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CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA E CONDIÇÃO HUMANA

Em Jean-Jacques Rousseau, condição humana e concepção de história estão intimamente vinculadas. Dalbosco (2016, p. 925) afirma a “[...] originalidade da concepção rousseauniana de história [...]” e destaca que essa concepção é determinante no que diz respeito “[...] às questões políticas, jurídicas e educacionais [...]” da obra do filósofo. A crítica de Rousseau “[...] à cultura depende, ao menos nos termos como é feita no Segundo Discurso, de uma noção de história que não mais concebe o ser humano como mero espectador [...]” (Ibid.). Sua concepção de história entende o ser humano como ser agente. No Segundo Discurso ([1754]1973), Rousseau destaca que o mal social não é obra de nenhuma divindade ou coisa do tipo. O mal social é obra do próprio ser humano ao lidar com “[...] os obstáculos e as circunstâncias que se lhe interpunham.” (DALBOSCO, 2016, p. 934). Em Emílio ou Da Educação ([1762]2004), Rousseau afirma: “Nossos maiores males vêm-nos de nós mesmos.” (p. 25). O mal de que estamos falando aparece em Rousseau como “socialização desnaturada” (DALBOSCO, 2016, p. 934). Compreender o ser humano como ser agente é também imputar-lhe responsabilidade, inclusive pelo mal.

Em Rousseau, há uma síntese tensional entre a concepção cíclica e a concepção linear de história, o que permite uma diferenciação entre seu pensamento e o de outros iluministas de seu tempo (Cf. DALBOSCO, 2016, pp. 925-926). Trata-se de uma síntese ancorada no conceito de perfectibilidade (Cf. DALBOSCO, 2016, p. 926), ou ainda, na ideia da perfectibilidade como característica da condição humana. Ao falar de distinções entre o ser humano e os animais, Rousseau ([1754]1973, p. 249) afirma:

[...] haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida [...].

Rousseau ([1754]1973, p. 249) ainda acrescenta que os animais permanecem vinculados aos seus instintos durante toda a sua vida enquanto o ser humano, por sua vez, poderá, inclusive, vir a perder “[...] tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir [...]”. A perfectibilidade é justamente a capacidade de que é dotado o ser humano, como

47 indivíduo e como membro da espécie, para se aperfeiçoar. É nesse sentido que Dent (1996, p. 38) observa:

Também exclusiva dos humanos é uma plasticidade e adaptabilidade de comportamento, a capacidade de aprender através da experiência. Os humanos [...] podem aprender como manipular o seu meio ambiente e ajustar seu comportamento de modo a aumentar suas vantagens. Rousseau chama PERFECTIBILIDADE à capacidade para fazer isso. É pela perfectibilidade, como capacidade para o aperfeiçoamento de si, “[...] e não através da redenção e da ajuda divina [...]” que o ser humano poderá vir a se tornar “[...] senhor de seu destino [...]” (CASSIRER, 1999, p. 76). Cassirer (Ibid., p. 101) destaca que todas as virtudes e todos os vícios do ser humano brotam da perfectibilidade.

Em sua marcha evolutiva até o presente momento, a ‘perfectibilidade’ enredou o homem em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de tornar-se para ele um guia no labirinto no qual ele se perdeu. Ela pode e deve abrir-lhe novamente o caminho para a liberdade. Pois a liberdade não é um presente que a bondosa natureza deu ao homem desde o berço. Ela só existe na medida em que ele próprio a conquistar, e a posse dela torna-se inseparável desta conquista constante. (CASSIRER, 1999, p. 101). A condição humana da perfectibilidade permite que se dê a superação do mal social, por exemplo, ainda que como possibilidade. É nesse ponto que a Educação, como política e sem desvincular-se de seus demais âmbitos, entra em cena como aquilo que poderá efetivar essa superação. Neste momento, observamos que não nos deteremos sobre o pensamento político de Rousseau propriamente dito. Entretanto, registramos nossa vinculação com a seguinte interpretação: “[...] não há uma primazia de Émile sobre o Contrato Social, nem vice-versa. Separar as duas análises equivaleria a perder o chão sobre o qual foram produzidas.” (ASSMANN, 1988, p. 33). Nesses termos, justificamos algumas entradas no Contrato Social ([1762]1973] no decorrer deste texto. Sem nos alongarmos em demasia, sublinhamos ainda que, para Rousseau, a educação é sempre uma atividade eminentemente política.

Rousseau abandona as causas teológicas como explicação para os acontecimentos humanos, substituindo-as por causas físicas e morais (Cf. MOSCATELI, 2012, p. 136); mas uma moral que é também laica (Cf. ASSMANN, 1988, p. 29). De acordo com Moscateli (2012, pp. 141-142), “[a] própria condição social do homem, defende Rousseau nas Considerações [Considerações sobre a influência dos climas relativamente à civilização], é um produto direto das muitas maneiras pelas quais se deu sua reação frente ao meio natural.”. O movimento de substituição de causas mencionado abre espaço para a possibilidade da superação de certo estado de coisas, a ser efetivada, mais uma vez, pela

48 ação humana – mais especificamente, a ser efetivada pela ação humana que, na medida de sua transformação, poderá ser orientada pela vontade. Contudo, para que a ação possa ser orientada pela vontade, há um caminho a ser percorrido pelo ser humano no sentido do desenvolvimento da razão e da afetividade, como veremos no decorrer deste capítulo.

Ainda lidando com a questão da concepção de história em Rousseau, destacamos que há no Emílio um “[...] esforço de conciliação entre natureza e cultura que se dá não só na esfera da interioridade humana, mas também do viver juntos entre os homens e, portanto, na esfera pública [...]” (DALBOSCO, 2016, p. 936). A educação entra em cena como atividade reparadora de uma antiga cisão entre natureza e cultura, ou ainda, entre estado de natureza e vida social. Mas essa reparação é sempre possibilidade de reparação; não se trata de “lei da história” (Ibid.). Não há, portanto, uma teleologia acoplada ao conceito de perfectibilidade (Cf. DALBOSCO, 2016, p. 939). “[A] perfectibilidade é uma capacidade em princípio neutra que pode tomar direções diversas, dependendo da multiplicidade de fatores, os quais são impossíveis de serem previstos de antemão.” (Ibid.). A ideia da reparação como possibilidade vai de encontro ao entendimento de que o estado das coisas no mundo existe como realização de destinos e de predeterminações que escapam à ação humana. Nesse sentido, o conceito de perfectibilidade “[...] antecipa a seu modo uma crítica ao determinismo subjacente às grandes filosofias modernas da história.” (Ibid.). Todavia, essa crítica ao determinismo histórico, como destaca Dalbosco (Ibid.), não desconsidera que o ser humano “[...] faz sua história, mas só mediante condições bem determinadas.”. Em outros termos, Rousseau reconhece a existência de condicionamentos, mas está longe de aceitar que isso implique em determinação. Desvencilhando-se de concepções deterministas, Rousseau encara as condições existentes e como elas impactam nas possibilidades de ação do ser humano; ao mesmo tempo, considera que apesar dessas condições e também por conta delas é que há algum tipo de espaço para a ação humana.

De acordo com Dalbosco (2016, p. 941), o “[...] ideal moderno de autonomia foi possível de ser posto porque o genebrino distanciou-se, em certos aspectos, tanto da concepção cíclica como da linear de história.”. Esse distanciamento das concepções cíclica e linear de história não é outra coisa do que compreender que é possível avançar em sentido progressivo, no âmbito individual ou coletivo, mas que não há qualquer garantia de que esse avanço acontecerá. Mais uma vez, importa acentuar que se trata de possibilidade. Nesse cenário, Rousseau pensa a formação de Emílio – seu sujeito modelo e aluno ideal – voltada para o desenvolvimento da virtude como obra dele mesmo. Essa formação, como veremos, conta sempre com o auxílio de seu mestre, mas trata-se de algo efetivado pelo

49 próprio Emílio, como ser ativo. Ademais, essa formação é obra “[...] da própria liberdade humana bem regrada.” (Ibid.). Conforme Dalbosco (Ibid.), a sociabilidade humana se apresenta em Rousseau como resultante da relação estreita entre liberdade e perfectibilidade. É nesse sentido que Rousseau aconselha o preceptor de Emílio dizendo: “Preparai à distância o reinado de sua liberdade [de Emílio] e o uso de suas forças, deixando em seu corpo o hábito natural, colocando-a em condições de sempre ser senhora de si mesma e de fazer em todas as coisas a sua vontade, assim que a tiver.” ([1762]2004, p. 49). Ao falar em força, Rousseau não está se referindo apenas à força física, mas também ao que ele entende como força e capacidade do espírito, isto é, do que diz respeito ao âmbito da razão (Cf. Ibid., p. 212).

Essa concepção de história bastante específica se apresenta como pano de fundo para a discussão empreendida por Rousseau acerca da formação do ser humano como ser agente e não determinado. A concepção de história rousseauniana está nas bases de sua proposta político-educacional, fundamentando também sua proposta acerca do desenvolvimento da razão no sujeito. Contando com essa concepção de história e com o que foi apresentado sobre o conceito de perfectibilidade, vamos nos deter, a seguir, sobre a questão do desenvolvimento da razão em Rousseau.