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Conceptualização da educação e do currículo perfilhada pelo sistema educativo

CAPÍTULO II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. Das políticas educativas e curriculares contemporâneas à gestão e flexibilidade curricular

1.1 Conceptualização da educação e do currículo perfilhada pelo sistema educativo

Se “a política educativa corresponde ao conjunto de decisões oriundas do sistema político, englobando as intenções e estratégias determinadas pelos critérios ideológicos e pelas necessidades reconhecidas como válidas socialmente” (Pacheco, 2005a: 61), procurámos perceber o que é que as políticas educativas nos reservam no que diz respeito às questões curriculares ou se, como tem vindo a ser habitual, o currículo tem sido decidido em função das questões políticas imediatas ditadas “pela urgência da afirmação política, sob pena de a mesma se situar no campo da mera retórica, e por conseguinte, da efemeridade” (Pacheco e Morgado, 2002: 7).

Assiste-se à volatilidade das profissões e, por outro lado, à valorização do capital humano e é neste contexto de incerteza que a educação permite a cada indivíduo reconstruir capacidades que se desvalorizam, preparando-os para algo incerto, pois em boa verdade, não se sabe exatamente que competências deverão ser valorizadas no futuro.

A este propósito, Moreira e Pacheco (2006: 83) enfatizam a necessidade de as decisões políticas se centrarem na ideia de que

“a educação, independentemente dos benefícios de índole económica, científica e tecnológica que possa transportar é uma oportunidade por excelência para ajudar a atenuar as desigualdades sociais, para estimular o desenvolvimento de todos os cidadãos”.

São estas transformações que originam pressões na educação, em sentidos opostos, as quais se direcionam “ora no sentido do desenvolvimento social, procurando construir uma sociedade mais igualitária e inclusiva, ora no sentido do desenvolvimento económico e do aumento da competitividade” (Fernandes, 2000: 29).

Assiste-se a uma mudança de paradigma que passa a privilegiar mais a aprendizagem do que o ensino com base em referentes políticos que configuram um sistema educativo mundial globalizado (Lipovetsky e Serroy, 2010), a partir dos quais procedem as decisões político-administrativas responsáveis pela homogeneização curricular (Pacheco, 2011). Mas a existência desta “vaga comum no currículo a nível mundial”, tende a sofrer alterações a nível da sala de aula (Anderson-Levitt, 2008: 364).

O fenómeno globalizador suscitou novas exigências educativas, facto que se tem repercutido no terreno curricular e, particularmente, na forma como se organiza o currículo, já que este assume uma centralidade no debate sobre as questões educativas, designadamente no que diz respeito à pedagogia.

“O complexo enigma do ensino poderá ser compreendido, em parte, se apreendermos o processo interno da estabilidade e das mudanças curriculares” (Goodson, 2001: 230). Reveste-se de polémicas, de desafios, mas também de incertezas, razão pela qual assistimos a sucessivas reformas educativas nas mudanças de governo. Gimeno (1997: 27) adianta “Mais do que reformas específicas e delimitadas, o sinal dos tempos é o de estar em processo permanente de reforma.”

Esta abordagem torna-se mais complexa quando os resultados escolares transparecem eventuais debilidades do sistema educativo. “Currículo e educação são assim duas faces de um mesmo processo com vista à formação de pessoas em contextos organizacionais formais e/ou informais” (Pacheco: 2005a: 171), motivo pelo qual a pedagogia diferenciada assume especial importância.

Hargreaves (2004: 14) reconhece que a pressão coerciva por padrões curriculares uniformes, assim como a existência de normas de avaliação fortemente ligadas a práticas de controlo curricular, suscitaram em muitos sistemas educativos a emergência de “sentimentos autocentrados e exagerados de identidade nacional em que a busca necessária de padrões mais elevados de exigência educativa degenerou numa obsessão compulsiva pela estandardização”, dificultando a adaptação do currículo às especificidades do público escolar heterogéneo que reclama, indubitavelmente um atendimento diferenciado.

Se atendermos ao facto de que não é possível conceber um currículo neutro, então centraremos a nossa análise nas transformações que se têm vindo a desenvolver, sem deixar de considerar o contexto que caracteriza a nossa sociedade atualmente.

“O currículo não pode ser entendido como um projeto intemporal, mas como uma realidade em construção acionada na procura incessante de novas relações entre o conhecimento” (Pacheco:2005a: 81). É, de resto, com base neste pressuposto que será possível responder às questões colocadas por Beyer e Liston (1996): qual o conhecimento mais valioso? Quais as experiências mais valiosas? Qual a relação entre o conhecimento difundido no currículo formal e os agentes implicados na sua organização? Como é que os contextos sociais, políticos e institucionais atingem as experiências curriculares vivenciadas pelos alunos? Que conceções de democracia subjazem a conceção de um currículo?

As possíveis respostas só podem ser perspetivadas no reconhecimento de que o currículo é um projeto assinalado pela relatividade cultural que se descontextualiza no espaço e no tempo. É com base neste princípio que Gimeno (1988: 192) constata a desestabilização permanente do currículo escolar, já que se constitui como um possível texto, “na permanente pretensão de querer representar algo valioso que seja valorizado por todos, ao mesmo tempo que recolhe a pluralidade possível dos textos.”

O processo de globalização, embora anuncie a descentralização e a individualização, concretiza-se pela padronização de práticas, ao mesmo tempo que reclama por “instituições sociais capazes de produzir e transformar a ordem das sociedades” (Ortiz, 2006: 74). A escola é, precisamente, uma destas instituições que impõem a coesão nacional pela organização do conhecimento, embora tal não signifique que todas as escolas tenham o mesmo padrão de funcionamento. Por outro lado, não é menos verdade que um dos efeitos da globalização reside na padronização dos sistemas educativos, no que ao conhecimento escolar diz respeito, designadamente no que se refere à sua tradução em competências e organização modular, assim como na cultura de avaliação que pretende controlar os resultados escolares (Pacheco, 2007a).

Em função deste processo convergente, as práticas de educação e formação retomam a visão tecnicista através de modelos ligados à racionalidade técnica (Pacheco, 2003a) e aos princípios da engenharia social (Pinar, 2007), estando subjacente uma conceção instrumental da formação, pelo que a política curricular implementada, não obstante os

discursos de descentralização, ainda é recentralizada ao nível das práticas (Pacheco, 2003a).

Pacheco (2008b: 20) diz-nos que “a prescrição curricular observa-se de modo mais efetivo ao nível da avaliação escolar e da avaliação das aprendizagens”, no âmbito das competências do ME para regular o sistema educativo, designadamente no que diz respeito aos diversos aspetos a saber: modalidades de avaliação; natureza e periodicidade de cada uma delas; a avaliação sumativa externa; normas para a retenção dos alunos; orientações curriculares gerais relativamente ao conceito de avaliação, aos princípios pedagógicos essenciais e aos procedimentos a adotar pelas escolas e pelos professores.

Com efeito, apesar dos discursos da administração “o Estado central não abdica de todo o seu poder na organização do sistema educativo” (Mons, 2004: 46), contribuindo para a legitimação e uniformização dos processos de educação e formação, pois como afirma Canário (2005: 77) “as diferenças ou nuances institucionais, entre diferentes níveis de ensino, diferentes períodos ou diferentes regiões não permitem ocultar a universalidade de uma solução organizacional, claramente aparentada com o modo taylorista de organizar a produção industrial”, operando como um obstáculo a uma gestão flexível do currículo e à prática de uma pedagogia diferenciada.

Pacheco (1995a) corrobora esta ideia, afirmando que as mudanças operadas nas práticas escolares não são expressivas, pois na sua opinião, existe uma estrutura invariante no pensamento e na ação dos professores. Porém, a globalização fez emergir identidades técnicas dependentes dos vários contextos de ensino, já que os professores são, cada vez mais, chamados a prestar contas pelos resultados escolares obtidos pelos alunos.

O currículo nacional é, então, legitimado pela ideologia de mercado, procurando instituir uma política de prestação de contas. Está estreitamente ligado à problemática do conhecimento, cuja importância é avaliada em função da resolução de problemas e do saber prático expressos num discurso que valoriza as competências concebidas, por um lado, por uma lógica de responsabilização individual (Canário, 2005) e por outro, por uma lógica de empresarialização do conhecimento (Alves, Estêvão, Morgado, 2006).

Embora caminhemos a passos largos para uma nova conjuntura mundial, os recursos mais valiosos continuam a ser as pessoas, razão pela qual a educação continua a assumir-se como o caminho decisivo para a inclusão social (CNE, 1997). Marcelo (2002) relembra

que o valor das sociedades atuais depende diretamente do nível de formação dos cidadãos, assim como das suas capacidades de inovação e de empreendimento.

Se, por um lado, faz-se apelo a uma escola inclusiva e à educação e formação para todos ao longo da vida, por outro, fundamenta-se a necessidade de desenvolver níveis de competitividade, a pretexto de se elevar o nível de qualificação dos trabalhadores, sabendo de antemão que a competitividade é de caráter seletivo, em oposição ao conceito inclusivo, que, por seu turno, subentende respostas educativas diferenciadas.

São inúmeras as situações que nos obrigam a repensar a conceptualização da educação e do currículo, mas as intenções não bastam, sendo imprescindível concretizá-las e os princípios que as sustentam, razão pela qual as condições de realização suscetíveis de viabilizar essas intenções não podem ficar em segundo plano. “ Se aplicarmos aqui a trilogia do poder, saber e querer, é necessário que cada um de nós queira e saiba responder aos desafios que as mudanças sociais têm colocado à educação escolar e ao exercício profissional dos docentes” (Leite, 2005a: 8).

Constatámos que os discursos legislativos apontam para uma conceção missionária e militante do professor, ao qual é imputado um conjunto de responsabilidades, exigindo uma pessoa psicologicamente e pedagogicamente bem formada e a assumpção de papeis diversificados: animador, facilitador da aprendizagem, avaliador, catalisador de boas relações interpessoais, investigador…, entre tantos outros. Para além do trabalho a realizar na sala de aula também lhe é exigida a participação em projetos da comunidade escolar, o desempenho de cargos inerentes à gestão pedagógica ou administrativa da escola, o estabelecimento de pontes com a família e o mundo do quotidiano dos seus alunos. Trata- se daquilo a que Formosinho (2009a: 50) denominou de “discursos do superprofessor” Perrenoud (2000a: 73) interroga-se acerca dos desígnios meritórios das políticas educativas que não produzem os “milagres esperados”, justificando tal realidade com um terreno político movediço, a insuficiência de meios, os conflitos entre pais e professores e a implementação de estratégias demasiado simplistas.

O quadro legislativo analisado1 remete-nos para novos conceitos que enfatizam a aprendizagem e a sua adequação em função das diferenças. Veremos nos capítulos que se seguem como é que estas deliberações políticas se entrecruzam com as práticas

pedagógicas, na voz dos mais diversos autores e investigadores, cujas opiniões teremos em consideração, sabendo de antemão que “o currículo é um artefacto político que interage com a ideologia, a estrutura social, a cultura e o poder” (Sousa, 2004: 180-181), se tivermos em conta o tipo de escola que se pretende desenvolver, “democrática e aberta à diversidade social e cultural” e favorável à construção de contextos pedagógicos diferenciados.

Será que as escolas e muito especificamente os professores poderão desempenhar um papel de transformação desses resultados por via da (re) definição das políticas curriculares nos seus contextos de ação pedagógica? Ou, então, como questionou Sousa (2008) aquando da sua participação num congresso que teve lugar na Universidade da Madeira em abril de 2007: “Que espaço para o professor na definição de políticas educativas e curriculares”?

1.2 O papel da escola e do professor na (re)definição das políticas