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“A infância e adolescência que vivi é totalmente diferente da infância dos adolescentes com os quais trabalho. Digo em relação às brincadeiras, à educação, e ao novo modelo de família”.

“Hoje eles estão cercados de informação, tecnologia e recursos, mas estão vazios de valores morais e rodeados pela violência, pela oferta às drogas e ao mundo da criminalidade”.

Um primeiro eixo temático dos memoriais são as concepções construídas pelos educadores sociais a respeito dos adolescentes contemporâneos, público-alvo do seu trabalho socioeducativo. Existiram inúmeras comparações entre os processos de desenvolvimento juvenil no passado e no presente, nas quais identificamos um padrão em que os educadores sociais tendem a romantizar a própria adolescência e a atribuir significados negativos às atuais vivências adolescentes. Ao rememorarem as próprias experiências, os educadores sociais se posicionam como adolescentes que eram bons estudantes, bem educados, obedientes e que lidavam bem com normas e limites familiares. Em oposição às significações de si enquanto adolescentes, os educadores sociais entendem que os adolescentes atuais teriam maior facilidade em obter as coisas e possuiriam dificuldades em seu desenvolvimento moral.

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Identificamos nos memoriais dos educadores sociais de todo o país, uma grande antinomia entre o senso de si e o senso da alteridade, no caso, dos adolescentes. Esse estereótipo antissocial do adolescente também foi encontrado ao longo das entrevistas com educadores sociais do DF, conforme apresentaremos no próximo capítulo. Ao longo dos memoriais, tudo o que pertence ao Outro-adolescente tende a ser qualificado como ruim e entra em forte tensão com o que pertence a si mesmo-educador social. Os memoriais veiculam concepções muito negativas dos adolescentes, vistos como rebeldes, individualistas, descontrolados emocionalmente, imediatistas e que não sabem lidar com limites sociais e nem com figuras de autoridade. Os dados desse eixo temático dos memoriais convergem com os estudos realizados por Espíndula e Santos (2004) e pela SEDH e ANDI (2012), no que se refere às representações sociais sobre os adolescentes que cumprem MSEs, representados de modo normativo como irresponsáveis e bagunceiros. A reprodução de visões reducionistas, moralizantes e constituída com base no senso comum sobre o adolescente também foi encontrada por Araújo e Lopes de Oliveira (2010), no que se referia a educadores sociais que atendiam adolescentes em instituição de circo social.

Este estereótipo antissocial sobre o adolescente tem sido legitimado na cultura brasileira, pelo senso comum, pelos meios de comunicação, pelos próprios adolescentes e pelas instituições sociais; são construídos historicamente por meio do privilégio da narração de relações de ameaça e risco interpessoal. Essas visões negativas sobre os adolescentes, especialmente divulgadas por mecanismos midiáticos de construção de realidades, conforme análise de Rizzini, Zamora e Klein (2008), têm sido utilizadas para criar mitos sobre o adolescente brasileiro e para responsabilizar os adolescentes pelo aumento em índices de violência urbana. No imaginário brasileiro, os adolescentes autores de ato infracional são representados de modo mítico, estereotipado, descontextualizado e policialesco; estas representações são incoerentes com a Doutrina de Proteção Integral do ECA e reproduzem os mitos da periculosidade juvenil e da impunidade supostamente vinculadas às MSEs (SEDH/ANDI, 2012).

Estas concepções homogeneizadoras tendem a ignorar as tensões sociais e as condições socioculturais concretas em que cada adolescente se desenvolve e possuem importantes efeitos nas práticas sociais realizadas nos programas de atendimento socioeducativo. Essas macronarrativas normativas sobre quem é o adolescente são internalizadas pelos educadores sociais, de modo a construir socialmente o Outro- adolescente como perigoso e como digno de disciplinarização. As concepções negativas

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sobre o adolescente acabam por promover práticas institucionais adultocêntricas e pouco orientadas para a ruptura com circunscritores culturais presentes previamente nas trajetórias de desenvolvimento do adolescente autor de ato infracional.

Esses estereótipos se tornam naturalizados e são adotados pelos educadores sociais, pelos próprios adolescentes e pela sociedade brasileira, podendo funcionar como profecias autorrealizadoras dentro das unidades de execução de MSEs, ao passo que as práticas institucionais parecem concretizá-los (Traverso-Yèpez & Pinheiro, 2005; Yokoy de Souza, 2008). Por exemplo, o estereótipo antissocial passa a funcionar como explicação para uma série de comportamentos dos adolescentes e como justificativa para o endurecimento de regras disciplinares; nas unidades de internação, a representação do adolescente como sujeito perigoso e descontrolado emocionalmente funciona como justificativa institucional para o uso de instrumentos de contenção do comportamento dos adolescentes, tais como tonfas e algemas. Os pressupostos sobre os adolescentes também circunscrevem o estabelecimento de relações interpessoais nas unidades de execução de MSE, parecendo justificar o pouco investimento afetivo nas relações estabelecidas entre educador social e adolescentes.

As resistências às mudanças nessas representações dos educadores sociais estão associadas a crenças e valores carregados de afetos sobre os adolescentes que cumprem MSEs. Por mais que se diga que os adolescentes podem sair da criminalidade, já existe uma crença arraigada, de base afetiva, que aposta no agravamento de seu envolvimento com a criminalidade. Esses afetos são construídos ao longo dos muitos anos de experiência profissional, sofrendo ameaças e sendo desvalorizados pelos adolescentes de quem cuidam. A visão da delinquência como tendência intrínseca do sujeito tem resultado em baixas expectativas dos atores institucionais quanto ao potencial de mudança subjetiva daqueles que são alvo das MSEs (Lopes de Oliveira & Vieira, 2006).

Os dados desse primeiro eixo temático dos memoriais sugerem a importância de que estas concepções negativas e estereotipadas sobre os adolescentes que cumprem MSEs sejam questionadas em propostas de formação para educadores sociais, com as finalidades de compreender o processo de construção social do adolescente como sujeito perigoso bem como de compreender os efeitos desse discurso normativo sobre o adolescente e sobre a cultura institucional socioeducativa, que circunscreve o desenvolvimento dos educadores sociais.

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Relações dialógicas são estabelecidas entre discursos normativos, construção de concepções de mundo e de sujeito, práticas sociais, mudanças institucionais e formação profissional/pessoal. Ao longo do tempo, as concepções negativas sobre os adolescentes são introjetadas subjetivamente e se tornam reificadas culturalmente nas práticas de atendimento dos programas socioeducativos. Compreendemos que a construção de outras concepções sobre os adolescentes, em espaços de formação profissional/ pessoal de educadores sociais, pode colaborar no processo de mudanças nas relações interpessoais entre educador social e adolescentes e nas práticas institucionais socioeducativas, em direção aos parâmetros de atendimento estabelecidos no SINASE.