicitado que eles anotassem ali tudo que liam e que relatassem suas experiências de leitura. A quantidade dos textos ou a forma como deveriam ser escritos não foram definidas, e cada sujeito utilizou o caderno de anotações dos eventos de leitura de forma diferencia- da. Celina o utilizou como um diário para comunicação com comigo; nele contava sobre sua vida e as leituras que realizava. A resposta ao que escre- veu era esperada com ansiedade pela entrevistada em cada visita. Aroldo fez anotações apenas no princípio da pesquisa, relatando em frases o que lia a cada dia. Zenir, no início das entrevistas, preferiu não escrever no ca- derno, mas depois optou por contar o seu cotidiano e por anotar frases que lia e considerava engraçadas. Jonatas não escreveu no caderno, preferindo deixar para utilizá-lo na EJA quando retornasse à instituição.

Todos os dados foram anotados em um diário de pesquisa, comple- mentado pela utilização de gravação em áudio com o consentimento dos participantes. Não se considerou adequado fazer um acompanhamento sistemático do cotidiano dos sujeitos; como já se afirmou, essa prática se- ria cansativa e poderia gerar desconforto aos participantes.

Para elucidar as etapas da empiria, diferentes para cada pessoa, serão comentados os locais e o período das visitas realizadas. Celina foi entre- vistada cinco vezes, durante os anos de 2009 a 2011, em sua casa. Ela foi questionada sobre os locais que frequentava socialmente, e confessou ser caseira e gostar apenas de ir para a escola. Por esse motivo também foi feita a observação participante com Celina na EJA e na aula de informática de que participava em outra instituição. Durante a pesquisa, Celina trocou e- -mails comigo, enviando recados e mensagens com textos que considerava interessantes. Também foram recolhidas para análise as avaliações que as

professoras fizeram sobre Celina e duas cartas trocadas entre elas. No úl- timo dia de entrevista, a participante registrou fotograficamente os locais onde havia materiais escritos em sua casa. Esse registro foi importante para a percepção da disponibilidade dos materiais impressos naquela esfe- ra e a importância que a entrevistada lhes atribuía.

Zenir participou das aulas na turma investigada em 2007 e de uma entrevista realizada naquele período. Posteriormente, foram feitas quatro entrevistas em sua casa, no período de 2009 a 2011, pois, estando apo- sentado, o entrevistado relatou que o local onde passava a maior parte de seu tempo era em sua residência. Durante as interlocuções com Zenir, revelou que sua esposa escrevia a lista de compras para ele ir ao super- mercado. Em uma das entrevistas, Zenir comentou: pelo menos quando

ela anota as coisas para eu comprar no lugar do tomate eu não compro mais cebola [risos]. Ela faz as notinhas dela para eu comprar as coi- sas, mas as notinhas dela são meio garranchos também (Zenir, entrev. –

05/11/2010). Ao perceber que esse local era frequentado constantemente pelo entrevistado, optou-se por fazer uma observação participante com ele no momento em que realizava as compras solicitadas pela esposa. Zenir aceitou a proposta e, em dia e horário previamente marcados, ob- servou-se como ele realizava suas compras, quais materiais lia e como a esposa organizava a lista de compras. Além desses dados sobre as práti- cas de leitura de Zenir, recolheram-se para análise alguns textos que es- creveu, por solicitação de uma professora da EJA, sobre a sua história de vida, e versos que ele copiava de revistas e livros em um caderno guar- dado em sua residência. Na última entrevista, assim como Celina, Zenir fotografou os materiais de leitura presentes em sua residência.

Aroldo foi observado durante as aulas na EJA, no ano de 2007. No pe- ríodo de 2009 a 2011, foi entrevistado cinco vezes, quatro em sua residên- cia e uma no local de trabalho. Aroldo informou durante as entrevistas que não participava com frequência de atividades de lazer e que, apesar de a mulher ser religiosa, não ia aos cultos junto com ela. Durante todas as entrevistas ele citou o trabalho como a esfera social que ocupa maior tempo e importância em sua vida. Por esse motivo, considerou-se funda- mental conhecer esse local e as leituras desenvolvidas por ele enquanto trabalha. Aroldo também registrou fotograficamente os materiais de lei- tura disponíveis em sua casa.

Jonatas fez parte da turma investigada em 2007. Várias de suas falas e comentários sobre as práticas de leitura estão registradas em diário de

pesquisa. Foram feitas duas entrevistas em sua casa, no período de 2009 a 2011. Durante as interlocuções, Jonatas relatou que sua vida era sempre igual e que ele se tornaria repetitivo com a continuidade da pesquisa. Ao ser inquirido sobre a possibilidade de eu realizar uma visita em seu trabalho, ele falou que eu não encontraria nenhum material de leitura na pedreira em que trabalhava e não considerou o local adequado para o desenvolvimento do estudo. A pesquisa não teve continuidade, pois o entrevistado não com- parecia aos encontros marcados, como anteriormente citado.

A variedade de situações investigadas, típicas de pesquisas qualita- tivas, foi fundamental para a obtenção do vasto conjunto de histórias vivenciadas no percurso de socialização e práticas de leitura declaradas pelos sujeitos. O processo dialógico desenvolvido nas interlocuções foi fundamental para conhecer como eles se constituem leitores.