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Concepções de escrita

No documento marlisilvafroes (páginas 52-62)

Ao escrever sobre vanguarda na literatura brasileira, Lispector demonstra estar atenta à escrita enquanto exercício de experimentação; expandindo a sua linha reflexiva, defende que “toda verdadeira arte é também uma experimentação”, assim como toda verdadeira vida é experimentação. Acrescenta que vanguarda é o rompimento com a visão estratificada, para se visualizar uma realidade outra, que levaria ao conhecimento, ao autoconhecimento. Por fim Lispector conclui que a experimentação se daria a partir das renovações formais, que, por sua vez, conduziriam ao reexame de conceitos novos, até mesmo aqueles ainda não formulados; ou ainda “poderia também partir da consciência, mesmo não formulada, de conceitos novos, e revestir-se inclusive de uma forma clássica, e isso já contrariava o conceito de vanguarda, em estrito senso como é geralmente configurado” (LISPECTOR, 2005, p. 97).

Ao problematizar a crise na arte, a escritora constrói uma brilhante distinção entre falta de criatividade ou de originalidade e, por outro lado, “novidades”, “modismos”; acrescenta ainda que muitos, equivocadamente, tomam “modismos”, “novidades” por originalidades. Assim, para a conferencista, há autores que se determinam a ser originais e vanguardistas; o que ela chama de vanguarda forçada, não sendo, portanto válido. Arremata: “Só me alegra muito a originalidade que venha de dentro para fora e não o contrário. Só a verdadeira vanguarda faz com que os vanguardistas possam ser chamados de contemporâneos do dia seguinte” (LISPECTOR, 2005, p. 109).

Lispector defende a necessidade de se pensar a língua portuguesa do Brasil, sociologicamente, linguisticamente, filosoficamente, psicologicamente. Essa reflexão possibilitaria, também, pensar a linguagem literária, caracterizada por ser a escrita

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[...] que reflete e diz com palavras que instantaneamente aludem a coisas que vivemos; numa linguagem real, numa linguagem que é fundo e forma, a palavra é na verdade um ideograma. É maravilhosamente difícil escrever em língua que ainda borbulha; que precisa mais do presente do que mesmo de uma tradição; em língua que, para ser trabalhada, exige que o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa (LISPECTOR, 2005, p. 106).

Para a autora, a cada sintaxe nova colocamo-nos diante de novas liberdades, até mesmo diante da descoberta de que somos livres, e isso não é fácil, pois “descobrir que se é livre é uma violentação criativa”. Nesse processo, escritor e linguagem se ferem, porque “qualquer aprofundamento é penoso; ferem-se, mas reagem vivos. [...] a linguagem está descobrindo o nosso pensamento, e o nosso pensamento está formando uma língua que se chama de literária e que eu chamo, para maior alegria minha, de linguagem de vida” (LISPECTOR, 2005, p. 106).

Os impasses da criação, as crises escriturais, a linguagem, a tensão entre autor e personagens são recorrentes em Lispector. A escrita ora é concebida como um fardo, ora como salvação, e é também maldição; 51 é descoberta, mas é também segredo, meditação, silêncio. É igualmente ato de rebeldia porque se consubstancia à revelia do autor, da crítica e do leitor; embora, do mesmo modo, se direcione para esse mesmo leitor, que deve assumir uma função ativa no texto.

Em depoimento de 1976, ela afirma que “Escrever é um fardo!” (LISPECTOR, 1991, p. 10). Reconhece que alguns livros lhe deram mais trabalho, citando A cidade sitiada como um dos mais difíceis de escrever porque exigiu uma exegese, a qual não era capaz de fazer, tratando-se de um livro denso, fechado, em que ela perseguia “uma coisa e não tinha quem dissesse que era.” E reitera que San Tiago Dantas, na primeira leitura tinha considerado o livro ruim, que ela tinha “caído” muito; já na segunda leitura, ele achou que esse era seu melhor livro (LISPECTOR, 2005, p. 149).

A escrita é um fardo também porque exige aprofundamentos. A narradora de Água viva desabafa: “Eu aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado” (LISPECTOR, 1994b, p. 50). Tanto mais penosa fica a atividade de escritora se

51 Em texto intitulado “Ao Linotipista”, Clarice Lispector solicita ao linotipista não corrigir a pontuação, mesmo

que lhe pareça esquisito, “é a respiração da frase”, e agradece por respeitá-la, acrescentando: “Escrever é uma maldição” (LISPECTOR, 1999b, p.74).

54 for por obrigação, por dinheiro.52 E esse drama é marcado na escrita de Lispector, em suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, em depoimentos, e ainda, não raro, em seus textos tidos como ficcionais. A título de exemplo, cumpre ler o trecho de Um sopro de vida:

Ângela escreve crônicas para o jornal. Crônicas semanais, mas não fica satisfeita. Crônica não é literatura, é paraliteratura. Os outros podem achá-las de boa qualidade, mas ela as considera medíocres. Queria era escrever um romance mas isso é impossível porque não tem fôlego para tanto. Seus contos foram rejeitados pelas editoras, alguns dizendo que eles são muito longe da realidade. Vai tentar escrever um dentro da “realidade” dos outros, mais isso seria se abastardar (LISPECTOR, 1994a, p. 101-102).

No texto “Ser cronista” (1999b), diante da nova tarefa de ter que escrever para o Jornal do Brasil semanalmente, a escritora indaga sobre o gênero crônica: se se tratava de um relato, de conversa ou de resumo de estado de espírito; tal dúvida, segundo Lispector, poderia ser sanada com o inventor da crônica, Rubem Braga. Ela estava habituada a escrever romances, mas nada encomendado; por isso, tinha receio e sentia desconforto diante da nova tarefa, que envolvia a necessidade de ganhar dinheiro de maneira honesta. A atividade de cronista, segundo sua avaliação, tornava-a pessoal demais, fazia-lhe expor demasiadamente o passado e o presente da vida. Lispector percebe as adaptações que a escrita em um jornal exige: uma comunicação mais fácil, texto menos profundo, que não reflita o escrever, que não estabeleça uma comunicação mais profunda entre autor e leitor, e isso lhe desagrada (LISPECTOR, 1999b, p. 112-113).53

Apesar da constatação do que seja o gênero crônica e as suas especificidades, é inegável o fato de que, mesmo nas ditas crônicas54 Lispector conservava as reflexões sobre o ato de escrever e outras temáticas delicadas que, de maneira mais sintética, transitava dos romances para as crônicas, de modo a estabelecer uma comunicação intensa com o leitor, tal qual nos romances.

52 Em um trecho da crônica “Anonimato” a autora produz uma reflexão apontando o desejo de ser anônima, pois

a escrita em jornais a tornou conhecida, e acrescenta: “Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro” . (LISPECTOR, 1999b, p. 76).

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Em “Amor imorredouro”, Lispector afirma que ainda continua um pouco sem jeito com a nova atividade e que não pode chamar de crônica o que escreve, mesmo porque era neófita no assunto e acrescenta: “Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma”. (LISPECTOR, 1999b, p. 29).

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A maioria dos textos reunidos em A descoberta do mundo rompe com a questão da efemeridade, que é própria do gênero, uma vez que a crônica é destinada a ser lida e esquecida.

55 Seja nas crônicas, seja nos contos ou romances, reconhecemos que, para Lispector, escrever exige coragem, a fim de envidar esforços para emergir algo que possa estar à revelia desse sujeito escritor, ficcionalizado ou não, e ainda à revelia dos interlocutores: “Terei que ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? Assim como uma criança pensa para o nada. E correr o risco de ser esmagada pelo acaso” (LISPECTOR, 1998b, p. 15).

A angustiante sensação de que tinha perdido “o jeito” para escrever a acompanhava sempre, questão que pode ser lida no texto “Ainda sem resposta”; mas esse sentimento, por mais doloroso que fosse, possibilitava-lhe chegar à invenção: “Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura” (LISPECTOR, 1999b, p. 112).55 Podemos ler, nas entrelinhas, que a escritora, ao jogar com a ideia de que “não sabe escrever”, afirma sua literatura singular, aquela em que há o desenvolvimento de certo saber: saber construir o diferente, aquilo que está na contramão da crítica e do leitor mais comum, com suas opiniões já formadas sobre o que é o literário 56.

Se a escrita é concebida como maldição, é uma “maldição que salva”. É maldição porque é um “vício penoso”, do qual é “quase impossível se livrar”. É salvação porque proporciona ao escritor uma utilidade: a de tentar se entender; entender o que é exterior, de “salvar do dia”, romper com aquilo que é “vago e sufocador”, de abençoar uma vida não abençoada. E Lispector vai abençoando vidas não abençoadas, animais, mulheres simples donas de casa, prostitutas, homossexuais, empregadas domésticas, mendigos, etc, salvando-as da inexpressividade, e salvando também o sujeito escritor.

Muito frequentemente em Lispector, a escrita está associada à meditação, um exercício do pensamento sobre si mesmo para reativar o que já se sabe, e se deparar também com aquilo que é desconhecido. É também um exercício de contemplação, uma preparação

55 Em A paixão segundo G.H., a narradora/autora debate-se com o que ela nomeia de “bom-gosto”:

“Sinto que uma primeira liberdade esta pouco a pouco me tomando... Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom-gosto: escrevi “vagalhões de mudez”, o que antes eu não diria porque sempre respeitei a beleza e a sua moderação intrínseca. Disse “vagalhões de mudez”, meu coração se inclina humilde, e eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom-gosto? Mas será este o meu ganho único? Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética...” (LISPECTOR, 1998b, p. 20).

56 Na crônica intitulada “Hermética?” a narradora revida discursivamente a crítica que a acusa de hermética e

contra-argumenta: “Ganhei o troféu da criança-1967, com meu livro infantil O Mistério do Coelho Pensante: Como é? Quando escrevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos fico difícil. Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sentimentos adequados a uma criança: Não posso falar de igual para igual: Mas oh Deus, como tudo isso tem pouca importância” (LISPECTOR, 1999b, p. 79).

56 para aprofundamento naquilo que lhe surge como resultado do “malabarismo” com a escrita. A preparação maior não está no momento que precede a escrita, mas naquele instante-já em que ela acontece e o escritor deve recebê-la como leitor, o que exige uma preparação. A arte de “escrever para descobrir” está presente também em depoimentos. Em 1976, ela declara: “Eu nunca sei de antemão o que eu vou escrever. Têm escritores que só se põem a escrever quando têm o livro todo na cabeça. Eu não. Vou seguindo e não sei não que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria” (LISPECTOR, 1991, p. 8). Essa escrita para a descoberta se situaria em um estágio que a escritora nomeia de estado entre o sono e a vigília (uma espécie de dormitar). Em diversos momentos, em Um sopro de vida, em A hora da estrela, em Água viva e outros textos há essa constatação: “Verifico que estou escrevendo como se estivesse entre o sono e a vigília” (LISPECTOR, 1994b, p. 52). Nesse sentido, a escrita abriga em si segredo e revelação. Ela emerge como linguagem do sonambulismo, entre o sono e a ação consciente.

Em determinados momentos, ela se depara com uma escrita que pode ser nomeada de “escrita-quase” e/ou também uma quase-escrita, aquilo que está à beira, que se aproxima, está perto, mas não é ainda. Ela sabe que habita esse terreno do “quase”, escreve “quase-crônicas”, “quase-romances”, “quase-novelas”, escreve a produção da “borda”, cuja riqueza está justamente em não se enquadrar, e sim trabalhar com a contaminação, tocando todos os gêneros, sem se filiar a nenhum deles:

Escrevo agora para onde? Para o quase. Para o nunca e para o sempre. Será que depois de eu morrer vão silenciar sobre mim? [...]. Não tenho doença nenhuma. Mas tenho quase medo. Medo da operação da mão. Mas tudo vai sair bem. Já operei minha mão uma vez.

Quase vou terminar um “isto” que não chega a ser crônica. Poderia me prolongar mais. Não quero. Porém é um quase.

O trecho acima é de um datiloscrito que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, na pasta “diversos”, com o título “Quase”. Esse texto pode ser lido também no livro Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. (WALDMAN, 1992, p. 20). Há também um datiloscrito de um conto, datado a outubro de 1940, com o título “A crise” / “As Histórias não se completam” (esse título é riscado), em seguida mudado para “História interrompida”. É um conto que foi posteriormente publicado no livro póstumo, A bela e a fera. Nesse conto há um trecho bastante significativo, em que a narradora sinaliza para a dificuldade do germinar de

57 uma ideia e as implicações desse enfrentamento no corpo do sujeito “gestante”. Escrever é também uma experiência corporal, toca os afetos do corpo:

O nascimento de uma idéia é precedido por uma longa gestação, por um processo inconsciente para o gestante. Assim explico a minha falta de apetite no jantar magnífico, minha insônia agitada numa cama de lençóis frescos, após um dia atarefado. Às duas horas da madrugada, enfim, nasceu ela, a idéia (LISPECTOR, 1999, p.15).

A “História interrompida” trata do suicídio de W..., fato que rompe bruscamente com a possível história de amor e de casamento entre a narradora e o bonito rapaz moreno. Essa morte põe em questão as ideias de eternidade, sentido da vida, mundo, Deus. Outro nível de leitura, no entanto, é possível a partir do primeiro título pensado e abandonado pela escritora, “A crise” / “As histórias não se completam”, remete-nos ao próprio narrar que pode ser interrompido, deixado em aberto, rompido abruptamente; instaurando uma espécie de crise e desconforto no leitor, de modo a produzir uma experiência bem próxima ao que Barthes (1996) caracteriza como texto de gozo, aquele que desconforta, põe o leitor em estado de perda. Essa crise é também uma experiência da narradora G.H., que opõe escrita a grafismo. A escrita é expressão, o grafismo é reprodução:

Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isso perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos (LISPECTOR. 1998b, p. 21).

Em um outro datiloscrito, com intervenções manuscritas, que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, na mesma pasta intitulada “Diversos”, há outra série de procedimentos escriturais, demonstrando o seu cuidado com a depuração da escrita, com a construção das personagens, mais especificamente das personagens Virgínia e Daniel do livro O lustre. Esse material foi publicado por Nadia Battella Gotlib (2009b), em uma profícua pesquisa no já citado Clarice Fotobiografia57. As dicas são variadas, vão desde questões mais simples, gramaticais (transformar adjetivos em substantivos, tirar excesso de adjetivos,58

57 Cf. anexo de número 5, a reprodução da fotografia do manuscrito em: GOTLIB Nádia Battella. Clarice

Fotobiografia. 2009b, p. 205.

Confira também a reprodução dessa fotografia do manuscrito, no anexo de número4 .

58 Em A hora da estrela, Rodrigo S.M., personagem-autor e narrador funciona como uma extensão enunciativa

de Lispector, no tocante à preocupação e empenho para atingir um modo de escrever “mais simples”, que pode ser dificultado pela “tentação de usar termos suculentos”. Reproduzo esse apontamento narrativo: “Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que

58 priorizar os fatos indicativos), a questões mais complexas tais como: retirar tudo aquilo que não parecia bem, retirar pensamentos complicados, o grandioso, o paradoxo, modificar frases excessivamente ricas, tornar o texto mais limpo, mais gideadeno59, imprimir um “tom” de maior seriedade, fazer “diálogos vasios (sic) e vulgares entre as pessoas”, rever diálogos, dando-lhes um tom certo, não fazer das personagens bonecos, pois elas deveriam surgir dando impressão de vida e profundeza. E, no tópico 15, aparece também algo que constitui a riqueza escritural de Lispector e que parecia a incomodar: “15- Apagar os vestígios de qualquer processo – não explorar senão de modo diferente os achados”.

Os livros de Lispector estão aí para comprovar que a autora não apaga esses vestígios, e é justamente isso que compõe a beleza do seu texto, imprimindo-lhe um caráter poético e ensaístico ao mesmo tempo. De modo que tais livros sempre exigiram um leitor especial, e uma perspicácia por parte da crítica literária, com os quais a autora sempre se debateu. O embate está no fato de ela assumir que não está para atender ao leitor, ao crítico e a suas expectativas pré-formadas sobre o fato literário. Em diversos momentos, em seus desabafos pode-se perceber que Lispector manifesta que não quer agradar a ninguém, mas ela sabe que tom quer imprimir a sua escrita. O embate corajoso com o leitor aparece também em Um sopro de vida, pela voz /escrita do Autor que afirma esquecer a existência de leitores, especialmente os exigentes que esperam algo dele; por isso prefere atuar na liberdade para escrever “pouco-se-me-dá-o que?; ruim mesmo, mas [...] esporadicamente. O resto são palavras vazias, elas também esporádicas” (LISPECTOR, 1994a, p. 93).

penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria. Sim, mas não esquecer que para

escrever não-importa- o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro - e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência”(LISPECTOR, 1998a p.14-15).

59 Aqui a escritora refere-se ao modo escritural do escritor francês André Gide (André Paul Guillaume Gide, que

nasceu em 1869 e faleceu em 1951), fundador da editora Gallimard, caracterizado por produzir reflexões profundas sobre o fazer literário, sobre a gênese de sua construção e sobre personagens caracterizados como alter ego. Foi autor de diversas obras, dentre as quais, O Diário dos Moedeiros Falsos, Os frutos da Terra, A sinfonia

pastoral, O imoralista, dentre outras. Cf. GIDE. Andre. Sile grain me meurt. Paris: Gallimard, 1967.

Em correspondência dirigida a Lúcio Cardoso, Clarice Lispector afirma: “Reli a Porta Estreita de Gide, sobretudo encontrei as Cartas de K. Mansfield” ( MONTERO, 2002, p.56).

59 Se o leitor exige seu tipo de obra, o autor também exige o seu tipo de leitor.60 Há uma espécie de dedicatória e protocolo de leitura ou advertência em vários textos. Para exemplificar, lembremos o “prefácio” de A paixão segundo G.H., intitulado “A possíveis leitores”. Nele, alguém que assina apenas pelas iniciais C.L.61 esclarece que não se trata de um livro qualquer, pois deve ser lido “apenas por pessoas de alma já formada, que dêem conta da aproximação que se faz gradual e penosamente, as travessias do oposto daquilo que se vai aproximar”. E reitera que o livro não tira nada de ninguém, assim como a personagem G.H. lhe deu uma “alegria difícil”, “pouco a pouco” (LISPECTOR, 1998b, p. 9).

Esse leitor, exigido pela escritura lispectoreana, possivelmente deve se aproximar de um leitor especial, tal qual aquele com quem ela trava um diálogo: trata-se de Guimarães Rosa. Clarice declara, em crônica já citada, que Guimarães Rosa disse-lhe uma coisa que jamais esquecera e que a deixou tão feliz: “disse que me lia, ‘não para a literatura, mas para a vida’. Citou de cor frases e frases minhas e eu não reconheci nenhuma” (LISPECTOR, 1999b, p. 136).

No texto “Fios de seda”, citando Henry James, na evocação da sensibilidade, da experiência sensível, das leves sugestões, captadas pelo inconsciente e revelada, Lispector pretende valorizar o que é da ordem do sensível, do intuitivo e do subjetivo. Na sequência, o pedido dirigido ao leitor para avisar-lhe se ela estiver sendo subjetiva demais, constitui um jogo autoral, pois ela admite também que não se podem evitar as palavras, por isso os leitores devem receber tudo conforme lhes são oferecido, e acrescenta “recebam-me com fios de seda”. Na verdade, os fios de seda são originados de uma interioridade; utilizando uma expressão bem lispectoreana, os fios de seda são “de dentro para fora” (LISPECTOR, 1999b, p. 194).

Outro jogo autoral está nas autocitações, em outras palavras, o fato de em determinados livros ou textos Lispector se referir a outros livros, títulos de obras,

60 A crônica “Mineira calada” narra um episódio em que a empregada doméstica da narradora pergunta-lhe se

ela escreve livros e pede-lhe que empreste um deles. A narradora esclarece: “Fui franca; disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que, continuando a arrumar, e com voz

No documento marlisilvafroes (páginas 52-62)