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Conclusão: a religião como conivente de identidades

Capítulo 3. Seguindo a sua inspiração divina

3.5. Conclusão: a religião como conivente de identidades

A religião entra no universo do coquista como um elemento extramusical que influencia as formas e as utilidades do comportamento regular, ou mesmo ocasional, da relação social, implicando ser elemento determinante da performação, como também regulador da personalidade. A formação da identidade religiosa pernambucana seguiu os processos de migração e confluência de raças e culturas. Pernambuco, enquanto espaço geográfico que muito prosperou, atraiu um conjunto alargado de imigrantes, fossem administradores nomeados pela coroa - setores do centro de poder; fossem voluntários - espontâneos ou forçados, em busca de construir um futuro melhor, longe de Portugal, no novo mundo. A estes foram agregados degredados punidos com o exílio, como também outros de interesses aventureiros, em busca de riquezas. Nos serviços de base foram adicionados escravos por imigração forçada. Os grupos locais de nativos tiveram os seus universos destruídos pela invasão das suas terras, sendo escravizados neste sistema e subjugados neste processo. Se houve um encontro, um cruzamento entre fundamentos religiosos diversos com a religião católica apostólica romana, este encontro foi consequentemente conflituoso, experimentando a diversidade e não a unicidade de perspectivas. A religião católica, sendo a religião do colonizador, foi imposta aos povos nativos, indígenas, e aos povos africanos, que naquele momento se encontravam escravizados, e ainda aos grupos imigrantes. O elemento cigano adicionou um caráter relativista de apropriação de vetores dominantes, visto ser esta uma característica da sua cultura – a absorção, sem conversão completa –, surtindo mais como estratégia ou tática, de bom convívio e invisibilidade diante dos centros de poder, ainda que mantivesse os seus fundamentos veladamente. E em hipótese, esta presença no quotidiano impactou nos modos de vida das populações de degredados, de índios e de negros que assim se relacionaram com a centralidade. A metáfora agiu como um recurso tático diante da diversidade. Os grupos de degredados adeptos de seitas e de práticas de adivinhação, de feitiçaria e de bruxaria, motivo do seu degredo, de certo não se converteram facilmente à filosofia do império português sob fundamento católico, preservando os seus costumes. O catolicismo popular emergiu em espaços de domínio colonial quotidiano, e os valores variados veicularam manifestações diversas. A forma

algo aberta de relação com os fatos, com os valores e os modos de os interpretar promoveu formas distintas e sem amarras, que, apesar de muitas perseguições, permitiu perspectivar o rito religioso. Este fato fez emergir diferenças de bairro para bairro, de comunidade para comunidade, de grupo para grupo, de formas expressivas para formas expressivas, de cocos para cocos. E essa frouxidão constituía a arena diluída e fragmentada na qual a igreja se relacionou com os grupos humanos que preservavam nas suas intimidades as perspectivas protestantes, ciganas, judaizantes, pagãs, indígenas e africanas que transportaram de outros lugares. Os grupos indígenas e negro-africanos não possuíam unidades sociais identificáveis, pois provinham de culturas distintas dentro dos seus universos privados, posto que as terminologias de índios e de negros comportam um grande corpus de diversidades étnicas e linguísticas distintas entre si. Em consequência, tiveram de aprender a conviver na arena conflituosa de negociações, segredos e mistérios mantidos estrategicamente como táticas para evitar alvos fáceis de alcance do outro. Esta arena pública, conflituosa, promoveu o desenvolvimento de marcadores identitários de grupo para grupo. Este plano de relações demarcadas ocorria nas senzalas, nas quilombos, no entorno dos aldeamentos indígenas e nos vilarejos. A metáfora foi um vetor de gestão da diferença, e marcou a identidade expressiva de cada grupo. O processo sincrético não representou um acordo pacífico, tranquilo entre culturas diferentes. Pelo contrário, surtiu como estratégia de povos que entendiam ser necessário promover as suas continuidades. Estes grupos humanos precisavam de continuar cultuando as suas divindades camuflando-as, pois os seus fundamentos estavam em xeque, no ambiente de desconfiança entre dominador e dominados, multifacetados e distintos entre si. A camuflagem surgiu como tática para esconder o que todos estavam a ver, recorrendo a um tipo de roupagem diferenciada para ludibriar o centro de poder, lubrificar as relações, e promover incertezas metafóricas do que se via. Instalada a alternativa, as práticas religiosas e as expressões culturais a elas agregadas por algum vinculo emergiram como espaços de contato intercalasses dessa refrega político-ideológica e fundamentalista. Assim, em hipótese, surgiram os cocos, e os modos híbridos de cada um dizer algo de si coletivamente sem ter que se assumir oficialmente. O híbrido passa a suprir demandas expressivas conferindo a voz aos que aparentemente não a tinham.

A cultura dos cocos funcionou e parece funcionar ainda como forma de imposição de identidades, ao mesmo tempo que se apresenta enquanto equipamento

apaziguador. Os grupos religiosos comungam então um espaço interface desses mundos, e a brincadeira torna-se um rito – edificador da ideia de Brasil mestiço. O coco, com sua expressividade que transborda os limites da música enquanto arte, permite a expressão dos gestos e dos sentidos que armazenam significados muitas vezes velados nas suas letras. Esta forma de relação e representação expressiva possibilitou cantar-se, sem se saber, o sentido apropriado de relação com o outro que se lhe avizinha. A festa que emergiu destas arenas reúne, confraterniza e permite a mistura, carregada de mistérios e incertezas, propiciando ao povo a alegria ao mesmo tempo que a reivindicação política ainda que num contexto de diversão e religião.

Quem é esse que canta comigo? O que ele pensa de mim e do mundo? Quem é essa que dança o coco? O que é, afinal, o coco? De que fala essa música? Fala de um amor perdido ou de um mecanismo de resistência? Onde começa ou termina a brincadeira? É religião? É mobilização ideológica? O coco é metáfora? Quem pode ou a quem compete interpretar-lhe o sentido? Não se pode esquecer que a jurema sagrada é uma religião essencialmente popular sofrida, mas reivindicativa, por estar ligada aos interesses das populações preteridas. Populações estas, que demonstram ter o coco como fundamento das suas individualidades e coletividades. Sob este pilar de conhecimento, a jurema agrega um valor das plantas, das ervas e da medicina popular. E agrega também um forte interesse dos fiéis pela celebração das divindades – pessoas que viveram no mesmo universo contextual de vida, tal os pretos velhos, os caboclos, os índios, os guerreiros, as guerreiras, os marujos, os marinheiros, as meretrizes. As divindades carregadas pelas imagens de pessoas comuns do quotidiano, com as suas dores, dificuldades e perseverança de viver e de buscar as suas melhoras. As entidades espirituais que juntas compõem as 7 Cidades Sagradas que edificam a jurema (moradas, mundos espirituais, planos etéreos, céus, nomeadas emicamente como juremá). Todas edificam o pensar, a fé, a esperança, e a brincadeira pelo coco. Todas estas referências são identificáveis como o povo, e com o povo, e emicamente identificáveis também como o coco e pelo coco.