• Nenhum resultado encontrado

2.3 CONTRATOS INTERNACIONAIS DO COMÉRCIO

2.3.3 Concepção unitária e o dépeçage

Numa primeira análise, tem-se a denominada concepção unitária do contrato internacional, por meio dela concebe-se o contrato como sendo uma unidade indivisível, de tal maneira que só se admite que apenas um direito seja aplicável a todo o contrato.

Sob a ideia unitária de contrato, há o princípio da gravitação jurídica, segundo a qual as obrigações acessórias seguem a principal, o que, em termos de teoria geral do contrato e obrigações, é verdadeiro dogma. Assim, a visão de contrato como uma unidade indivisível está completamente relacionada à da realidade da prática jurídica dos contratos nacionais.

De outra banda, há o dépeçage ou morcellement ou fracionamento, instituto que nasceu da especialização das regras envolvendo o comércio intetnacional, especialmente aquelas concernentes ao pagamento, ao transporte, à responsabilidade por dano e à solução de controvérsias, sobretudo no campo da arbitragem. Sobre o dépeçage, Nadia de Araujo explicita:

Este é um mecanismo pelo qual um contrato ou uma instituição é dividida em partes, que serão, cada uma delas, submetidas a leis diversas. Os contratos internacionais são operaçõe sque, por sua complexidade, pode estar ligados a mais de um ordenamento jurídico ao mesmo tempo. Consequentemente, pode ser utilizada mais de uma regra de conexão para cuidar de cada um de seus diversos aspectos, o que implica na utilização do dépeçage.30

Diferentemente da concepção unitária do contrato, o dépeçage compreende o contrato, de modo que este se apresenta como um todo, um inteiro formado por diversas partes interdependentes entre si, que são dotadas de autonomia. Em razão disso, há verdadeira flexibilização da regra consubstanciada no fato do acessório seguir o principal, com vistas a obter uma melhor regulamentação das transações cada vez mais complexas no campo do comércio internacional.

Considerando que há limitações à autonomia da vontade dos contratantes, e sua vontade não pode reger todos os aspectos do contrato, é preciso decompor o contrato em seus vários elementos, para aplicar a cada uma de suas partes a lei pertinente.

A título exemplificativo, tem-se a seguinte situação em que em um determinando contrato no qual a capacidade das partes é regida pela lei pessoal, as obrigações das

30 ARAUJO, Nadia de. Contratos internacionais e a jurisprudência brasileira: lei aplicável, ordem pública e cláusula de eleição de foro.In: RODAS, João Grandino. [coordenador] Contratos internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 195-229 p.207-208

partes pela lei escolhida através da autonomia da vontade, a forma do contrato à lei da celebração, de modo que várias partes que compõe o contrato sejam regidas por diferentes sistemas jurídicos.

Dessa forma, a principal virtude do método dépeçage é suprir eventuais omissões legislativas sobre disposições contratuais, conferindo maior grau de especialidade na interpretação e aplicação jurídica dos contratos. Costuma ser bastante utilizado em contratos pautados em segurança financeira, a exemplo de navios e aeronaves, bem como em contratos financeiros da International Swaps and Derivatives Association (ISDA), situações em que o contrato principal é regido pela Lei do Estado de Nova Iorque, enquanto as relações obrigacionais acessórias é regulada pelo Direito inglês.

Sobre os desdobramentos do dépeçage no contrato internacional, vale ressaltar:

(…) Sujeito a esta ressalva, as partes devem escolher leis diferentes para cada aspecto do contrato? Por um lado, isso pode levar a algo parecido com um "contrato sem lei", na medida em que pode conter direitos e deveres irreconhecíveis em qualquer sistema jurídico. Por outro lado, desde que as regras internacionais imperativas do fórum não sejam violadas, não é óbvio por que não devem ser autorizados a fazê-lo. No entanto, é alegado que este princípio deve estar sujeito a uma restrição: a saber, que a validade de qualquer escolha deve ser confirmada pela lei identificada. Por conseguinte, se as partes concordarem em aplicar a lei do Estado A ao desempenho, o Estado B à construção e o Estado C às formas de extinguir obrigações, cada lei aceita, respectivamente, a sua escolha para governar essa questão em particular. Caso contrário, falta o sangue vital de cada escolha e quaisquer direitos ou deveres que o fórum pretende impor de acordo com uma escolha inexistente assumem uma distinção de irrealidade.31

Desta feita, observa-se que aceitar o dépeçage ou contract splitting reflete diretamente na autonomia da vontade das partes, que será objeto de estudo do próximo capítulo deste trabalho. Como alertado, admitir o fracionamento significa a possibilidade

31 HARRIS, Jonathan. Contractual freedom in the conflict of laws. Oxford Journals of Legal Studies. n.2, v. 20, pp. 247-269 p. 257, 2000.

Tradução livre do original: “ (...)Subject to this caveat, should the parties be free to choose different laws for every aspect of the contract? On the one hand, this could lead to something resembling a 'contrat san loi', in that it may contain aset of rights and duties unrecognizable in any one legal system. On the other hand, provided that the international mandatory rules of the forum are not infringed, it is not obvious why they should not be permitted to do so. However, it is submitted that this principle should be subject to one restriction: namely, that the validity of any choice must be affirmed by the law identified. Hence, if the parties agree to apply the law os State A to performance, State B to construction, and State C to ways of extinguishig obligations, each lawmust respectively accept the choice thereof to govern that particular issue. Otherwise, the life-blood of each choice is lacking and any rights or duties which the forum purports to impose pursuant to a non-existent choice take on a distinctair of unreality.”

de situações que sequer seriam observadas dentro da concepção unitarista do contrato, pois permitir que as diversas obrigações compactuadas em sede contratual possa vir a ser regidas por sistemas jurídicos diferentes podem levar a um contrato sem lei.

Sob outra ótica, porém, se forem devidamente observadas as normas regentes do contrato e desde que as regras do fórum não sejam violadas, nem sejam desrespeitadas às normas de ordem pública e normas imperativas, não há por que não ser permitidas às partes contratantes se utilizarem desse instituto. Além disso, deve-se observar que a validade de qualquer escolha deve ser confirmada pela lei identificada.

3 SOBRE A LIBERDADE DAS PARTES NO CONTRATO