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“A família é a base, esses adolescentes não as tiveram, os se as tiveram não exerceram corretamente suas funções, não podemos trabalhar os sintomas sem trabalhar as causas”.

“Ao meu ver as famílias devem educar para não chegar ao ponto de serem levados as instituições”.

Um segundo eixo temático que emergiu dos memoriais se relaciona às concepções das famílias dos adolescentes com histórico infracional, destacando-se as críticas à diversidade de configurações familiares e a estilos permissivos de educação de adolescentes. Tal qual no eixo temático anterior, também aqui identificamos uma grande antinomia no discurso dos educadores sociais entre as representações da própria família e a família dos adolescentes que cumprem MSEs.

Os educadores sociais relatam em seus memoriais que fazem parte de uma família bem-estruturada e tradicional e privilegiam a narração de aspectos socialmente considerados positivos da própria socialização infantil e juvenil. Narram que receberam uma educação familiar rígida, por meio da qual aprenderam desde cedo a lidar com responsabilidades e a respeitar limites sociais e figuras de autoridade.

Os educadores sociais também narram em seus memoriais que o modelo da família nuclear burguesa supostamente favoreceria um desenvolvimento mais saudável para as pessoas. Mesmo com as enormes mudanças sociais e familiares acontecidas nas últimas décadas, as múltiplas configurações e dinâmicas familiares (ex: recasamentos, socialização realizada por tios e avós), os modos diversos de conjugalidades continuam a

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ser interpretados à luz do modelo nuclear burguês e das concepções tradicionais sobre os papeis de pai e mãe (Braz, Dessen & Silva, 2005; Dessen & Braz, 2005).

Em oposição às representações das próprias famílias, verificamos, nos memoriais, um padrão de representações muito negativas das famílias dos adolescentes atendidos no SSE, vistas pelos educadores sociais como desestruturadas, pouco envolvidas na educação dos adolescentes, com baixas competências educativas e que não forneceriam aos adolescentes nem apoio, nem afeto e nem limites. Esse padrão converge com as nossas experiências anteriores (Lopes de Oliveira & Vieira, 2006; Lopes de Oliveira, Silva & Yokoy de Souza, 2010; Yokoy & Lopes de Oliveira, 2008), nas quais verificamos que as famílias dos adolescentes que cumprem MSEs são concebidas como desestruturadas, violentas, irresponsáveis e delitogênicas por muitos profissionais dos programas de atendimento socioeducativo. A suposta desestruturação familiar e a ausência da supervisão familiar no cotidiano do adolescente são as principais justificativas dos educadores sociais, nos memoriais, para a inserção juvenil na trajetória infracional.

Grande importância é atribuída às experiências familiares e comunitárias para o desenvolvimento infantil e juvenil. As narrativas dos memoriais evidenciaram que os educadores sociais consideram que as aprendizagens morais são realizadas prioritariamente pela família e não pelas instituições socioeducativas. Alguns defendem, em seus memoriais, que os pais dos adolescentes que cumprem MSEs também devem ser punidos no SSE, por não terem fornecido uma boa educação aos filhos e, com isso, os adolescentes precisaram ser institucionalizados pelo Estado. Essa visão ilustra a existência, no SSE brasileiro, de um olhar reducionista e psicologizante do envolvimento com atos infracionais, a serviço da retirada do adolescente do convívio familiar, o que diverge da perspectiva da Garantia de Direitos e da Doutrina da Proteção Integral.

Por outro lado, nos memoriais, coexistem algumas narrativas contrárias a essa visão hipersimplificadora do determinismo familiar sobre o envolvimento infracional. Nestas narrativas, são realizadas análises mais conjunturais sobre o envolvimento dos adolescentes com atos infracionais, nas quais a violência estrutural da nossa sociedade é identificada como fator central. Do ponto de vista sócio-cultural, em uma mesma cultura institucional, coexistem diferentes políticas de interpretação, de modo que os discursos estão em constante processo de gênese e reelaboração ao longo do cotidiano (Castro- Tejerina & Rosa, 2007). Esses diferentes discursos existentes no SSE sobre as causas de envolvimento dos adolescentes com infração, ilustrados nos memoriais, se associam a

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diferentes identidades profissionais dos educadores sociais e a diferentes estilos de relação interpessoal entre educador social e adolescentes, como discutiremos no próximo capítulo, com o apoio dos resultados das entrevistas.

As concepções negativas sobre a família dos adolescentes que cumprem MSEs favorecem práticas de estigmatização de alguns arranjos familiares e de culpabilização das famílias pelas situações de vulnerabilidade enfrentadas; além disso, ensejam práticas de atendimento de caráter clientelista e assistencialistas que acabam por dificultar o enfrentamento político da situação de vulnerabilidade social de muitas dessas famílias (MDS, 2012). Concordamos com Gomes (2012) que a relação entre o SINASE e o SUAS deve se fortalecer, de modo a garantir os direitos dos adolescentes que cumprem MSEs e de seus familiares. Dentro das políticas de Assistência Social do SUAS, existem Serviços orientados para esse fim em níveis de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial (CNAS, 2009; MDS, 2006, 2009). O Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) atende famílias que vivenciam violações de direitos por ocorrência de afastamento do convívio familiar devido à aplicação de MSE ou medida de proteção. Já o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade visa o provimento de acompanhamento de jovens que cumprem MSE em meio aberto, de modo a contribuir para o acesso a direitos, para a ressignificação de valores e para a construção de projetos de vida. Já o trabalho do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) visa o acompanhamento socioassistencial de famílias, fortalecendo vínculos familiares e comunitários.

O trabalho social com famílias objetiva proteger os direitos dos membros da família e apoiá-los em seus papéis protetivos e socializadores (MDS, 2012). Para alcançar estes objetivos, é necessária a desconstrução, por parte dos educadores sociais, dos modelos de família tidos como naturais e da atuação moralizante de comportamentos, crenças e valores dos diversos grupos familiares.

Do nosso ponto de vista, convergente com a perspectiva de Garantia de Direitos (SDH, 2010a), cada família se organiza de modos diversos e se caracteriza por uma dinâmica partilhada por sujeitos históricos, com experiências próprias construídas em contextos sociais, econômicos e culturais específicos. Entendemos que é necessário que os educadores sociais, para uma atuação socioeducativa de qualidade, consigam ultrapassar a ênfase na idealização da estrutura familiar nuclear burguesa para a ênfase na capacidade da

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família exercer suas funções de proteção e socialização dos adolescentes. Também é necessário que o educador social considere o contexto sócio-histórico-cultural em que a família do adolescente que cumpre MSE se insere para poder compreender as vivências sociais e afetivas dessas famílias. Por exemplo, é comum que o adolescente que cumpre MSE contribua financeiramente na sobrevivência do seu núcleo familiar e, com isso, seja significado por seus familiares como mais independente (Assis & Constantino, 2005; Tomasello, 2006) e a supervisão sobre seus comportamentos cotidianos (ex: horário de retorno do adolescente a casa à noite) seja vista como menos necessária pelos adultos dessa família.

Os dados desse segundo eixo temático sugerem a importância de que as novas configurações e dinâmicas familiares da contemporaneidade sejam trabalhadas em propostas de formação para educadores sociais, a fim de favorecer a construção de intervenções socioeducativas promotoras do desenvolvimento familiar e que valorizem as competências educativas já possuídas pelas famílias, sem a emissão de julgamentos morais sobre as famílias dos adolescentes, sem a projeção das próprias vivências e valores familiares. Entendemos que o foco do atendimento socioeducativo às famílias não é punitivo; ao contrário, deve ser de garantia de seus direitos e de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.