• Nenhum resultado encontrado

4.2 Conceitos interpretativos e teoria moral

4.2.2 Realismo semântico

No segundo capítulo, foi descrita a posição de Putnam denominada de realismo pragmático, segundo a qual a noção de objetividade não existe fora das convenções e teorias que orientam e corrigem os diversos usos da linguagem344. Além dessas suas preocupações epistemológicas, uma outra, que de certa forma está relacionada345, diz respeito aos diversos sentidos em que os termos da linguagem natural têm significado. Contra uma tendência tradicional de se identificar significado com a ideia a que o termo remete – a sua intensão (intension) ou conceito – e, consequentemente, com um determinado estado psicológico346, Putnam defende que, em algumas situações, faz sentido pensar na situação inversa, na qual a extensão do termo – o conjunto de objetos a que ele faz referência – determina seu significado. Em tais casos, é possível considerar que duas pessoas que conheçam um mesmo termo estejam exatamente no mesmo estado psicológico, mas que o termo tenha, para cada uma delas, diferentes extensões347. É isso que acontece com os termos de tipos naturais.

O argumento em sua forma completa não precisa ser explicado aqui. Em linhas gerais, para entender o papel da extensão na determinação do significado, Putnam propõe que se pense em um mundo – a “Terra gêmea” (Twin Earth)348 – que é em quase todos os aspectos igual ao mundo verdadeiro, inclusive em relação ao estado psicológico das pessoas que o habitam. A única diferença é que, na Terra Gêmea, o líquido que é chamado “água” tem as mesmas propriedades macroscópicas que a água verdadeira, mas com uma fórmula química diferente – representada por “XYZ”. Putnam explora a questão relativa ao significado de “água” nos dois mundos. Considerando que a estrutura molecular da água é facilmente identificada, pode-se facilmente concluir que a mesma palavra “água” designa coisas diferentes nos dois mundos. Porém, retornando a um passado quando a estrutura química da água não era conhecida, uma pessoa e sua equivalente na Terra Gêmea presumivelmente estariam no mesmo estado psicológico ao entender a palavra

344 PUTNAM, 1987, p. 49. 345

Brian Bix lembra que a relação entre o realismo semântico e o realismo metafísico – posição que Putnam combateu – não é direta. Como ficará claro mais adiante, ainda que alguns autores identifiquem as duas posições, o realismo quanto à referência – pelo menos quanto aos nomes próprios e aos termos de tipos naturais – não exige uma noção de realidade independente da linguagem (BIX, 2003, p. 283). Ele exige apenas um nexo causal entre extensão e significado (SIMCHEN, 2007, p. 221).

346 PUTNAM, 1975, p. 218/219. Um exemplo de que pode haver significados diferentes de

termos que remetem às mesmas coisas são os termos “criaturas com coração” e “criaturas com rim” – no original, eles estão no singular. Ambos presumivelmente se referem às mesmas criaturas, mas têm sentidos diferentes, seus usos não são equivalentes (Ibid., p. 217).

347

Ibid., p. 222.

“água”, apesar de não estarem se referindo aos mesmos líquidos349

. Assim que a diferença fosse descoberta, o significado de “água” precisaria ser corrigido.

A razão para isso diz respeito à lógica dos tipos naturais. A definição de tais termos frequentemente depende, direta ou indiretamente, de uma ostentação – apontar para um membro paradigmático do tipo em questão. O caso paradigmático tem propriedades que são as mesmas dos outros membros. Essa relação – ser o mesmo que os outros – é anulável, pois depende de uma teoria acerca da natureza do tipo350. Ou seja, algo que é abrangido por um termo pode deixar de sê-lo caso fique provado que ele não compartilha as propriedades relevantes.

Esse aspecto da teoria de Putnam – a possibilidade do significado de tais substantivos variarem de acordo com o conhecimento da realidade, seu componente indexical351 – pode ser chamado de sensibilidade ao ambiente da comunidade linguística352. Um segundo aspecto diz respeito a uma questão social353. O conceito de água, ou de qualquer outro tipo natural, está sujeito às teorias científicas acerca da natureza molecular da água. Acontece que, apesar de muitas pessoas utilizarem “água”, poucas delas são capazes de verificar sua estrutura molecular. Existe na comunidade linguística uma divisão de trabalhos, de forma que aqueles sem conhecimento técnico deferem aos que possuem tal conhecimento a definição de critérios para a determinação e correção do significado354. Nesses casos, pode-se dizer que a maior parte das pessoas, a rigor, não é capaz de aprender os significados, mas apenas “‘adquirir’ as palavras”355

. Ou seja, os falantes comuns precisam ter apenas um nível mínimo de competência para usar adequadamente tais palavras. Este nível de competência tem muito mais a ver com convenções – com quais são as propriedades que, em determinado contexto, remetem mais facilmente ao tipo em questão, por exemplo – do que com teorias científicas356.

Há que se fazer uma distinção entre os objetos que são apontados na definição ostensiva do termo e o conjunto de objetos que compõem a extensão do termo. É esta última que está sujeita à melhor teoria disponível sobre o tipo; é ela que, na divisão socio-linguística de trabalho, está a cargo de um grupo reduzido de especialistas. O outro conjunto – os estereótipos do termo357 – estão relacionados ao aspecto ambiental. Acordos sobre os usos de um termo são feitos com base nos estereótipos que estão acessíveis. Assim, os falantes normais têm competência para identificar estereótipos. Por exemplo, os 349 Ibid., p. 224. 350 Ibid., p. 225. 351 Ibid., p. 234. 352 COLEMAN, SIMCHEN, 2003, p. 16. 353 Loc. cit.

354 PUTNAM, op. cit., p. 227/228. 355 “‘acquire’ words” (ibid., p. 248). 356

Loc. cit.

exemplos paradigmáticos da referência de “ouro” indicam que “ser um metal amarelo” é um de seus critério de uso. Na maior parte das vezes, pouco importa que a cor característica do ouro não seja a cor do ouro puro, mas produto de uma liga de metais; o ouro impuro também é “ouro”358

. A situação seria outra se o metal amarelo fosse, por exemplo, pirita de ferro359.