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2.2 A ideia de interpretação e a tipologia dos conceitos na filosofia moral de

2.2.2 Conceitos interpretativos

A interpretação como mediação entre as práticas sociais e o entendimento, entre fato e valor, foi explicitada nos parágrafos acima. Mas ainda não está claro como o projeto de uma epistemologia integrada para a moralidade está relacionado à ideia da interpretação como uma manifestação peculiar da atividade intelectual. A chave são os conceitos interpretativos. Por estar fundada em noções que remetem a valores é que a argumentação moral não pode precindir da construção interpretativa do significado de tais ideias. Para Dworkin, é importante distinguir a interpretação como um domínio independente porque o raciocínio moral é interpretação de conceitos94. Existe uma relação íntima entre entender o significado de conceitos interpretativos e formular teorias normativas. Os valores que orientam as diferentes práticas sociais são compartilhados por seus membros através de conceitos. Quais valores corrigem as práticas não é difícil de indentificar – as pessoas em geral concordam em instâncias paradigmáticas de cada conceito – mas precisamente como entendê-los é um assunto profundamente conflitivo95.

Há uma certa analogia entre divergir sobre o uso de palavras e disputar o valor de uma prática social. Às vezes, quando divergem sobre o significado de um conceito, as pessoas estão mesmo tendo problemas em identificar em que sentido um termo está sendo usado. Isso acontece quando, por exemplo, alguém marca um encontro no banco (bank); é preciso esclarecer se usa “banco” no sentido de beira do rio ou de instituição financeira96. Outros exemplos de disputas meramente verbais são os casos limítrofes do que pode ser considerado um livro – que tamanho um panfleto deve ter para passar a ser considerado um livro?97 – e os critérios para definição de “casamento” – se casamento significar somente uma união formal entre homem e mulher, então “casamento gay” não faz sentido98.

Essas disputas meramente formais são típicas do que Dworkin denomina de conceitos criteriais. Tais conceitos são compartilhados somente na medida em que os critérios para sua definição são conhecidos. Isso faz com que

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Ibid., p. 142. Mais adiante será apresentado como esse argumento está na origem das objeções de Dworkin a Hart nos debates sobre a teoria do direito.

94 Ibid., p. 157. 95 Ibid., p. 160/161. 96 Ibid., p. 158/159. 97 Ibid.,p. 158. 98 Id., 2006, p. 9/10.

os desacordos sobre seu significado sejam frívolos99. No exemplo do casamento gay, alguém com uma ideia mais tradicional do casamento pode defender que “casamento” tem um significado e que uniões de pessoas do mesmo sexo nunca poderão ter esse nome. Fica claro que essa pessoa não oferece razões contra o casamento gay, mas contra o uso da expressão.

Existem conceitos que remetem a entidades distinguíveis na natureza, eles são conhecidos como conceitos de tipos naturais (natural-kinds concepts)100. As ideias relativas a coisas existentes na natureza de alguma forma independem dos critérios consensuados para seu entendimento. O conceito de tipo natural tem a identidade fixada na natureza e ele é compartilhado quando usado para fazer referência ao mesmo tipo natural101. Seus critérios de uso são fundamentalmente irrelevantes para a compreensão do significado. No exemplo de Dworkin, dúvidas sobre se uma criatura é ou não um leão se resolve com um exame profundo sobre sua natureza, através de um exame de DNA ou de outra técnica confiável, independentemente dos critérios usuais do termo “leão”102. O exame de DNA nesse exemplo constitui um teste aceitável para dirimir contravérsias entre quaisquer pessoas que compartilhem o conceito de leão. Essa característica aproxima conceitos criteriais e conceitos de tipos naturais: eles são compartilhados junto com um teste decisivo sobre como usá-los – por um entendimento verbal no primeiro caso e por um investigação sobre o objeto no outro103.

Uma terceira categoria de conceitos, a dos chamados interpretativos, se distingue das duas outras por não oferecer um teste consensuado por aqueles que compartilham um conceito específico. Significa que eventuais divergências sobre o conteúdo de um conceito não podem ser resolvidas por uma instância neutra. Conceitos políticos como os de liberdade e igualdade provocam disputas que nenhuma análise conceitual pode solucionar104. Essa divergência insolúvel entre concepções reflete o caráter valorativo desses conceitos. A descrição da prática a que eles se referem é contestada porque é preciso definir qual a caracterização da prática que melhor realiza um determinado valor a ela atribuído105. Como para valores não há evidências, também não há um teste neutro em relação às diferentes posições para avaliar qual é melhor.

Assim, conceitos interpretativos são caracterizados pela profunda divergência quanto ao seu significado. Um mesmo conceito comporta inúmeras

99 Id., 2011, p. 158.

100 Id., 2006, p. 10 e 152-154; Id., 2011, p. 158. 101

Ibid., p. 159. Em outras palavras, é a extensão – ou o conjunto de objetos a que o conceito faz referência – que determina o conteúdo semântico desses conceitos, e não o contrário (SIMCHEN, 2003, p. 15) 102 DWORKIN, 2011, p. 159. 103 Ibid., p. 160. 104 Id., 2006, p. 147/148; Id., 2011, p. 162. 105 Id., 2006, p. 150.

diferentes concepções106. Mas só se pode dizer que um conceito é compartilhado se houver um acordo mínimo sobre quais são suas instâncias paradigmáticas – exemplos de situações sobre os quais não há dúvidas quanto a aplicação do conceito. Esse consenso mínimo é necessário para que se possa dizer que um valor efetivamente incide sobre as relações sociais. Pode-se dizer que, numa mesma comunidade linguística, a aceitação de alguns casos paradigmáticos é determinante para que se possa dizer que o conceito é compartilhado. Os debates entre diferentes concepções de justiça pressupõe, para que se possa dizer que se discute sobre o mesmo conceito de justiça, que os adversários concordem com situações de extrema iniquidade – a taxação de uma classe pobre laboriosa em benefício de outra rica e ociosa, por exemplo107. O quanto de consenso prévio é requerido para que os participantes admitam estar discutindo diferentes concepções de um mesmo conceito intepretativo – ao invés de estarem simplesmente falando de diferentes conceitos criteriais – é, por si só, um problema interpretativo. Não existe uma perspectiva externa para definir a natureza dos conceitos108.