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As políticas públicas para o Centro

IV.. 6.4.O interesse do setor imobiliário divulgado

IV.6.5. Concessão Urbanística

Neste contexto, em 2009 foi colocada em votação na Câmara Municipal de São Paulo a lei de Concessão Urbanística. Dentre todos os instrumentos até então for- mulados pelo poder público no Centro, este é o mais explícito em termos de aproxima- ção entre política pública e mercado imobiliário.

Como grande cartada do poder público municipal, o instrumento, constante do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (artigo 239), mas que ainda não havia sido regulamentado, autoriza o Poder Executivo a delegar à iniciativa privada a realização de obras de urbanização ou de reurbanização, inclusive loteamento, reloteamento,

141 www.centronovo.com.br. BERNARDES, Cláudio. . “Centro de germinação”: modelo para mudar. 2008. 142 Idem

demolição, reconstrução e incorporação de conjuntos de ediicações. Além da pos- sibilidade de realizar a desapropriação urbanística propriamente dita, concede-se ao setor privado a autorização para uso de instrumentos jurídicos tais como o direito de preempção, o consórcio imobiliário, o direito de superfície, a concessão real de uso. Os empresários icam responsáveis pela implantação de um plano urbanístico deinido pela Prefeitura, também objeto de licitação, e, em contrapartida, poderão icar com os lucros da revenda ou exploração dos imóveis beneiciados após a reurbanização, bem como a renda derivada da exploração de espaços públicos (Projeto de Lei nº 01- 0087/2009).

O fundamento jurídico para que um particular possa realizar a desapro- priação urbanística, jurídica ou amigável, veio de um Decreto-Lei de 1941, segundo o qual “os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas de poder público poderão promover desapropriação mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato” (art. 3º do Decreto-lei nº 3.365/41). Tal artifício levantou grande polêmica no meio jurídico, na medida em que o dispositivo da lei de 1941 refere-se às concessionárias de serviços públicos, como os de fornecimento de energia elétrica, águas, esgotos, transportes coletivos, realizados sob forma de concessão ou permissão, mediante licitação144. Nestes casos, a faculdade

de desapropriar deverá ser seguida pelas obras de implantação do serviço público, o que não seria o caso da Concessão Urbanística. Além deste aspecto, foi criticada a pos- sibilidade de particulares obterem lucro imobiliário, com a anuência do poder público, através da execução de melhorias urbanas da forma como prevista em tal lei. Segundo manifestação da defensora pública do Estado de São Paulo, Anaí Arantes Rodrigues, à época da aprovação do projeto de lei, este

desrespeita a Constituição ao criar formas de burlar princípios da política urbana, delegando a particulares a realização de intervenção urbana estru- tural, utilizando instrumentos exclusivos do poder público (como a desap- ropriação) e retirando do poder público a possibilidade de recuperação das mais-valias urbanas, já que a remuneração do concessionário decorreria, justamente, da sobrevalorização imobiliária consequente à intervenção ur- banística145.

144 HARADA, Kiyoshi. Concessão urbanística. Uma grande confusão conceitual. 2009. In http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto.asp?id=12454.

Segundo outro jurista, este aspecto - a desapropriação de zonas para ulterior revenda - (também previsto Decreto-Lei nº 3.365/41) já teria se tornado inconstitucio- nal, com a Constituição Federal de 1946, onde se instituiu a aplicação da “contribuição de melhoria” sobre propriedades imobiliárias excessivamente valorizadas em função da execução de melhoramentos públicos (HARADA, 2009). Segundo Harada, com a concessão urbanística estaria sendo criada, na prática, “a igura de concessionária de especulação imobiliária, atividade vedada ao Poder Público”, na medida em que os em- presários têm o direito de icar com o lucro imobiliário decorrente das benfeitorias. Este jurista também se pergunta o porquê da utilização de terceiros para a reurbaniza- ção da Luz, na medida em que existem na PMSP empresas, como a EMURB, habilita- das para tal.

Além de polêmica entre os juristas, a Concessão Urbanística também foi mo- tivo de manifestações do setor comercial da região da Rua Santa Iigênia e outras en- tidades da sociedade civil, preocupadas com o aumento dos aluguéis e despejos que viriam a expulsar atividades e moradores de baixa renda. Mesmo questionada, a Lei de regulamentação da Concessão (Lei nº 14.917/09) foi aprovada em maio de 2009. Em 01/07/2009, foi lançado o Edital para contratação do projeto de concepção urbanística para a Nova Luz, e em maio de 2010 a Prefeitura anunciou o Consórcio Concremat/ City/AECOM/FGV, composto pelas empresas Concremat Engenharia, Companhia City, AECOM Technology Corporation e Fundação Getúlio Vargas, como vencedor da licitação. O projeto deverá seguir quatro diretrizes: moradia para a população de baixa renda [devido à ZEIS-3], ampliação de áreas verdes e públicas, viabilidade econômica do projeto e impacto ambiental. O próximo passo, após inalizado o projeto, será a escolha, também mediante concorrência, da empresa que ganhará a concessão e ex- ecutará o projeto.

Sobre os resultados do Projeto Nova Luz, a comoção gerada à época de sua divulgação acabou se arrefecendo em função da demora para execução de tudo que foi alardeado, conforme se pode observar em Editorial do Estado de São Paulo. O edito- rial apresenta um bom resumo dos passos até agora dados – ou não dados – pelo poder público, que mais uma vez não tem resultado em grandes transformações:

Em pouco mais de quatro anos, mudanças no projeto já destinaram a Cra- colândia a ser polo de tecnologia, centro cultural, endereço de colégios e universidades e de milhares de famílias de todas as classes sociais - um exemplo de renovação urbanística. Na realidade, a Cracolândia continua sendo reduto de viciados. (...) Urbanistas airmam que, tivesse a Prefeitura liderado as ações, transferindo para a Nova Luz alguns órgãos da admin- istração municipal, e iniciado a recuperação do entorno, a adesão das em- presas privadas ao projeto teria sido mais ampla. Mas nos quatro anos da gestão Serra/Kassab, a Prefeitura usou apenas US$ 4 milhões dos US$ 100 milhões colocados à sua disposição pelo Banco Interamericano de Desen- volvimento (BID) desde meados de 2004. (...) Durante os três primeiros anos da administração Serra/Kassab, as ações relacionadas com o projeto se limitaram a algumas blitze para livrar o lugar de traicantes, viciados e outros tipos de marginais. As obras não foram iniciadas porque, segundo as autoridades, era preciso mudar o enfoque do projeto. Ou seja: havia a ne- cessidade de alterá-lo para que o Nova Luz deixasse de ser um plano da ad- ministração anterior, de Marta Suplicy, e ganhasse as marcas da gestão Ser- ra/Kassab. Prevaleceu, assim, a tradição da descontinuidade. (...) Somente no ano passado, quando Gilberto Kassab concorreu à reeleição, a Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) voltou a anunciar investimentos - que não foram feitos. Agora, a Prefeitura quer que a iniciativa privada invista no projeto, por meio da concessão urbanística (EDITORIAL O ESTADO DE SÃO PAULO, 2009).

Certamente contribuiu para o arrefecimento do marketing em torno do pro- jeto a saída de Andrea Matarazzo da Prefeitura, em 2009.

Entretanto, mesmo sem ações concretas, obteve-se informações sobre o au- mento dos valores imobiliários em função da expectativa de mudanças, e sobre como tal aumento vem atrapalhando o funcionamento da Lei de Incentivos Seletivos, por exemplo. Segundo o depoimento de alguns corretores, coletados ao longo da pesquisa, os descontos do ISS têm interessado a várias empresas, contudo,

A notícia do projeto gerou especulação imobiliária. As negociações icaram mais lentas, piores. Estávamos negociando imóveis em 2005, o preço era de R$ 400,00 a R$ 500,00 o m²; hoje está entre R$ 2.000,00 a R$ 4.000,00. O entorno tem que melhorar muito para justiicar essa valorização. Só o boato já mudou o valor. O governo se deu um ‘tiro no pé’ ao anunciar o projeto antes da hora146.

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De modo geral, as análises realizadas neste capítulo mostram que as tentativas feitas pela Prefeitura para atrair o setor privado para o Centro atravessaram gestões. No inicio, foram as Operações Urbanas, através de lexibilizações legislativas. Não havia aqui aplicação de recursos públicos para alavancar investimentos privados, mas havia a oferta de concessões, e a realização de benfeitorias de porte pequeno e médio com o recurso arrecadado pelas Operações.

As operações urbanas se baseavam na existência de uma demanda reprimida do mercado, que não se manifestava por questões de zoneamento. Como visto, isto se mostrou uma falsa questão: os grandes empreendedores do mercado imobiliário não estão no Centro porque não há nele a demanda desejada que justiique seu desloca- mento dos setores da cidade com maiores potenciais de lucro.

Algumas intervenções visaram atrair essa demanda, como os equipamentos culturais, associando a recuperação do patrimônio histórico a novos atrativos culturais. Aqui já se viu a realização de obras de algum porte, como por exemplo a restauração da Estação Julio Prestes e a construção da Sala São Paulo, a restauração da Pinacoteca, do antigo DOPS, da Estação da Luz, com a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Havia, com estas iniciativas, a expectativa de que a recuperação do valor simbólico do patrimônio viesse a atrair o interesse de grupos de maior renda e, por conseguinte, desencadear mudanças no entorno dos novos equipamentos culturais, mas não ob- tiveram sucesso. Naqueles empreendimentos, chegou a ser operada parceria entre setor público e privado. Setores da iniciativa privada participaram na realização de alguns empreendimentos com estímulos da Lei Rouanet, (como, por exemplo, a Telefônica, entre outras) e no gerenciamento dos projetos (como, por exemplo, a Associação Viva o Centro e a Fundação Roberto Marinho), como visto. Embora tais parecerias tenham representado uma mudança na forma de atuação do Estado, ao repassar para o setor privado a responsabilidade de criação e gestão de intervenções públicas, não tiveram, nestes casos, o horizonte da geração de lucros (diretos, ao menos). Por outro lado, tinham o caráter de controle do espaço, de deinir com os projetos lançados a quem pertence o Centro e desencadear uma mudança “natural” nas redondezas.

luência do BID, o Programa Ação Centro também apostava no poder dos recursos do inanciamento e das obras realizadas para atrair o setor privado para o Centro. Aliás, isto é uma das metas dos convênios assinados com o Banco.

A lei de Incentivos Seletivos procurou atrair novos estabelecimentos de serviços e comércio, de tipos diferentes dos que já estão em seu perímetro.

Não há indício de que essas tentativas tiveram sucesso.

Mais recentemente, entretanto, a progressiva tentativa de aproximação do setor privado parece chegar ao ápice. Flexibilidades construtivas, obras para modiicar a imagem local e atrair demanda, comércio e serviços, são trocados pelo instrumento da Concessão Urbanística que, conforme apurado, fundamenta-se no repasse da terra para que o setor privado faça a urbanização, prerrogativa do Estado, e lucre com ela. E preparando o campo para isto, executa-se uma operação de marketing às avessas sobre o local, como se viu acontecer na região da chamada Cracolândia, transformada em “quisto” do Centro (lembrando a expressão cunhada por Andrea Matarazzo). A imagem do espaço em ruínas – social e urbana -, parece legitimar uma intervenção arrasadora no local.

As análises deste capítulo mostraram a força da entrada da população de baixa renda na disputa pelo Centro, inserindo a sua moradia na pauta das ações do poder público como ainda não se tinha visto. Este aspecto ilumina a polarização dos interesses pela região, na medida em que as ações iniciadas pelo poder público para atender a esta demanda são suspensas com a mudança de gestão administrativa, con- forme visto após o início da gestão de José Serra na Prefeitura, em 2005. Também revela o quanto as ações do Estado são frágeis diante da força do mercado e especialmente do setor imobiliário. Note-se que os avanços conseguidos pelos movimentos de moradia decorreram, em parte, da permeabilidade das forças políticas no poder no início dos anos 2000.