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(iii) Projeção de duas ou mais situações futuras em que uma é cotemporal a outra:

OS CAMPOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.2.3 Direção e caracterização do processo de mudança

Conforme visto até aqui, gramaticalização se caracteriza por ser um processo que envolve uma cadeia de alterações contínuas, lentas, graduais e cíclicas, que converte padrões discursivos em padrões gramaticais, devido à trajetória de mudança que ruma à abstração e generalização crescente de funções e de contextos de uso dos itens linguísticos.

Nesse processo, novas fórmulas gramaticais de um item são geradas paulatinamente. Hopper (1998, p. 154) fornece a seguinte representação do processamento da mudança: A > A/B > B. A fórmula indica que a cada etapa de gramaticalização as funções vão se diferenciando, embora etapas subsequentes carreguem traços das etapas precedentes, constituindo um estágio marcado por ambiguidades (A/B).

Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) consideram que o significado da construção fonte (A) determina o significado da construção alvo (B). Como visto no primeiro capítulo desta pesquisa, o significado da construção ir para, no sentido de movimento, também enseja predição de se fazer algo posteriormente, do que decorre a noção de futuro.

Os usos de uma construção em estágio A/B ou até mesmo já em estágio B, por exemplo, podem ainda fazer ver significados de A, em que é possível depreender da construção ir + infinitivo tanto a noção de

165

Recupere-se de 1.1.3 que, no caso da emergência da construção perifrástica, por exemplo, o contexto linguístico, é o de oração principal + oração

subordinada adverbial final reduzida de infinitivo, que requeria um sujeito

animado e agentivo, em que o traço de intenção e predição estão imbricados.

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“Expanding the picture of the linguistic field to include, crucially, contextual information brings into focus the complex ensemble of processes and relations involved in language change”.

movimento quanto a de tempo futuro, como em: “Lula vai viajar o Brasil levando mensagem de otimismo, diz líder da Força Sindical”.167

Trata-se, portanto, de um período de expansão polissêmica, ou de multifuncionalidade, em que mais de uma função é codificada por uma forma, embora a diferença funcional possa ser ambígua. Traugott e Dasher (2005, p. 11-12) consideram que isso ocorre porque “o que é típico [na mudança semântica] é o acréscimo de mais e mais significados ao longo do tempo”168

. Daí sugerirem que a mudança semântica se inscreve em uma teoria da polissemia, e não da homonímia, tendo em vista que as funções de uma forma B derivam da mesma forma-fonte A, já que se trata de um estágio do processo de gramaticalização.

Assim, mesmo que itens subsequentes na trajetória não sejam mais da mesma categoria sintática gramatical que o item antecedente, por conta de transformações (morfossintáticas) já ocorridas, a relação entre suas funções pode ser considerada polissêmica, desde que se compreenda que o significado é parcialmente indeterminado, ou seja, pode ser contextualmente interpretado de diferentes maneiras (TRAUGOTT; DASHER, 2005, p. 140).

A consequência da retenção semântica nas construções em processo de mudança é que, assumindo-se a hipótese de que o desenvolvimento semântico é previsível, pode-se localizar, ao longo de uma trajetória ou contínuo de mudança, o ponto em que usos múltiplos de uma mesma forma se localizam. Em outras palavras, os usos múltiplos sincronicamente de um item não estão distribuídos aleatoriamente, de maneira que compreender as diversas funções que desempenha permite reconstruir a trajetória diacrônica de gramaticalização, pois “múltiplos usos ea retenção

deespecificidadeslexicaispodem ser empregados

comodiagnósticosdahistória anteriordo materialgramatical,mesmo

167

Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-vai-viajar- o-brasil-levando-mensagem-de-otimismo--diz-lider-da-forca-

sindical,1735216>. Acesso em: 13 set. 2015.

168

emlínguas para as quaiscomprovaçãohistóricaé escassaou inexistente” (BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994, p. 18).169

Diacronicamente, as trajetórias representam o percurso pelo qual itens em gramaticalização são conduzidos, linear e irreversivelmente. Assim, A ocorre antes de B – itens lexicais se transformam em itens gramaticais, itens gramaticais se tornam ainda mais gramaticais ou adquirem diferentes funções gramaticais e conceitos mais concretos se estendem para conceitos mais abstratos.

Além da trajetória de mudança cognitivamente motivada já apresentada na subseção precedente (pessoa > objeto > espaço > tempo >qualidade), destaca-se a trajetória a seguir, comunicativamente motivada, postulada por Givón (2012 [1979):

DISCURSO > SINTAXE > MORFOLOGIA > MORFONONÊMICA > ZERO

(GIVÓN, 2012 [1979]) O caráter unidirecional da mudança não significa que ela precisa percorrer todos os pontos da trajetória, mas apenas sinaliza para “fortes restrições sobre como pode ocorrer uma mudança e sobre a direcionalidade da mudança, embora nós ainda não compreendamos

plenamente todos os fatores que motivam essa

direcionalidade”(HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 131)170. Considerando que nos estudos de gramaticalização o foco é compreender a relação entre o uso da língua e seu contexto real, Hopper e Traugott (2003, p. 133) preferem caracterizar a unidirecionalidade não como um princípio absoluto, mas como uma tendência forte, dada a regularidade com que pode ser atestada nos estudos empíricos.

Preocupado com a questão de como diagnosticar itens em processo de gramaticalização, principalmente na fase inicial171, Hopper

169

“[...] multiple uses and the retention of lexical specificities can be employed as diagnostics of the earlier history of grammatical material, even in languages for which historical attestation is sparse or nonexistent”.

170

“[…] there are strong constraints on how a change may occur and on the directionality of the change, even though we do not yet fully understand all the factors that motivate this directionality”.

171

Lehmann (1985), segundo Hopper (1991), já havia formulado cinco princípios de gramaticalização, mas esse último autor os considerou como característicos principalmente de etapas avançadas do processo, não sendo,

(1991) formula cinco princípios que auxiliam nessa identificação, quais sejam:

Estratificação: Em um amplo domínio funcional,

novas camadas estão continuamente emergindo.Conforme isso acontece, as camadas

mais antigas não são necessariamente descartadas, ao contrário, podem coexistir e interagir com as camadas mais recentes.

Divergência: Quando uma unidade lexical muda

para um clítico ou afixo, a unidade lexical original pode permanecer como um elemento autônomo e sofrer as mesmas mudanças que itens lexicais comuns.

Especialização: Dentro de um domínio funcional,

uma variedade de formas com diferentes nuances semânticas pode ser possível em um dado estágio. À medida que a gramaticalização ocorre, essa variedade de possibilidades formais diminui e um número menor de formas selecionadas assume significados gramaticais mais gerais.

Persistência: Quando uma forma sofre

gramaticalização de uma função lexical para uma função gramatical, mesmo tendo um papel gramatical, alguns traços de seus significados lexicais originais tendem a aderir a ela e detalhes de sua história lexical podem ser refletidos em sua distribuição gramatical.

Decategorização: Formas em gramaticalização

tendem a perder ou terem neutralizadas as marcas morfológicas e sintáticas características de categorias como substantivos e verbos, e a assumir características de categorias secundárias,

portanto, suficientes para o reconhecimento de características das fases iniciais. Hopper (1991) sugere que seus princípios sejam vistos como complementares aos princípios de Lehmann (1985). Os princípios propostos por esse último autor são: “paradigmatização (tendência de as formas gramaticalizadas serem rearranjadas em paradigmas); obrigatoriedade(tendência de as formas opcionais tornarem-se obrigatórias); condensação(erosão das formas); coalescência(união de formas adjacentes); fixação(ordens lineares livres tornam-se fixas)” (HOPPER, 1991, p. 20-21; grifos nossos).

como adjetivo, particípio, preposição, etc. (HOPPER, 1991, p. 22, grifos nossos)172.

Para o autor, porém, esses princípios, não são exclusivos do processo de mudança por gramaticalização e, como ela não tem um ponto final, esses critérios devem ser vistos como recursos para a identificação de itens mais ou menos gramaticalizados.

Heine e Kuteva (2007), baseando-se na suposição de que a gramaticalização afeta aspectos pragmáticos, semânticos, morfossintáticos e fonológicos, consideram que os processos que envolvem esses níveis estruturais podem ser identificados e descritos pelos seguintes parâmetros:

a.extensão, ou seja, o surgimento denovos significadosgramaticaisquandoexpressões

linguísticassão estendidasa novos contextos (reinterpretação induzida pelocontexto);

b.dessemantização173 (ou ''apagamento semântico''), ou seja, a perda (ou generalização) de significado;

172

“(1) Layering - Within a broad functional domain, new layers are continually emerging. As this happens, the older layers are not necessarily discarded, but may remain to coexist with and interact with the newer layers”; (2) Divergence

- When a lexical form undergoes grammaticization to a clitic or affix, the

original lexical form may remain as an autonomous element and undergo the same changes as ordinary lexical items”; (3) Specialization - Within a functional domain, at one stage a variety of forms with different semantic nuances may be possible; as grammaticization takes place, this variety of formal choices narrows and the smaller number of forms selected assume more general grammatical meanings”; (4) Persistence - When a form undergoes grammaticization from a lexical to a grammatical function, so long as it is grammatically viable some traces of its original lexical meanings tend to adhere to it, and details of its lexical history may be reflected in constraints on its grammatical distribution”; (5) De-categorialization - Forms undergoing grammaticization tend to lose or neutralize the morphological markers and syntactic privileges characteristic of the full categories Noun and Verb, and to assume attributes characteristic of secondary categories such as Adjective, Participle, Preposition, etc.".

173

Quanto ao termo dessemantização, Heine e Kuteva (2007) relembram que Hopper e Traugott (2003) preferem falar de inferência sugerida, subjetivização e fortalecimento pragmático. Mas, como muitos processos de gramaticalização

c.decategorização, ou seja, perda de propriedades morfossintácticas características de formas menos gramaticalizadas ou lexicais;

d.erosão (''redução fonética''), ou seja, perda desubstânciafonética. (HEINE; KUTEVA, 2007, p. 34; grifos nossos)174.

Segundo os autores, a ordem de apresentação dos parâmetros reflete a sequência diacrônica na qual o processo ocorre, uma vez que ele é desencadeado com a extensão de significados (aspecto pragmático) das formas já existentes, passando, posteriormente, à dessemantização (aspecto semântico), à decategorização (aspecto morfossintático) e, por fim, à erosão (aspecto fonológico), embora esse último estágio não seja obrigatório, nem tampouco o processo ocorra de forma absoluta segundo essa ordem, tendo em vista a confluência de muitas forças em competição atuando sobre os processo de mudança.

Para os autores ainda, o primeiro parâmetro é o mais complexo por, em primeiro lugar, envolver forças de três diferentes tipos, a saber: sociolinguísticas, pragmático-textuais e semânticas. Retomam-se, assim, as questões que já vinham sendo discutidas desde o início desta seção, em relação à relevância dos usos inovadores em situações específicas de interação:

O componente sociolinguístico diz respeito ao fato de que gramaticalização começa com a inovação (ou ativação) de um ato individual, em que alguns falantes (ou um pequeno grupo de falantes) propõem um novo uso para uma forma ou construção existente, que é posteriormente

adotado por outros falantes, difundindo a inovação, em tese, para toda comunidade de fala.