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Feminino e sexualidade

No documento marlisilvafroes (páginas 195-200)

A presença de mulheres idosas e suas experiências sexuais são grandes exemplos da desconstrução do arquivo cultural e literário, caracterizado pela hegemônica sexualidade juvenil. Como exemplo, temos o conto “Mas vai chover”, no qual uma velha de sessenta anos, Maria Angélica de Andrade, namora um jovenzinho chamado Alexandre, de 19 anos, que só sabia se aproveitar de sua riqueza, sem que ela suspeitasse, apesar da advertência de uma amiga. Ela desejava mesmo era saciar a sua fome de corpo, e ele

[...] era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. [...] Ela havia mudado de roupa, estava com um quimono de renda transparente.

161 Não é nosso objetivo desenvolver essa reflexão. Destacamos o ensaio “A leitora Clarice Lispector”, de

Ricardo Iannace (2001), no qual se arrolam os textos e autores que teriam influenciado a autora na composição de sua obra, desfazendo essa ideia, declarada pela própria Clarice Lispector, de que ela era uma má leitora.

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Via-se a marca de suas calcinhas. [...] Mas ela alcançou bem depressa a boca e quase a devorou. [...] Venha para cama comigo! (LISPECTOR, 1998g, p. 75-76).

Além de expor a sexualidade feminina, de modo mais específico a sexualidade e a sensualidade na velhice, questão culturalmente negada ou recalcada, Clarice Lispector delega à mulher a investida na obtenção do seu objeto de desejo. É a senhora idosa quem aborda o rapazinho, mesmo que seja um sexo comprado, em troca de um carro e outros presentes caros; ela afirma assim a sua sexualidade, a sua sensualidade, o seu desejo. O sujeito que escreve demonstra certo assombro com o narrado e omite detalhes, como se fosse para poupar o leitor de alguma anormalidade:

O que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber. Maria Angélica – oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por ter que escrever isto! – Maria Angélica dava gritinhos na hora do Amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta. Transformou-se num rebelado para o resto da vida. Tinha a impressão de que nunca mais ia poder dormir com uma mulher. O que aconteceria mesmo: aos vinte e sete anos ficou impotente (LISPECTOR, 1998e, p. 77).

E numa ousadia grotesca, o rapaz amante pede a Maria Angélica dinheiro porque sairia com uma garota, e nesse dia ela foi “obrigada a ser penosamente ela mesma” (LISPECTOR, 1998e, p. 78). Para completar a dor, no aniversário de 61 anos, ele não comparece, chegando no dia seguinte com uma goiabada-cascão para presenteá-la: “ela foi comer e quebrou o dente. Teve que ir ao dentista para por um dente falso” (LISPECTOR, 1998e, p. 78). As exigências de Alexandre aumentavam:

– Preciso de um milhão de cruzeiros. [...] – Mas ... eu não tenho tanto dinheiro...

– Venda o apartamento, então, e venda o seu Mercedes, dispense o chofer. [...]

– Sua velha desgraçada! Sua porca, sua vagabunda! Sem um milhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices![...]

Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda. Sem palavra nenhuma a dizer:

– Parece – pensou parece que vai chover (LISPECTOR, 1998g, p. 78-79).

Esse final patético da narrativa e certa ridicularização da personagem, através das falas do amante, denuncia a censura e a coerção cultural que envolve a sexualidade na velhice.

197 A sociedade tem dificuldades de reconhecer a sexualidade, o desejo manifesto em corpo envelhecido, especialmente quando essa vontade de possuir e ser possuída parte do feminino.

“Ruído de passos”162

também tematiza a sexualidade feminina na velhice. Uma senhora de oitenta anos de idade, dona Cândida Raposo, que “tinha a vertigem de viver” (LISPECTOR, 1998e, p. 55), procura um ginecologista porque o seu desejo de prazer não passava; ao que o médico responde que isso não passa nunca. Segue a indagação de dona Cândida:

- Não há remédio minha senhora. - E se eu pagasse?

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta anos de idade.

- E ... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que quero dizer? (LISPECTOR, 1998g, p. 56).

Essa narrativa também termina de modo patético, porém com uma solução: dona Cândida Raposo deu um jeito e “solitária satisfez-se”. Chorou, teve vergonha, mas o gesto foi repetido sempre até que a benção da morte chegasse: quando ouviu um ruído de passos, os passos do seu falecido esposo Antenor Raposo. Deflagra-se aqui a concepção cultural que envolve o avançar da idade como incompatível com o prazer. Vale também mencionar o conto “A procura de uma dignidade”, estudado em capítulo anterior, em que a Sra. Xavier, com os seus setenta anos, “idade indelevelmente maculada” (LISPECTOR, 1997, p. 18), também se depara com perturbadora sexualidade, desejando ser possuída por Roberto Carlos e devorar-lhe a boca. A narradora é implacável na crítica:

Por que as outras velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela não era ninguém. [...] E a danação e a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia. [...] começou a desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. [...] ela não estava habituada a ter quase 70 anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência. [...] Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar a boca de velha? (LISPECTOR, 1997, p. 18-19).

162 Em 1995, foi produzido um curta-metragem baseado nesse conto, sob a direção de Denise Tavares

198 Qual seria a saída para o desejo e para a libido da Sra. Xavier? Ela se encontra não só perdida em um lugar no sentido espacial: o lugar social e cultural da idosa e sua libido constituem também um não-lugar. Ela descobre que ainda está viva, que há desejos latentes no seu corpo; não sabia, contudo, ser idosa, e esse era um de seus labirintos. A manifestação do desejo é permitida ao homem idoso, entretanto, à mulher mais velha decreta-se uma espécie de morte antecipada. A afirmação do desejo, ou mesmo a sua manifestação numa senhora idosa, gera repulsa, estranheza, mortificação ou é concebida como aberração. A porta de saída para a protagonista seria abrir-se para a manifestação do clímax da vida, romper com as ideias cristalizadas, os modelos sociais, subvertendo o que é estabilizado culturalmente para afirmar a sua dignidade.

Esses contos que desenvolvem o tema da sexualidade senil podem ser cotejados com o conto “As maniganças de Dona Frozina”, já estudado no capítulo anterior. Neste, a protagonista é uma viúva com mais de setenta anos, católica, que pune o seu corpo com um jejum sexual porque era fiel à promessa feita ao marido, de nunca mais se casar ou ter relações sexuais. Ela pergunta-se a si própria que “manigança”, que artimanha utilizaria para “calar o corpo”.

Outra questão de emancipação sexual aparece no conto “Melhor que arder”, sinalizando que há forças poderosas no corpo, as quais não se podem negar. Madre Clara entra no convento por imposição familiar e tenta, a conselho de uma confidente, mortificar o corpo, dormindo em uma laje fria e se açoitando com silício, para conter os desejos. Pegou gripes fortes, ficou com o corpo arranhado, mas não adiantou:

Confessou-se ao padre. Ele mandou que continuasse a se mortificar. Ela continuou. Mas na hora em que o padre lhe tocava a boca para dar a hóstia tinha que se controlar para não morder a mão do padre. Este percebia, nada dizia. Havia entre ambos um pacto mudo. Ambos se mortificavam (LISPECTOR, 1998g, p. 71).

Apesar dos esforços, não houve recurso e Clara abandonou o convento, indo morar em uma pensão, com a ajuda da família nortista. Rezava muito “para que alguma coisa boa lhe acontecesse em forma de homem” (LISPECTOR, 1998e, p. 72). E aconteceu. Conheceu um português, com quem se casou, em cerimônia celebrada pelo próprio padre que lhe aconselhara dizendo que era melhor casar que arder.

199 Do mesmo modo, a sexualidade reprimida comparece no conto “Miss Algrave”. A protagonista é uma ruiva descendente de irlandeses, que vive em Londres: bonita, datilógrafa, e virgem, que condenava qualquer tipo de experiência envolvendo a carne, o termo entendido no sentido de alimento ou na acepção sexual. Em sua severidade e moralismo, ela possuía todo tipo de pudor, até mesmo o fato de ter nascido “da incontinência de seu pai e de sua mãe” (LISPECTOR, 1998f, p. 16). Além disso, nunca tinha sido tocada por ninguém; não tirava as calcinhas nem o sutiã, durante o banho, para não se ver nua; e sua alimentação era à base de legumes e frutas, porque considerava que comer – e qualquer outro tipo de prazer – era um pecado. A solidão, entretanto, a esmagava, pois nem mesmo um bicho de estimação Ruth Algrave possuía. De repente, pela sua janela, entra algo que não era um pombo; em seguida, uma voz em forma de vento diz: “eu sou um eu. [...] Vim de Saturno para amar você” (LISPECTOR, 1998f, p. 16). Embora não tenha visto ninguém, Ruth sente o “frisson eletrônico” e envolve-se numa experiência sexual extraterrestre. A prova era o lençol manchado de sangue. Tinha medo que acabasse:

- Eu te amo, meu amor! Meu grande amor!

E – é, sim. Aconteceu. Ela queria que não acabasse nunca. Como era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais, mais e mais.

Ela pensava aceitai-me! Ou então: “Eu me vos oferto”

Era o domínio do “aqui e agora” (LISPECTOR, 1998g, p. 17).

O amante extraterrestre sugere que, na sua ausência, ela deveria se usar. Grandes modificações comportamentais ocorrem depois dessa experiência, bem como mudanças de convicções: Ruth avalia que a noite de sexo não foi pecado e sim “uma delícia”, decide não protestar mais: come carne sangrenta, toma vinho italiano, sente-se “a escolhida”, não sente mais nojo de bichos em acasalamento, nem repulsa pelos casais que se beijam no Hyde Park. Podemos falar num advento da erótica da carne em “Miss Algrave”, que se entrega à força do Deus Baco e de Eros: lembremos que, no início do conto, Miss Algrave considerava a estátua de Eros indecente. Enfim, ela “era agora imprópria para menores de dezoito anos. E deleitava, babava-se de gosto nisso” (LISPECTOR, 1998f, p. 19).

A partir do momento em que se tornara mulher, não aguentaria esperar pelo retorno de seu amante Ixtlan, então, comete uma traição, tendo consciência disso, mas também de que ela “tinha que dar um jeito” (LISPECTOR, 1998g, p. 19). Ixtlan a perdoaria. Leva o primeiro homem para o seu quarto, sem expectativa de receber dinheiro, somente sexo; entretanto, ele lhe deixa uma nota. Considerando-se “boa de cama”, decide receber

200 dinheiro por sexo e trabalhar nas ruas, levando homens para o seu quarto; deixa de ser datilógrafa para exercer outro dom: o do sexo venal.

Não por acaso a narradora menciona a brincadeira infantil entre Miss Algrave e seu primo Jack: “com sete anos de idade, brincava de marido e mulher [...] na cama grande da vovó” (LISPECTOR, 1998g, p. 13). Essa brincadeira infantil já anuncia o dom de seduzir, denotando também que Miss Algrave, na verdade, tinha os seus desejos reprimidos. Ela se imagina abordando o ex-chefe e convidando-o para deitar-se com ela, na certeza de que ele aceitaria: “vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela” (LISPECTOR, 1998g, p. 78-79). Não foi o dinheiro que a motivou para a prática da prostituição, e sim o prazer do corpo nas formas ilimitadas. Daí a presença do amante extraterrestre, que significa o rompimento com a ideia de sexo ligado apenas à procriação:

– Vou ficar esperando bebê? – Não.

– Mas vou morrer de saudades de você! Como é que eu faço? – Use-se (LISPECTOR, 1998g, p. 18).

Nesse conto, prevalece o lado profano e erótico, apesar de, ao final, restaurar-se um ritual sagrado de purificação: “e quando chegasse a lua cheia – tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan” (LISPECTOR, 1998g, p. 20). Lembremos que Miss Algrave era estrábica. O estrábico é alguém que apresenta desvio de um dos olhos da direção correta, de modo que não consegue dirigir simultaneamente os eixos visuais para o mesmo ponto. Quando Miss Algrave cede ao desejo do prazer, rompe com seu modo distorcido e deformado no pensar e no agir. A necessidade de saciar a carne e os apelos do corpo, a multiplicidade de parceiros sexuais, o erótico, a traição, a prostituição passam a compor as suas práticas.

No documento marlisilvafroes (páginas 195-200)