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O saber que envolve a arte de narrar: a propósito de Benjamin e

No documento marlisilvafroes (páginas 67-71)

1.5 Narrar para saber: jogo autoral lispectoreano

1.5.1 O saber que envolve a arte de narrar: a propósito de Benjamin e

A reflexão histórica sobre a arte de narrar em Walter Benjamin (1994), no ensaio “O narrador; considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” encaminha-se para uma descrença quanto à narrativa na era moderna. Esse filósofo defende que a faculdade da troca de experiências se perdeu devido às novas conjunturas e dos novos meios de publicações, com o surgimento da imprensa. Além disso, a primeira guerra mundial também é apontada como a grande responsável pela decadência da narrativa: “no final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” (BENJAMIN, 1994, p. 198).

Benjamin constata ainda que as experiências passadas de pessoa a pessoa, as histórias orais, narradas por anônimos, tornaram-se escassas, em vias de extinção, ou seja, a figura do narrador estaria então em crise. As histórias eram conhecidas tanto por um alguém que vinha de longe e por isso tinha muito para “contar” (no caso representado pelos marinheiros), quanto pelo camponês sedentário que conhecia as histórias e tradições e as repassava para o público ouvinte. Para esse filósofo, essas duas figuras arcaicas de narradores, os do saber e os da experiência, mestres nas artes de narrar, eram dotados de um senso prático, pois sabiam dar conselhos e expor a dimensão utilitária da narrativa, mediante um ensinamento moral ou de uma sugestão prática;

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[...] de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos. [...] Mas, se ‘dar conselho’ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção (BENJAMIN, 1994, p. 200-201).

Se, por um lado, para Benjamin, ocorreu o desaparecimento do discurso vivo, por outro, há também o desenvolvimento das “forças produtivas”, pois as novas formas de narrar surgem mediante uma determinada exigência do momento. Na visão benjaminiana, o romance no início do período moderno assinalaria a morte da narrativa, em função do advento do livro e da invenção da imprensa. E ainda há que se destacar o desaparecimento da comunidade de ouvintes, da arte de ouvir tão regulares nas comunidades rurais, pois o surgimento das cidades lança outras exigências. O romance nasce para um público especificamente urbano. Para Benjamin, as outras formas de prosa (fábula, contos, lendas, novelas) não procedem da tradição oral nem a sustentam. O romance é diferente porque “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

Em contrapartida, Benjamin considera o excesso de brevidade das narrativas modernas como algo condenável, e explica o surgimento das short stories como uma emancipação da tradição oral; essas narrativas curtas não permitiriam mais a superposição de camadas finas e translúcidas, “que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas” (BENJAMIN, 1994, p. 206).

Benjamin utiliza a expressão “o narrador é um homem que sabe...” para indicar que a arte de narrar envolvia a presença física de homens em congregação; de fato, as pessoas se reuniam para contar e ouvir histórias. Há que se observar, com base nessa reflexão benjaminiana, que, realmente, a figura do narrador desapareceu enquanto presença física apenas. Mas, ainda assim, defendemos que a arte de narrar não desapareceu; houve sim reconfigurações que redimensionaram o modo de narrar. Essas redefinições, na modernidade e, mais fortemente, na contemporaneidade direcionam o foco para a linguagem, para o processo escritural, para o rompimento com estruturas tradicionais da narrativa, deslocando a fixidez dos papéis desses elementos narrativos. São visíveis as mudanças na maneira de

69 recontar: o recontar contínuo é possível pelas lacunas nunca preenchidas. No processo de recontar, o ouvinte anterior torna-se narrador, tendo a liberdade de promover os acréscimos. Assim as narrativas, em função dos interstícios, estão abertas a infinitas releituras, em que o revisitar de um texto significa estar sempre diante de outro texto novo, porque nele a linguagem é uma aventura sempre prenhe de sentidos prismáticos, cujo inacabamento não é defeito. Há possibilidades de o leitor ser uma instância co-produtiva e imanente nessa linguagem que não pretende dar respostas, mas estabelecer sempre perguntas contínuas. Aqui é pertinente incluir a literatura lispectoreana como um grande exemplo de reconfiguração no modo de narrar.

No entanto, há que ressaltar que com certa frequência a narrativa moderna e a contemporânea podem retomar formas antigas de narrar ao lado de modelagens novas. Em outras palavras, a narrativa oral não desapareceu por completo porque está incorporada às formas da escrita, que guarda alguns elementos e atributos das narrativas orais, e ainda conserva sua forma germinativa 70.

O que Benjamin nomeia como “verdadeira narrativa” 71

– aquela que manteria suas forças e depois de muito tempo continuaria a se desenvolver, gerando espanto ou reflexão e contínuos relatos – não desapareceu. Os textos de Lispector, por exemplo, são geradores de contínuas reflexões. Essa superposição de narrativas está, de algum modo, presente em Água viva, em Um sopro de vida e em A hora da estrela. E de modo geral, no conjunto da produção da escritora, a semente germina de uma obra para outra, deslocando-se de um campo para outro, nos entrecruzamentos de textos da ficção e da não ficção e, até mesmo, na interposição dos relatos de Lispector com as personagens, com o leitor e com a crítica. Há um trânsito de situações, personagens, temas, livros, concepções ou construções de pensamentos que deslizam de textos ou de trechos de um escrito para outro. Deslocados, remanejados, instauram novo sentido em outro lugar; dialogam com o sentido anterior e se lançam como condutores para uma discussão posterior.

70 A esse propósito, vale notar a observação de Hélène Cixous (1982) sobre o fato de Lispector recuperar a

oralidade na sua escrita, de propor uma economia oral própria do relato. Cixous conclui: “Clarice Lispector tinha fontes locais extraordinárias”, e para chegar a escrever “como se fala” é preciso chegar a um ápice da escrita (1982, p. 11).

71 Para Benjamim a verdadeira narrativa se assemelharia a “essas sementes de trigo que durante milhares de anos

ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas” (BENJAMIN, 1994, p. 204), e, por extensão o narrador que domina a arte de narrar seria aquele que é capaz de acrescentar camadas narrativas, permitindo a superposição contínua de outras camadas.

70 As aproximações entre Walter Benjamin e Clarice Lispector se fazem necessárias para se perceber as novas remodelagens na narrativa, e, ao mesmo tempo, os pontos de contato entre a narrativa tradicional e a moderna. O narrador tradicional na perspectiva de Benjamin mantém como objetivo um “ponto de chegada” com o seu narrar: oferecer conselhos, com uma finalidade moralizante. Ele é quem está dotado de “um saber”, por isso é quem o organiza por meio do acúmulo de saberes. E o leitor é alguém dotado de “um não- saber”, por isso escuta. Embora também possa recontar a história, encerra uma função mais passiva porque mantém mais a estrutura, os motivos narrativos, enfim a “matriz” do texto anterior.

O narrador lispectoreano fixa-se no percurso, o seu objetivo, por isso organiza a narrativa para si mesmo, e narra para estabelecer um diálogo profundo consigo e com o leitor, de modo que este assume função ativa: a de re-organizar essa narrativa. Esse narrador moderno lispectoreano está diante de um novo saber: o saber intuitivo, sensível, estético; embora também seja inegável que o sujeito escritor agencie suas teias de significados, resultantes da cultura, do acúmulo de conhecimentos, saberes, que de algum modo ressoam no texto.

Grande parte da narrativa moderna, mais pontualmente a de Lispector, e a contemporânea não privilegiam um enredo e a sua sucessividade. Nelas, a linguagem, os processos narrativos, o ato de narrar e os seus componentes estruturais são postos em questão, ou seja, passam a ser o foco principal. O leitor assume um papel mais autônomo porque também se desdobra em autor, para participar da experiência com a linguagem, sobretudo aquele leitor que também está atento à questão estética do texto.

Esse desdobramento da função do leitor aparece, não por acaso, ficcionalizado em crônica intitulada “Outra carta”, na qual a narradora menciona o desgosto de escrever para jornais, por considerar que neles ela é derrotada, e acrescenta que concebe o leitor como personagem “curioso e estranho”, “individual”, com “reações próprias”, “tão terrivelmente ligado ao escritor, que na verdade ele, o leitor, é o escritor” (LISPECTOR, 1999b, p. 79).

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