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Motivação, experiência de terreno e etnografia colaborativa: no ritmo do coco

Capítulo 1. Introdução: dimensões narrativas do coco do litoral

1.5. Motivação, experiência de terreno e etnografia colaborativa: no ritmo do coco

O meu estudo desenvolveu-se em contato participativo e colaborativo nas performações do coco, nas quais interagi enquanto percussionista com ação performativa e experiência docente de música na região metropolitana do Recife. A

minha vivência na prática do coco, em contextos diversos, levou-me a desenvolver um grau e uma familiaridade algo satisfatórias no terreno, facilitando a minha imersão no fazer e brincar dos cocos no litoral de Pernambuco. A escrita que pratiquei em notas de campo que sucessivamente registei, revi e usei na redação final, guiou-se por uma metodologia etnográfica colaborativa e multisituada, junto a vozes que no terreno referiram, ecoando nas minhas interpretações, o elemento religioso e o vínculo indígena com tal veemência que os evidenciaram como vetores significantes, que se fizeram foco nas minhas verificações centrais de estudo.

O interesse etnográfico pela prática do coco no litoral de Pernambuco cresceu também na verificação da necessidade do seu estudo em função de critérios práticos para a performação informada, enquanto músico e docente local. Havendo uma bibliografia que do coco faz referência, pouco conhecimento específico há, no entanto, disponível para a apropriação prática. Na função de músico instrumentista senti, em diversos contextos de performação, a necessidade de desenvolver conhecimento de nuances diversas acerca do coco, quando a referência estava fora da educação formal em música. Ir, enquanto músico, para uma brincadeira de coco representava uma preocupação em tentar encontrar referências nos toques, ou relacioná-los com o ritmo do canto ou do próprio corpo. Estas referências não eram estáticas em tempo real, posto que a linguagem percussiva dos cocos em Pernambuco é flutuante nas suas acentuações. A imersão no objeto, enquanto brincante, muitas vezes soava frustrante, pois mesmo enquadrando-me nos modos expressivos de cantar e de responder, poucos frutos revertiam ao músico profissional em contexto de aprendiz do coco, ou brincante curioso. No meu trabalho como músico percussionista na Banda da Polícia Militar do Estado de Pernambuco, por diversas vezes me envolvi em arranjos, composições e contextos de performação que exigiam uma linguagem específica dos cocos, considerando o fato de que as partes de percussão são pouco fiéis às nuances da música popular. A busca pelo conhecimento associada com metodologias da antropologia, da sociologia, da musicologia, e principalmente da etnomusicologia, direcionou a minha atenção para o estudo do coco. No terreno vi-me guiado pelos discursos dos brincantes e dos coquistas, que, de forma colaborativa, me ajudaram a vivenciar vínculos que na verdade estavam ali, mas que como músico formal não conseguia apropriar com facilidade.

O momento político brasileiro, promovendo salvaguarda e patrimonialização de referências, em função de dinâmicas globais promovidas pela UNESCO, intensificando fundos de financiamento em larga escala, ativando estudos em amplos aspectos, fez-se notar. E em consequência disto, a minha atenção foi atraída para o mercado de imagens que se projeta sobre, e a partir das políticas culturais, fomentando segmentos económicos globais. No entanto, o coco estava ali, apenas em conjecturas de aproximações de cariz mediático e nacionalista das políticas culturais, com a finalidade da sua própria visibilidade. Enquanto os fazedores deste saber, continuavam por seu lado, nas suas verdades camufladas, almejando ingresso no mercado de imagens que sinuosamente se apresenta, as vozes destes saberes estão aptas e dispostas a dialogar sobre as suas verdades, e sobre as suas identidades. Pois o discurso das suas vivências, tomando forma pelas suas próprias referências, conferiu-lhe autoestima e legitimidade. Neste sentido, a metodologia por mim apropriada foi a do aprendiz émico, que se senta ao lado, que escuta e tenta fazer por imitação, repetição e entendimento através da tecnologia da oralidade. Na medida em que fui criando certa familiaridade, descobri que o coco não era apenas uma dança de pobres em padrão sólido e engessado, como a folclorização o promoveu, e tão pouco uma diversão pós-laboral com fins de entretenimento unicamente, que as tendências de mercado buscam apropriar como contexto de reunião festiva da população para ativar um consumo de produtos diversos que ao coco possam estar agregados. No terreno percebi que, desde a cantoria eloquente, humorística e debochada em ônibus por emboladores, tal e qual a própria literatura divulga, ou mesmo da suavidade enigmática e contagiante das cirandas à beira mar, ou ainda das tensionais manifestações rituais dos cultos aos encantados e toques de terreiro, havia um coco multifacetado de um povo sofrido que reagia e se reconstituía pela celebração, que não era obrigatoriamente de entretenimento, mas de devoção, compromisso e obrigação. O coco, na sua história e na memória dos brincantes, representou estado de festa, comportando metáforas que se permitiam viver por ideologias distintas em simultâneo. Uma prática aberta e tolerante, tal como a gira de mestre, em que não há descriminações a cada forma de cultuar seus encantados, seus medos, suas expetativas, suas dores, seus santos, suas súplicas. Em ponto de direita ou de esquerda, no culto aos encantados, aos santos da igreja ou no culto aos Senhores Mestres, seja para a paz, ou seja, para a guerra, o coco figura para todos. Diante desta tipologia de complexidade conceptual recorri a uma metodologia proposta por Côrte- Real e fundamentada em Timothy Rice que sugere para antes da aproximação ao terreno

ou à reflexão sobre os materiais aí recolhidos, se proceda a um enquadramento das problemáticas sentidas e racionalizadas. Sob tal leitura da complexidade que por séculos estivera encoberta por metáforas sugeridas pelo próprio senso comum, busquei entender

como e porque duas pessoas que vivem no mesmo tempo e lugar experimentam a mesma música, o mesmo toque, cantam a mesma loa de formas tão diferentes? Porque é que as pessoas do mesmo grupo fazem de seus cocos ferramentas tão diversas em sentidos, formas e finalidades? Em conversas semi-estruturadas e abertas, busquei perceber sob que condições o coco provoca experiências diferentes entre a diversão descomprometida, a resistência politicamente organizada e o ritual religioso edificador das suas unidades identitárias. Ou ainda, o porquê das políticas públicas e das propostas da indústria de imaginários globais ainda inibirem as suas expressividades identitárias no intento de controlar os modos de fazer da classe não incluída nos sistemas bem sucedidos. Visitei os coquistas nos seus mundos. Com eles busquei interagir de forma émica, discutindo problemas e conflitos, na busca de compreender quando é que se torna necessário criar um novo discurso de visibilidade musical, ou camuflá-lo aos olhos do senso comum. Estas e outras problemáticas induziram a minha imersão nos universos fragmentados do coco. Neste sentido, o meu recorte etnográfico abrangeu todo o litoral do Estado de Pernambuco, basicamente por este trecho geopolítico supostamente possuir, historicamente, os mesmos fatores sociais, políticos e económicos, que impulsionaram o comércio de pau-brasil, o mercado açucareiro, o tráfico escravista, a industrialização, as ideologias de mudança, o desenvolvimento globalizado, e a indústria das políticas culturais. O envolvimento referido com a liturgia dos encantados e os vínculos profundos com a cultura indígena foram as últimas e mais instigantes revelações, que no final conduziram esta etnografia, já em Lisboa. Este processo mostrou-se vivo nos discursos, fazendo presente a voz émica como um guião, revelando a significância dos lugares e dos tempos das brincadeiras do coco, que se manifestam permeadas de metáforas. Da verificação de identidades acionadas como marcas em arenas centrais e locais, seja pelo individual ou pelo coletivo, este estudo, sob a orientação de Maria de São José Côrte-Real, encontrou no contributo teórico de Dan Lundberg (2010) e Timothy Rice (2003) subsídios teóricos e metodológicos para verificar o coco como marcador de identidades humanas performativas. E para o sentido volátil e fluido sob o qual o coco se viu envolvido na sua historiografia emicamente referida, segui a proposta de Zygmunt Bauman ([1996] 2003). Sob estas bases, a escrita etnográfica está organizada em seis partes, das quais a primeira busca dar o

enquadramento teórico e metodológico em função das problemáticas supracitadas, que versarão também a última parte pela verificação conclusiva dos modos como as prerrogativas identitárias são acionadas para nutrir interesses centrais, periféricos, individuais e coletivos. Enquanto que as partes centrais focalizaram: as vozes e o lugar; a religião enquanto metáforas vincadas pela historiografia oficial e a memória individual; a ação humana no uso da voz como metáfora de resistência, continuidade e libertação política que deu às vozes periféricas oportunidade de expressão de nuances e peculiaridades interpretativas de reportório e pensamento musical.