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A centralidade do conceito de processo na Modernidade, conforme assinalado por Arendt (2016), e a emergência da ideia de progresso no século XVIII, afirmada por Le Goff (2015), apontam para uma outra compreensão do mundo, do ser humano e da atividade do ser humano no mundo. Nessa nova compreensão, a atividade do ser humano no mundo é o

43 que faz a História. Esse fazer se dá de modo processual e, tal como preponderante no pensamento daquele momento, em sentido progressivo, positivamente progressivo. Não podemos deixar de notar que “[a] ilustração é uma filosofia otimista. É a filosofia da burguesia em ascensão: é uma filosofia que se esforça e trabalha pelo progresso. ‘Algum dia tudo irá melhorar, esta é nossa esperança’, disse Voltaire.” (REALE; ANTISERI, 1988, p. 564. Tradução nossa.).26 Frisamos mais uma vez que estamos nos referindo ao pensamento dominante do período.27

Já indicamos que estamos trabalhando com a ideia do Renascimento como “primeiro momento” (LE GOFF, 2015, p. 70) da Modernidade. O movimento de pôr o ser humano no centro das discussões, tal como feito pelo Renascimento, permitiu que a ação humana fosse elevada a outro patamar. Ao fazermos essa afirmação, não desconsideramos os apontamentos de Arendt (2016) sobre remontar a Idade Moderna ao âmago da Idade Média, tampouco abdicamos do que Le Goff (2003) traz sobre a questão da continuidade histórica entre os períodos. Essa continuidade, como já indicado, não se dá sem algum nível de diferenciação. No pensamento dominante do medievo, o ser humano era entendido como criatura capaz de perceber as obras da criação, mas não como ser capaz de criar. Cassirer (1992, pp. 67-68) explica essa questão dizendo:

A concepção moderna de natureza que se formou depois da Renascença com uma nitidez e uma firmeza crescentes, e que busca prover-se, nos grandes sistemas do século XVII, em Descartes, Spinoza e Leibniz, de um fundamento e de uma legitimidade filosóficas, caracteriza-se sobretudo pela nova relação que se estabelece entre sensibilidade e entendimento, entre experiência e pensamento, entre mundus sensibilis e

mundus intelligibilis. Mas essa mudança de método no conhecimento da

natureza implica, ao mesmo tempo, uma modificação decisiva da ‘ontologia’ pura: ela desloca e altera a escala de valores pela qual se aferia até então a ordem do ser. A tarefa do pensamento medieval consistia essencialmente em reproduzir a arquitetônica do ser, em descrevê-la em seus grandes traços. No sistema religioso da Idade Média, tal como a escolástica o fixara, toda a realidade recebia seu lugar imutável e indiscutível; por esse lugar, pela distância maior ou menor que o separava do ser da causa primordial, o seu valor também era plenamente determinado. Não pode haver em tal sistema a menor dúvida: todo o pensamento se sabe situado no seio de uma ordem inviolável que não lhe compete criar mas perceber.

26 “La ilustración es una filosofía optimista. Es la filosofía de la burguesía en ascenso: es una filosofía que se

esfuerza y trabaja por el progreso. ‘Algún día todo irá mejor, ésta es nuestra esperanza’, disse Voltaire.” (REALE; ANTISERI, 1988, p. 564).

27 Cassirer (1999, p. 79) coteja Voltaire e Rousseau no que diz respeito a esse otimismo dizendo que, no caso

de Voltaire, “[m]esmo o seu pessimismo chega a ser brincalhão, enquanto o otimismo de Rousseau está ainda carregado e repleto de uma seriedade trágica. [...] Seu otimismo é aquele otimismo heróico que ele relaciona preferencialmente a Plutarco, seu autor predileto, e aos grandes modelos da história antiga.”. Cassirer (Ibid., p. 76) também observa que o otimismo de Rousseau só pode ser compreendido quando se considera sua concepção de história e o sentido da perfectibilidade. Falaremos disso adiante.

44 O ser humano visto como mera criatura não era entendido como ser capaz de criar. A ideia do ser humano como criatura se contrapunha ao entendimento de que o ser humano poderia ser criador por meio de sua ação. Esse entendimento foi alterado na Modernidade. A alteração da posição ocupada pela ação humana está ligada ao movimento de alteração da posição ocupada pelo ser humano no mundo.

Conforme Boto (1996, p. 16), a ideia de cidadania foi eleita como referência pela modernidade. Lembremos que nesse período se dá a criação do Estado moderno (Cf. LE GOFF, 2015, p. 115). Com isso, a figura do cidadão se impõe como relevante no âmbito da vida em sociedade. O cidadão moderno é entendido como agente social e sua ação é reconhecida como realizadora das dimensões da vida comum. Ele não está mais submetido à autoridade da nobreza e constitui, junto de seus pares, a governança, ainda que sob o signo da participação via representação. Boto (1996, p. 21) também afirma que é em meados do século XVIII que acontece uma intensificação de um pensamento pedagógico e de uma preocupação com o que seria uma atitude educativa. De acordo com a autora (Ibid.), esse movimento está vinculado ao entendimento, partilhado por filósofos e pensadores, de que a constituição do ser humano devia-se ao processo educativo.28 Pensar e formar o cidadão era questão urgente naquele período. Nisso ganha espaço a ideia do ser humano como podendo ser “pedagogicamente reformado” (Ibid.). Essa confiança esperançosa no poder da educação está ligada ao movimento de alteração na posição ocupada pela ação humana.

Com o entendimento do ser humano como ser capaz de criar, a transcendência foi perdendo espaço para a imanência. Isso se deu, sobretudo, no que diz respeito ao âmbito da elaboração teórica. Dizemos isso pois é preciso considerar a observação de Arendt (2016) sobre o movimento de secularização, a saber, de que esse movimento não gerou um desaparecimento da religião do âmbito da vida cotidiana. Sem ignorar essa observação, voltamos ao ponto de que a ação humana passou a ser entendida como algo capaz de influir no rumo das coisas do mundo e da própria vida do ser humano. Desse modo, não se trata mais de um ser humano reduzido à condição de espectador. Como ser agente, “[a] tarefa está colocada para ele – e deve ser solucionada com seus recursos, com recursos puramente humanos.” (CASSIRER, 1999, p. 109). A tarefa é a tarefa histórica em, pelo menos, dois sentidos: da constituição do mundo e da constituição de si mesmo como ser no mundo.

45 O período moderno é farto em elaborações que delegam à condição de agente do ser humano um espaço privilegiado. De acordo com Houaiss (2009), por agente podemos entender: “que ou quem atua [...]”, ou ainda, “pessoa ou algo que produz ou desencadeia ação [...]”. Entre as elaborações desse período que destacam essa condição agente está a produzida por Rousseau. Embora tenha vivido em período posterior ao que é entendido como Modernidade, entendemos que o pensamento de Piaget é fortemente marcado por ideias que são centrais para algumas das tradições do pensamento moderno. Apoiando-nos em Arendt (2016), entendemos que Piaget viveu em um tempo que chamaremos de uma concretização da Modernidade. Nisso que pode ser entendido como uma concretização da Modernidade, faz-se presente uma maior desconfiança em relação ao otimismo predominante na Modernidade no que diz respeito à ideia de progresso (Cf. LE GOFF, 2003, p. 224-ss.). Dito isso, chamamos a atenção para o que entendemos como a presença de um espaço privilegiado para a ação também no pensamento de Piaget.

Ao mencionar a questão da condição humana em Rousseau, Dalbosco (2017, p. 7) fala em “condição agente”. Partilhamos dessa compreensão e estendemos ela também ao pensamento de Piaget. A nosso ver, essa condição agente se faz fortemente presente em Rousseau e em Piaget, ainda que o agir tenha especificidades próprias no pensamento de cada um dos autores. Mais do que ser marcado pela condição agente, o ser humano é um ser que se faz agente na medida das próprias ações, ligadas, em sua possibilidade, à sua própria condição agente – ligação já destacada por Dalbosco (Ibid.) no que diz respeito ao pensamento de Rousseau.

46 3 JEAN-JACQUES ROUSSEAU