• Nenhum resultado encontrado

Da interpretação de Piaget sobre Rousseau

5 AFETIVIDADE E DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO EM JEAN-JACQUES

5.1 ALGUMAS DIVERGÊNCIAS INTERPRETATIVAS

5.1.1 Da interpretação de Piaget sobre Rousseau

138 Com Pierre Bovet (1878-1944) e Adolphe Ferrière, Édouard Claparède fundou, em 1912, em Genebra, o Instituto Jean-Jacques Rousseau. Por convite de Claparède, entre os anos de 1921 e 1932, Piaget atuou como diretor do Instituto. Do Instituto surgiu a denominada Escola de Genebra, incluindo-se no movimento das escolas novas (Cf. CAMBI, 1999, p. 529). Dela, destacamos os seguintes membros: Claparède, Bovet, Ferrière, Henri Wallon (1879-1962) e Piaget.59 Claparède foi um dos mestres de Piaget. Ele também foi um grande admirador do pensamento de Rousseau, dedicando parte de seu A Educação funcional ([1931]1958) para falar sobre as ideias do filósofo. Sem nos demorarmos em demasia nesse terreno,60 importa evidenciar que o pensamento de Rousseau não era algo com que Piaget não tivesse contato. O cenário em que Piaget viveu era marcado pela presença desse pensamento. Todavia, para além da presença, os modos de compreender um pensamento podem se dar de formas distintas. Adentrando nesse campo, apresentamos, abaixo, algumas divergências que temos em relação a alguns aspectos da interpretação feita por Piaget acerca do pensamento de Rousseau. A exposição abaixo se justifica a partir de certa recorrência interpretativa presente nas obras visitadas por nós neste trabalho.

Em Para onde vai a educação? ([1948]2011, p. 46), Piaget enfatiza a ideia já presente em obras anteriores de que o ser humano nasce com alguns mecanismos hereditários, mas que esses mecanismos não estão completamente montados, dependendo de interações sociais diversas para poderem se desenvolver. Como vimos no capítulo 4, Piaget põe a lógica, ou ainda, nos termos que viemos utilizando até aqui, a razão, como algo que só pode vir a ser na dependência dessas interações. Piaget (Ibid., p. 47) menciona Descartes como exemplo de autor para quem essa lógica existia como “faculdades lógicas”, isto é, como algo que não tinha sua produção vinculada à vida coletiva. Não entraremos no mérito do que Piaget apresenta sobre Descartes. Nos interessa, por outro lado, sua menção à Rousseau junto de Descartes. Lidando com o tema da “[...] faculdade de raciocinar logicamente [...]” (PIAGET, [1948]2011, p. 48), o epistemólogo insere Rousseau e Descartes entre autores que dão subsídio para o que ele chama de “escola tradicional”, em oposição à “escola ativa”. Sobre isso, Piaget (Ibid.) afirma o seguinte:

[...] Rousseau baseava todo o seu sistema pedagógico na oposição entre as perfeições congênitas do indivíduo e os desvios posteriores decorrentes da vida social. Essas são as noções que inspiraram as

59 Na Introdução da obra Sobre a Pedagogia: Textos inéditos (1998), Parrat-Dayan e Triphon abordam as

relações de Piaget com o movimento da escola ativa.

60 Dedicamo-nos a isso no artigo intitulado Jean-Jacques Rousseau, Èdouard Claparède e Jean Piaget: Apontamentos acerca da ideia de Educação Funcional (MACHADO, 2017).

139 doutrinas da escola tradicional: estando o homem preformado já na criança, e consistindo o desenvolvimento individual apenas em uma atualização de faculdades virtuais, o papel da educação se reduz então a uma simples instrução; trata-se exclusivamente de enriquecer ou alimentar faculdades já elaboradas, e não de formá-las.

No capítulo 3, vimos que Rousseau trabalha com os polos estado de natureza e estado social. Sobretudo no Segundo Discurso, Rousseau apresenta uma posição em que acentua o caráter degradante da passagem da vida no estado de natureza para a vida no estado civil. Podemos dizer que há ali uma espécie de diagnóstico dos modos de vida da sociedade em que vivia. Esse diagnóstico se faz presente sobretudo no Segundo Discurso, mas também em algumas passagens do Contrato e do Emílio. Todavia, no Contrato e no Emílio, esse diagnóstico é acompanhado por uma espécie de prognóstico amarrado à via educativa; este permitiria a ultrapassagem daquele. Mencionamos que Rousseau entende o mal social como produção humana e que, por isso, põe na própria humanidade a possibilidade de superação desse mal. Essa possibilidade se ancora, justamente, na compreensão rousseauniana de que a razão e também a moralidade, contando para tanto com o desenvolvimento da consciência (sede dos sentimentos), não estão dadas como prontas no ser humano. Para Rousseau, a vida em sociedade permite seus desenvolvimentos. Mais que isso, esse desenvolvimento não se dá, necessariamente, de modo x ou y, conforme a concepção rousseauniana de história. Desenvolvimento, em Rousseau, aproxima-se do sentido de desenvolvimento pautado pelo próprio Piaget quando este diz: “A educação é, por conseguinte, não apenas uma formação, mas uma condição formadora necessária ao próprio desenvolvimento natural.” ([1948]2011, p. 52). No capítulo 3, abordamos a questão de que, em Rousseau, a natureza já era uma natureza permeada pela vida em sociedade. Mesmo quando fala em natureza, se posta na vida em sociedade, aquela já é atravessada por esta.

Em Introduction à l’épistémologie génétique: la pensée biologique, la pensée psychologique et la pensée sociologique (1950), ao discutir sobre o conceito de totalidade social, Piaget lembra que a explicação rousseauniana para a organização social não se funda na teologia. Ao fazer tal referência, utiliza a imagem do bom selvagem para indicar que haveria em Rousseau a compreensão de que o ser humano já teria em si todas as faculdades intelectuais e morais, mesmo antes de qualquer interação social. No capítulo 3, vimos que Rousseau fala em perfectibilidade, e que esta seria uma capacidade para aperfeiçoar-se. Não se liga a isso, entretanto, a proposta de preformismo ou de acabamento dessas capacidades no denominado estado de natureza – estado que, em Rousseau, entra apenas

140 como hipótese de trabalho.61 É na vida civil que o ser humano encontra possibilidade de desenvolver suas capacidades nos âmbitos racional e moral. É na vida em sociedade que a condição humana pode vir a ser atualizada na medida em que vai sendo ampliada pelo seu próprio exercício.

De outra parte, quase vinte anos depois da publicação de Para onde vai a educação? e de Introduction a l’épistémologie génétique, em Biologia e Conhecimento ([1967]1973), Piaget parece se distanciar um pouco disso que apresentamos acima. No item “O desenvolvimento psicogenético”, afirma que Rousseau “[...] suscitou a hipótese da epigênese da inteligência.” (Ibid., p. 102). O Emílio é referido como a obra em que essa hipótese da epigênese da inteligência é suscitada. Indicando a proposição rousseauniana de não compreender a criança como um adulto em miniatura, Piaget acrescenta que, antes de Rousseau, notava-se que existiam diferenças entre crianças e adultos, mas que essas diferenças eram vistas como sendo apenas de quantidade e não de qualidade (Cf. PIAGET, [1967]1973, pp. 101-102). Em Biologia e Conhecimento, Piaget está mais próximo da interpretação que identifica em Rousseau a defesa de um desenvolvimento da razão no sentido que temos alinhavado, e não como simples amadurecimento de algo já pronto. Entretanto, em Psicologia e Pedagogia ([1969]2013), Piaget retoma algumas de suas interpretações anteriores. Vejamos.

No capítulo 2, chamamos a atenção para a existência de uma história das ideias, e localizamos nossos autores nela. Quando se fala em história das ideias, a discussão sobre “precursores” tem algum espaço.62 Em Psicologia e Pedagogia ([1969]2013, p. 125), no capítulo intitulado “A gênese dos novos métodos”, Piaget localiza Rousseau dentro do que ele indica como “Os precursores”. Nessa obra, Piaget diz que é possível vincular Rousseau ao que ele chama de métodos novos, e não mais à dita escola tradicional, como referido anteriormente. Este trecho pode nos ajudar a pensar uma espécie de conciliação entre as duas interpretações gerais de Piaget que apresentamos e que parecem se afastar uma da outra:

[...] ROUSSEAU atingiu, por essa via imprevista [a da criação filosófica], a ideia de que a infância pode ser útil, porque é natural, e o desenvolvimento mental pode ser regulado por leis constantes. [... P]ode- se descobrir aí seja a antecipação genial dos ‘métodos novos’ de educação, seja uma simples quimera, segundo se deixe de lado os a priori filosóficos de Jean-Jacques [...] Sem dúvida, ROUSSEAU percebeu que ‘cada idade tem suas capacidades’, que ‘a criança tem maneira de ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias’; sem dúvida, demonstrou

61 De acordo com Spector (2015), em Rousseau, o estado de natureza é uma ficção heurística. 62 Sobre precursores, ver: História das ideias psicológicas, de Penna (1991).

141 eloquentemente que não se apresente nada a não ser por uma conquista ativa, e que o aluno deve reinventar a ciência em vez de repetir suas fórmulas verbais; foi ele mesmo quem deu esse conselho, pelo qual muito lhe será perdoado: ‘Começai a estudar vossos alunos, pois certamente não os conheceis em nada.’ Mas essa intuição contínua da realidade do desenvolvimento mental é por enquanto nele apenas uma crença sociológica; algumas vezes um instrumento polêmico; se ele mesmo tivesse estudado as leis dessa maturação psicológica, da qual sempre postula a existência, não teria dissociado a evolução individual do meio social. (PIAGET, [1969]2013, p. 126).

No trecho supracitado, Piaget tanto indica a proposição rousseauniana de um desenvolvimento da razão quanto reafirma sua interpretação de que o filósofo desconsideraria a presença do meio social nesse desenvolvimento. Frisamos que a escolha de Rousseau por educar Emílio no campo, longe da cidade, não implica a sugestão de que o meio social não participa desse desenvolvimento. A vida no campo não é uma vida retirada da sociedade. Ela é uma vida retirada de um tipo de sociedade. Nosso entendimento é o de que Rousseau faz essa opção justamente por compreender o importante papel do meio social no desenvolvimento da razão e da moralidade. Se o meio social não tivesse qualquer relevância sobre o desenvolvimento, importaria o local em que esse desenvolvimento se daria? Piaget ([1969]2013, p. 128) ainda menciona que haveria, em Rousseau, “[...] um desabrochar espontâneo da criança [...]”. Ao falar sobre o sentido de educação negativa em Rousseau, Piaget (Ibid., p. 127) identifica essa educação com a “[...] inutilidade da intervenção do professor [...]”. Aqui, cabe retomar o que foi abordado no capítulo 3, a saber, de que não se trata de uma inutilidade da intervenção, mas da inutilidade de uma intervenção que não seja adequada ao que se configura como campo de compreensão e de interesse da criança. Para Rousseau, educar é intervir. O curso do desenvolvimento não se dá separado da educação.