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CONCEPÇÃO DE LITERATURA

Foto 32: Joa lendo para os colegas

2 A LITERATURA INFANTIL PARA A / NA

3.2 CONCEPÇÃO DE LITERATURA

Se indagarmos sobre os motivos da conhecida discussão em torno da criação de uma noção de literatura, encontraremos, historicamente, repostas divergentes. Vejamos uma das considerações sobre a literatura que Romano (1989, v 17, p. 177) expõe:

[...] litteratura (Quintiliano) vem de littera (em grego gramma) “letra do alfabeto” (de onde grammatike): é, pois uma conexão com os caracteres escritos ou impressos. No nosso século XIV, literato indicava o alfabeto e o homem (laico) de saber e de ciência, mas também “escrito com letras” (falava-se de <<mármore literato>>. Com o Renascimento, o termo assume um significado próximo do de <<pessoa culta>>. Entre os séculos XVII e XIX, “literatura” indica uma especialização, uma atividade e uma prática.

Nessas considerações, encontramos pistas sobre a histórica querela entre formalistas e não formalistas. A primeira questão que nos salta aos olhos é o reconhecimento de uma das faces dessa discussão: a consideração da linguagem como sistema arbitrário e seus elementos. É sobre esse ponto que Bakhtin dirige sua principal crítica aos formalistas, afirmando que eles não refletiram sobre os próprios fundamentos teórico-filosóficos de sua doutrina, já que, por compartilharem das mesmas acepções dos positivistas, afirmavam estar praticando ciência que buscava a verdade, esquecendo-se, dessa maneira, de que os pressupostos que sustentavam eram arbitrários.

Na primeira metade do século XX, essa perspectiva também se inseriu no contexto dos estudos literários: “[...] a poética agarra-se à lingüística, temendo afastar-se um passo dela, almejando até mesmo a ser apenas um ramo da ciência” (BAKHTIN, 2003, p. 17). Aqui, percebemos a incoerência dessa perspectiva, pois ela se contrapõe a uma dimensão que é intrínseca às produções humanas, ou seja, a sua participação na unidade da cultura.

Para Bakhtin, a linguagem literária é vista numa dimensão ampla, que extrapola a perspectiva formalista ou morfológica6 em voga no período em que realizava seus estudos. Constata-se, assim, que esse filósofo da linguagem não desarticulou a poiesis (criação) da cultura humana, o que está presentificado no seu conjunto de estudos que realizou sobre essa temática, que, segundo Tezza (2006), vai da filosofia à teoria da literatura, passando por uma teoria da linguagem.

6 Que se constituiu num sistema de juízos científicos independente dos problemas da essência da arte em geral.

Os formalistas utilizavam a estética material que tinha como base o positivismo empírico. Em outras palavras, buscava-se compreender a forma artística como forma de um dado material dentro de sua definibilidade e conformidade físico-matemática e lingüística (BAKHTIN, 1993).

A literatura nos estudos bakhtinianos é vista como obra de arte literária constituída pelas diferentes vozes sociais que compõem um sistema de linguagens. A arte não é vista como especializada, e sim rica, pois o artista é um artesão que trabalha com a vida, que é para ele seu sopro vital. A forma estética transfere a realidade para o plano fundamental da arte submetendo-a a uma nova unidade. Assim sendo, a atividade estética não cria uma nova realidade inteiramente. Bakhtin (1993, p. 37) afirma:

Não pode ser destacado da obra de arte um elemento real qualquer como sendo um conteúdo puro, como, aliás, realiter não há a forma pura: o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são indissolúveis para a análise estética, ou seja, são grandezas de ordem diferente: para que a forma tenha um significado puramente estático, o conteúdo que a envolve deve ter um sentido ético e cognitivo possível, a forma precisa do peso extra-estético do conteúdo, sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma.

Bakhtin (1993) sinaliza que a estética se realiza através do momento do conteúdo, do material e da forma de maneira complexa e singular. Na criação artística, a estética deve determinar a composição do conteúdo fora do objeto estético (conteúdo da contemplação artística), com a finalidade de se conhecer que significado tem o material para o objeto da criação e como se dá sua organização no exterior da obra. É nesse sentido que, para Bakhtin, a literatura se insere na cultura humana.

Por esse motivo, consideramos os estudos bakhtinianos como marco fundamental para se pensar a literatura em sua relação com a sociedade, por sua capacidade de abranger os processos, ideológicos, históricos e sociais envolvidos nessa relação.

Historicamente, a literatura tem tido inserção nos diferentes contextos sociais, inclusive em instituições como a escola, aspecto que também já foi salientado no capítulo dois desse estudo. Malard (1985, p. 8) revela que, no Brasil, o ensino da literatura é o mais antigo. Para a autora, “[...] começou nos primeiros colégios fundados aqui pelos padres jesuítas que se transferiram para as terras do novo mundo em missão da catequese”.

Malard (1985) evidencia duas concepções de ensino de literatura que fizeram parte da história da educação no Brasil, principalmente a partir da segunda metade do século XX: literatura como “belas-letras” e literatura como artefato textual.

Segundo a autora, no ensino da literatura concebida como “belas-letras”, a arte da palavra era bela em si e para si, e os autores eram considerados gênios inspirados que viviam num mundo desligado da sociedade. Nessa perspectiva, na escola e nas faculdades de letras, era oportunizada apenas a memorização de nomes de grandes autores, o que tinha implicações sobre o ensino da literatura, que se encontrava distanciado da realidade dos alunos pelo fato de não terem contato direto com as obras. Assim, Malard (1985, p. 9) nos diz que, na

[...] década de 1950, era comum encontrarem-se alunos do então curso secundário que sabiam de cor um número respeitável de escritores e os nomes de suas obras sem terem lido sequer uma delas, ou pequena parte que ultrapassasse as duas páginas da Antologia.

A concepção de ensino de literatura como artefato textual apareceu num momento em que estavam acontecendo transformações significativas nos estudos da literatura nacional, o que ocorreu, segundo Malard (1985), por causa da relativa substituição da perspectiva anterior pela inserção no ensino literário das biografias, seguidas da lista de obras e das breves críticas a um conjunto de textos. Nessa perspectiva, o texto era tido como portador de segredos a serem desvendados pelos alunos, ou seja, o

[...] poema servia maravilhosamente para o método, por ser normalmente um texto curto e, conseqüentemente, possível de ser analisado em profundidade. Nessas análises, a imaginação do professor voava longe [...] Os estudantes, então, sem a bagagem de leituras do mestre e sem um trato mais íntimo com a literatura, assistiam às aulas desconfiados e descrentes (MALARD, 1985, p. 10).

Posteriormente, esse método foi substituído pelo ensino das escolas literárias, por meio do qual se decoravam os períodos de épocas, os contextos históricos e seus autores. Esse método também não concebia a literatura na sua dimensão artístico- cultural.

Com esses breves apontamentos, tecidos a partir da obra de Malard (1985), percebemos a implicação das correntes de pensamento de base linguística e subjetivista no trabalho com a literatura na escola e os problemas da assunção dessas perspectivas no que se refere à concepção da literatura presentificada na escola brasileira ao longo do século XX.

Pensamos, assim como Malard (1985), que o ensino da literatura deve seguir por novos caminhos. Diante da velocidade das transformações no mundo, é preciso perceber a literatura de forma ampliada7. Assim, concordamos com as considerações materializadas na Enciclopédia Einaudi (ROMANO, 1989, v.17, p. 194) a esse respeito:

[...] nossa cultura literária vive numa crescente homogeneidade das condições de produção (estatuto socioeconômico do autor, sua formação e horizonte intelectual), de distribuição (produto livro e seu espaço social) e de consumo (camadas de leitores, modos e tempos de leitura). Mas, ao mesmo tempo, continua a multiplicar e fixar os desníveis dos <<valores>>. O resultado visível é de tendencial identificação entre futilidade (ou subliteratura) e leitura/escrita como dever cultural. É o fim tanto da literatura como distracção, entretenimento, surpresa e aventura, como da literatura como solene exercício do espírito. Não é que já não se escrevem (ou não se interpretem, se já escritas) obras pertencentes a ambas as vertentes; mas a sociedade parece ter tirado o seu mandato à literatura, não apenas o seu mandato moral e intelectual. A literatura assemelha-se cada vez mais a um enorme edifício abandonado, lugar de trânsito e quase pedreira para tantas disciplinas, da lingüística à filologia, da antropologia cultural à psicanálise, da investigação histórica à filosófica.

Nesse sentido, acreditamos que a literatura tem que ser considerada na sua dimensão social, histórica, artística e cultural, ou seja, como unidade de sentido nas situações em que ela aparece na vida dos sujeitos, nos diferentes espaços sociais, inclusive na escola. Contudo, nos dias de hoje, defendemos a idéia de Malard (1985), ou seja, de que a literatura é uma prática social que precisa constituir-se como tal pelos sujeitos que a escrevem e a leem. Sobre essa questão, a referida autora alerta que a literatura é prática social

[...] no sentido de atividade humana em intenção transformadora do mundo, que expressa o peculiar da relação do homem com o mundo. Já não se dá mais crédito ao valor eterno e universal da linguagem literária em si, como produto da genialidade do autor. A literatura é uma prática historicizada,

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Não perdendo de vista suas especificidades axiológicas, no que se refere às características do domínio da arte literária, como Bakhtin indica em sua obra “Questões de literatura e estética: a teoria do romance”.

influenciada por valores defendidos pela classe que domina a sociedade e pelos da classe que a ela se contrapõe. Existe em determinado tempo e espaço históricos projetados no prosseguir da história (MALARD, 1985, p. 11).

Nessa direção, a literatura é tomada como uma arquitetônica constituída por uma pluralidade de vozes dos discursos da tradição e do futuro entretecidos. O trabalho com a literatura nas instituições educativas, devido às suas potencialidades artísticas e culturais, deve estar articulado à formação de leitores de textos e da vida, e não mais a transmissão de um patrimônio já constituído ou consagrado, ou de conhecimentos eminentemente lingüísticos.

Essas foram as idéias tecidas no contexto das produções dos autores referenciados nesta parte do texto, que orientaram nosso olhar no desenvolvimento dessa pesquisa.