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(iii) Projeção de duas ou mais situações futuras em que uma é cotemporal a outra:

OS CAMPOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.2.1 Concepção de gramaticalização – e outras implicações sobre a concepção de língua e de gramática

Uma das grandes questões a que se dedica o funcionalismo norte-americano tem sido o processo de constituição da gramática, fenômeno visto como fortemente afetado pelos usos linguísticos, pelos motivos apresentados na seção anterior. Pode-se dizer, portanto, que esse campo funcionalista se dedica à compreensão de processos contínuos e graduais que fazem com que formas e/ou funções que estiveram num estado X passem a um estado Y, esse último caracterizado, via de regra, por ser um estado mais abstrato e de uso mais automático e regular (em termos de processamento), ao que se chega por meio de muitos estágios sucessivos de mudança. Esse processo de constituição da gramática ou esse processo de mudança linguística é o que se denomina gramaticalização, vista como

[...] um ramo da linguística que se dedica a duas questões: (i) um quadro investigativo para estudar as relações entremateriais lexicais, gramaticais e

construções na língua, tanto diacrônica quanto

sincronicamente, em línguas particulares/ou interlinguisticamente; (ii) um termo que se refere à mudança pelo qual itens lexicais e construções vêm em certos contextos linguísticospara servir

funções gramaticaise, uma vez gramaticalizados,

gramaticais. (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p.

18; grifos nossos).142

Por essa especificação, a gramaticalização143, em qualquer uma de suas designações (ou quadro investigativo ou processo de mudança pelo qual passa um item da gramática), evoca a relação entre forma e função e, assim, indicia também a imbricação dos conceitos de gramática e de língua, como temos argumentado. Se a relação forma- função é o que está em questão no processo de constituição da gramática, também é o que está em questão na própria concepção de língua dos estudos funcionalistas, como se vê em excertos que admitem que língua também pode ser definida “como um sistema simbólico de pares de forma e de sentido [leia-se, esse último termo, função/significação), [sendo a gramaticalização] a teoria das relações entre pares de forma-sentido” (OLIVEIRA, 2015, p. 23; grifos nossos).

Uma vez que a gramática é vista como a estrutura da língua em sua face mais regular e automática, considerações do campo funcionalista sobre o processo de gramaticalização vêm requerendo uma ampliação em relação ao próprio conceito de gramática (e de língua). Hopper (1998, p. 148) assim se pronuncia quanto à questão: “[u]ma visão mais ampla de gramaticalização exige uma modificação da nossa perspectiva sobre gramática, para uma que conceba a estrutura da língua como intrinsecamente instável e não fixa, ou seja, como emergente”144 (HOPPER, 1998, p. 148; grifos nossos).145

142

“For us it is a two-pronged branch of linguistics: (i) a research framework for studying the relationships between lexical, constructional, and grammatical material in language, diachronically and synchronically, both in particular languages and cross- linguistically, and (ii) a term referring to the change whereby lexical items and constructions come in certain linguistic contexts to serve grammatical functions and, once grammaticalized, continue to develop new grammatical functions”.

143

Cf. diversas definições de gramaticalização em Campbell e Janda (2001).

144

Ao final dessa consideração, o autor ainda sugere que, pensando de um ponto de vista mais amplo, o termo gramaticalização talvez pudesse ser substituído por termos como estruturação e rotinização, emprestados do campo da sociologia, em referência aos trabalhos de Giddens (1984) e de Haiman (1994). Cf. referência desses autores em Hopper (1998).

145

“A wider view of grammaticalization demands a modification of our perspective on grammar, one which sees structure in language as intrinsically unfixed and unstable, in other words as emergent”.

Numa visão funcionalista moderada, contudo, admite-se a coexistência de emergências (/inovações) e regularidades, flexibilidades e estabilidades linguísticas. Pode-se compreender língua como um contínuo de possibilidades de usos linguísticos em que, numa linha imaginária, usos criativos (emergentes, flexíveis) estão mais à esquerda, e usos rotinizados ou mais gramaticalizados, à direita. Entre um extremo e outro, os usos são caracterizados em termos de graus: menos gramaticalizados, conforme se aproximam do polo mais à esquerda do contínuo; e mais gramaticalizados, conforme se aproximam do polo mais à direita, havendo, inclusive, usos ambíguos.

É nessa direção que Hopper e Traugott (2003, p. 2) assumem que na língua há uma “tensão entre o que é fixo e menos fixo [tendo em vista] a relativa indeterminação da língua”146

, por ter que se compatibilizar a dimensão gramatical à dimensão pragmático-discursiva (cf. 2.1). Desse modo, por conta da própria abordagem da gramaticalização (e dos resultados de pesquisa sobre esse processo, nesse quadro teórico), tensão (entre regular e irregular), indeterminação, variação e mudança são termos essenciais na caracterização do conceito de língua, a ponto de a demarcação entre os conceitos de língua e gramática ser fluida.

Pode-se dizer, então, que usos linguísticos mais criativos e inovadores também fazem parte da língua/gramática, embora nem sempre sejam compartilhados socialmente. Para que isso aconteça, deve haver um processo de mudança linguística que, paulatinamente, regularize, entre um corpo social, os usos inovadores. Nas palavras de Traugott (2014, p. 105), “se eu inovar com alguma estrutura linguística nova, mesmo que eu a repita ao longo de toda a minha vida, isso não se caracteriza como mudança, porque não foi transmitida a outra pessoa”. A gramaticalização ou o processo de constituição da língua/gramática, nesse sentido, envolve uma dinâmica de ampliação do compartilhamento de representações da experiência, tendo em vista o requisito primordial de “transmissão da representação a outra pessoa”.

Nesse contexto, vale destacar também o princípio da iconicidade, formulado no âmbito dos estudos funcionalistas, em oposição ao princípio da arbitrariedade, e segundo o qual as formas são

146

“the tension between the fixed and the less lixed in language [...]. It provides the conceptual context for a principled account of the relative indeterminacy in language and [...]”.

motivadas pelas funções que exercem no discurso, embora a iconicidade não seja vista como absoluta, mas como “uma questão de grau”147 (GIVON, 2001, p. 34). Isso significa assumir que a língua não é icônica biunivocamente, no sentido de se presumir a existência de uma forma para cada função – essa visão mais radical é a de Bolinger (1997), segundo indica Givón (2001, p. 2) –, dado que, à medida que alguns usos linguísticos se tornam socialmente compartilhados, convencionalizam-se, ficando, então, mais arbitrários. “A existência de algum grau de arbitrariedade no código gramatical é, portanto, esperada”. (GIVÓN, 1995, p. 11).148

A questão a se destacar é que o processo de gramaticalização é lento e gradual, de modo que entre os usos mais icônicos, verificados no início do processo de gramaticalização, e os usos mais arbitrários, verificados em estágios mais avançados desse processo, as formas, devido ao processo de expansão polissêmica – uma das etapas do caminho de gramaticalização –, podem assumir mais de uma função (e também funções ambíguas), ao mesmo tempo em que diferentes formas em rota de gramaticalização podem também assumir funções que já são codificadas por outras formas.

Em suma, os estudos funcionalistas concebem que a língua/gramática, na verdade, resulta de um compromisso (dos falantes) em operacionalizar pressões funcionais conflitantes: o uso da língua demanda adaptação a diferentes necessidades comunicativas, o que lhe exige flexibilidade e processamento menos veloz, porque a relação entre forma e função tende a ser fortemente dependente do contexto (no que se verifica a iconicidade); mas, demanda também automatismo, agilidade, processamento mais veloz, o que lhe exige regularidades e menos dependência do contexto (no que se verifica a arbitrariedade). Por esse motivo, no uso efetivo da língua, “a transparência da relação forma-função (isomorfismo, iconicidade) compete com a economia de processamento” (GIVÓN, 2002, p. 21).149

A estrutura sincrônica de uma língua, então, com elementos ao mesmo tempo icônicos e arbitrários, reflete o impacto do percurso de gramaticalização das construções

147

“[…] a matter of degree”.

148

“The existence of some measure of arbitrariness in the grammatical code is thus to be expected”.

149

“[...] form-function transparency (isomorphism, iconicity) competes with processing economy”.

linguísticas sob pressão de fatores em competição – por isso, a codificação de um domínio funcional, como a do futuro do presente, é tão variável.

O quadro a seguir esquematiza as discussões ate aqui empreendidas, tendo em vista a concepção de língua e de gramática depreendida da concepção de gramaticalização, no âmbito dos estudos funcionalistas.

Quadro 5: Representação do conceito de língua/gramática, no âmbito dos

estudos funcionalistas, assumido na pesquisa

Fonte: Elaboração própria

A seguir, discorre-se sobre o processo de gramaticalização, considerando os seguintes aspectos que acompanham os estágios do processo: motivações comunicativas e cognitivas, transformações em todos os níveis linguísticos (semântico-pragmático, morfossintático e fonológico) e o modo como as formas em mudança são avaliadas socialmente. A primeira questão a se abordar, então, para explicação desses aspectos, é: o que pode acionar um processo de gramaticalização?