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Enquadramento histórico do coco: desde as primeiras referências

Capítulo 1. Introdução: dimensões narrativas do coco do litoral

1.4. Enquadramento histórico do coco: desde as primeiras referências

O coco tem sido objecto de estudos recentes, após o surgimento do movimento mangue beat, que aciononaram a sua visibilidade no âmbito da música de tradição oral, dos maracatus e das cirandas. Antes, os estudos tendiam a concentrar-se nos domínios do folclore e da antropologia, tendo como abordagem o cancioneiro, a memória coletiva e a tradição como instituição da identidade nacional, sem proximidade com o universo criador dos seus atores15. Na primeira metade do século 20, no contexto do desenvolvimento dos primeiros estudos aprofundados da cultura de tradição oral, ainda desconhecida pela sociedade do sul e sudeste do Brasil, Mário de Andrade catalogou o coco na sua primeira viagem ao Rio Grande do Norte (1928-1929). As suas impressões e estudos sobre o coco foram em grande parte editados, após sua morte, no ano de 1984 sob a coordenação de Oneyda Alvarenga, no livro intitulado Os Cocos a partir dos documentos e anotações legados por Mário de Andrade. Ali, já se esboçava a construção conceptual do coco como marcador de identidade da cultura popular brasileira no Nordeste, tal como a emergência das categorias de coqueiros ou coquistas designando os seus intervenientes. O seu interesse em salvaguardar o saber do povo do litoral no Nordeste da nação foi motivado pelo momento histórico dessa tendência no mundo modernista do início do século 20. Em 1928 − logo após retornar de sua

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Segundo estudos de Elizabeth Travassos (1997) e Rodolfo Vilhena (1997), a pesquisa folclórica brasileira no século 20, em particular pelo meio do século, caracterizou-se por uma certa debilidade teórico-metodológica devido a ter predominantemente favorecido produção de ideologia em detrimento de valorização de conhecimento (Gonçalves 1998). Uma discussão mais desenvolvida sobre este assunto, levantada na defesa de minha tese de doutoramento pela arguente Maria Elizabeth Lucas será, com todo o interesse, prosseguida em estudos posteriores.

primeira viagem ao norte do Brasil, Andrade publicou o Ensaio sobre a Música

Brasileira, obra que, segundo Carla Delgado Souza se constituiu como um manual de

orientação composicional no campo da música erudita nacional (2009:125). Neste livro Andrade aponta diversos exemplos musicais colhidos tanto por sua verificação, quanto pela de alguns folcloristas brasileiros. Souza sublinha que o intuito do autor, ao transcrever sonoridades folclóricas no seu livro sobre música brasileira, era o de

proporcionar material do folclore musical brasileiro aos compositores, pois, de acordo com o pensamento estético de Mário de Andrade, era necessário que os artistas brasileiros atuassem de forma a construir uma música que fosse eminentemente

nacional (Souza 2009: 125). A palavra de ordem era a recolha com vista a uma

ressignificação de conceitos na busca de satisfazer planos políticos que legitimassem a nação, na perspectiva ideológica que marcou a estética da produção musical no Brasil até 1960. De pendor nacionalista, os artistas advogavam que a arte nacional deveria procurar elementos estéticos de expressão autóctone. Em parte, essa tendência movimentava-se em correntes ambíguas representando perspectivas distintas dos mesmos objectos. A este propósito Mário de Andrade declara que:

Já escutei de artista nacional que a nossa música tem de ser tirada dos índios. Outros embirrando com o guarani afirmam que a verdadeira música é a africana. O mais engraçado é que o maior número manifesta antipatia por Portugal. (...) Mas por ignorância ou não, qualquer reação contra Portugal me parece perfeitamente boba. (...) É uma verificação de ordem estética. (...) Reagir contra isso endeusando ‘boróro’ ou ‘bantu’ é cair num unilateralismo tão antibrasileiro como a lírica de Glauco Velasquez. (...) E alias é pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se tradicionaliza e justifica na cultura europeia. (...) É o que evita que a música brasileira se resuma a curiosidade esporádica e exótica do tamelang javanês, do canto achanti, e outros atrativos deliciosos mas passageiros de exposição universal (Andrade 1972: 28-29).

Conforme Arnaldo Contier sublinha, o impulso para a produção historiográfica sobre a questão da música no Brasil intensificou-se com o debate no seio do modernismo, sobretudo nas obras de Mário de Andrade ao longo dos anos de 1920 e 1930 (1991). Num estudo sobre o modernismo e a música popular Santuza Cambraia Naves argumenta que para Mário de Andrade o popular estaria valorizado na medida

em que iria oferecer a matéria-prima para se esboçar os traços gerais da identidade

brasileira (Naves 1998 in Napolitano e Wasserman 2000: 169). Neste sentido, o

conceito de folclore contribuiria para a manutenção da identidade nacional na medida

Wasserman (2000), a busca da tradição, no universo conceptual de perspectiva modernista, deveria construir um idioma musical próprio, irredutível ao culto

folclorista ‘per si’ (Ibid.). De entre as preocupações vigentes estavam: o problema da

brasilidade; o problema da identidade nacional; os procedimentos pelos quais deveria ser pesquisada e incorporada a fala do povo, folclore; e os projetos ligados aos modernismos musicais. Conforme sublinham estes autores, Mário de Andrade na preocupação de encontrar uma identidade musical e nacional para o Brasil remonta referências da música popular desde finais do século 18 fixando-a como marca expressiva nacional (Ibid: 168-169). Relativamente a este período, de final do século 18, Andrade observara já poderem ser notadas certas formas e constâncias brasileiras no lundu, na modinha, na sincopação (1972). Napolitano e Wasserman (2000) sublinham que, no seu discurso, Andrade reforça que ao longo do século 19, se verificou a fixação das danças dramáticas, como os reisados, as cheganças, os congos e outras manifestações folclóricas. O início do século 20 representou para Mário de Andrade a afirmação de que a música popular brasileira detinha um caráter nacional sedimentado revelando a mais forte criação de nossa raça até agora (Ibid.: 24). Os géneros expressivos figurantes em espaços urbanos, tais como a modinha, o maxixe e o samba, já se constituíam na música popular, integrando os reportórios de conjuntos seresteiros e chorões, que interpretavam inúmeras danças rurais. A arte nacional era então feita a partir da inconsciência do povo, sendo a arte popular a alma do nacionalismo brasileiro. Dessa dialética emergiu a necessidade das pesquisas folclóricas, propostas como meio para entrar em contato com as bases da cultura oral. Esse procedimento descreveu percursos perspectivos de seguimento de linhas evolutivas do primitivo, folclórico, para o civilizado, tecnicamente apetrechado, mantendo, porém um núcleo central que demarcava uma alma nacional. Ainda assim existia um certo abismo entre o que se conhecia da música do povo, o que se concebia do que ainda estava por conhecer e o que realmente ocorria no quotidiano das histórias de vida da grande maioria da população, que na estratificação social cumpria papel de mão de obra de sustentação do universo das classes da centralidade. Os conceitos de dança e a música estavam na ordem dos centros hegemónicos e a partir desse universo de perspectivas arbitrava-se o fazer periférico. O coco estava no universo não urbano de comportamento e manifestava-se livre de políticas de controle.

A partir de dados investigados no Arquivo Público do Estado Jordão Emerenciano (APEJE), na Coleção de Leis Provinciais de Pernambuco (CLPPE), Lei nº 1129, de 26 de junho de 1873, Clarissa Nunes Maia (2004: 2) sublinha que antes do início do século 20 um dos recursos que as elites utilizavam no controle das classes populares era a legislação municipal que normalizava a cidade na função de regular a vida pública num amplo plano de arenas sociais, inclusive na maneira como as pessoas se deveriam comportar. Tal preocupação, presente em Portugal também ainda durante o Estado Novo, perdurou no Brasil por todo o tempo do governo imperial, no esforço de fazer cumprir políticas de disciplina urbana. Em Pernambuco esta era proposta pelas Câmaras Municipais, avaliadas pela Assembleia Provincial e aprovada ou não pelo presidente da província. Maia refere que por volta de 1860 a infração acarretava multa entre 1$000 e 30$000 réis e alguns dias de prisão, e caso os escravos ferissem a ordem, os seus donos pagariam a multa em moeda e os escravos em castigos físicos (2004: 2- 3). A autora aponta que tais leis, designadas posturas municipais, se aplicavam a seis categorias principais de assuntos: 1) controle das casas comerciais e de jogos; 2) controle de circulação de pessoas e mercadorias; 3) controle de festas populares; 4) moralidade pública; 5) urbanização em geral; e 6) controle sobre o uso de armas (Ibid.: 3). As tabernas e as mercearias representavam locais que comercializavam mercadorias diversas e bebidas, proporcionando espaços quotidianos de lazer do povo, que ali jogava, mantinham a conversa em dia, ou participava na música acompanhada de dança. Nos espaços urbanos toda a música não elitizada era amalgamada em termos chavões que marcavam o que era apropriado e o que ameaçava a ordem, e neste universo ameaçador estavam os sambas, as sambadas, os cocos, os maracatus, as emboladas, entre outras expressões não muito transparentes por serem provenientes da periferia. Maia sublinha ainda que a convivência entre livres e escravos era intensa em situações fora do cativeiro, tornando o espaço público num palco que conferia ameaça à segurança da sociedade senhorial, por incorrer em possíveis contextos ilícitos (Ibid.: 2- 3). A dança e a diversão representavam os espaços mais propícios para o conluio, onde mimetismos e irreverências semeavam suspeitas ou mesmo insuspeitas. A classe pobre, quando não denunciada, manifestava-se nos seus espaços de forma livre. Maia observa também que entre os trabalhadores livres, o controle social buscava impedir o uso do tempo livre em categorias de vadiagem, tendência observada pelas elites como própria da população pobre, que estaria imersa no vício e no crime. Os jogos, relata Maia, eram tidos como nocivos à formação da classe trabalhadora, podendo contaminar mesmo os

filhos de boas famílias. O termo jogo, quando associado a adultos de classe subalterna, como a toda a pessoa desse espaço, tinha uma conotação distinta da diversão sadia e de valor cognitivo, pois onde havia jogo havia consumo de bebidas, comungavam-se vícios, exerciam-se maus costumes, a dança e o batuque aliciavam e entorpeciam os conceitos morais (Ibid.: 4). As festas que eram toleradas deveriam, por sua vez, seguir normas que as tornassem civilizadas, do ponto de vista das elites. Tais dados verificados por Maia permitem perspectivar que a música dos cocos terá assumido na performação dos coquistas, um papel aliciante, formador de opinião e disseminador da ideia de resistência, reconhecimento do valor nativo e dos que com ele se identificaram, e ainda reivindicador de bem comum relativamente a essa parcela da sociedade, sem ser percebido pela classe social dominante. A dialética musicada dos cocos abrange temáticas de proteção diante de perigo e cuidados, contemplação de vida, celebração de prazeres, e mobilização social. Enquanto peça chave de mecanismos da modernidade perante situações de alienação e controle social, o coco foi classificado como fenómeno expressivo da camada pobre da população a partir de uma perspectiva unilinear da esfera política. O centro de poder apropriou-se das identidades individuais e coletivas coligidas pelos intelectuais folcloristas para criar elos de referência social de caris nacionalista em benefício de pólos de ideologias centralizadoras. Mário de Andrade manifestou ativamente o seu interesse diante de tendências articuladas de nacionalismo:

Já afirmei que não sou folclorista. O folclore é uma ciência, dizem... Me interesso pela ciência, porém não tenho capacidade para ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pró músico e não passar vinte anos escrevendo sobre a expressão fisionômica do lagarto (Mário de Andrade, 1927, in Souza 2009:125).

O cantador Francisco Antônio Moreira (1904-1993) foi apresentado a Mário de Andrade em janeiro de 1929 no distrito rural do Município de Pedro Velho no Agreste do Estado do Rio Grande do Norte. A partir desse contato, o cantador Chico Antônio ficou conhecido como o coquista descoberto por Mário de Andrade, que o cita nas suas pesquisas nos livros Os Cocos (1984), Vida de Cantador (1993), O Turista Aprendiz (2002) e Danças Dramáticas (1934a). A partir desse contato o termo coco teve projeção nacional. No ano de 1938 foi organizada, por Mário de Andrade, uma equipa de Missão de Pesquisas Folclóricas chefiada pelo engenheiro e arquiteto Luís Saia que percorreu o norte e o nordeste do Brasil para documentar manifestações culturais e folclóricas, em

especial de dança e de música. Como resultado, que constatei na colaboração que prestei ao projeto de estudo deste acervo documental, coordenado por Maria Ignez Ayala em 2009, recolheram instrumentos musicais, objectos de culto, peças utilitárias, fotos, reproduções de desenhos, gravações musicais e filmes. Este material possibilitou uma visão ampla do contexto socioeconómico cultural das regiões visitadas, documentando o registo de práticas expressivas em cinco cidades em Pernambuco, dezoito na Paraíba, duas no Piauí, uma no Ceará, uma no Maranhão e outra no Pará. A equipa assistiu a representações de bumba-meu-boi, nau catarineta, cabocolinhos, maracatu, tambor-de-crioula, tambor-de-mina, praiá, aboios, cocos, catimbó, sessões de desafio, xangôs, cantigas de roda, de ninar, cantos de trabalho, cantos religiosos, cateretê, barca, e muitos outros. Os registos contemplaram perto de 1 500 melodias, 1 126 fotografias, 17 936 documentos textuais, incluídos em cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, notas de pesquisas, notações musicais, letras de músicas, versos da poética popular e dados sobre arquitetura, 19 filmes de 16 e 35 mm, mais de 1000 peças catalogadas entre objetos etnográficos, instrumentos de corda, sopro e percussão, todos catalogados e disponíveis no Acervo Histórico da Cidade de São Paulo. A organização do material colhido coube à pesquisadora Oneyda Alvarenga, que também transcreveu manuscritos extraídos das próprias cadernetas de campo ou de folhas avulsas; e outros documentos, reunindo a documentação que garantiu a operacionalização da viagem, como cartas de apresentação, instruções, listas de equipamento, notas de serviços; e a documentação sobre o seu andamento, para além de correspondência variada e notícias de jornal. Este acervo recebeu tombamento como património imaterial pela Comissão de Avaliação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN16.

Em 1951 Aloisio Vilela publicou o livro O Coco de Alagoas, onde aponta que a prática dos cocos alagoanos é de origem de negros do quilombo dos Palmares17. A sua narrativa é avaliada por Dirceu Lindoso que considera a seguinte versão de Vilela como fantasiada:

16 Em 2009 o acervo documental da Missão foi denominado pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco no Registo Nacional do Brasil.

17 O quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na fronteira territorial do estado de Alagoas com Pernambuco, foi catalogado na literatura historiográfica do Brasil como a maior comunidade de negros fugidos já construída nesta nação, onde surgiram os nomes históricos de Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares.

Depois de inúmeras investigações, recolhi recentemente em Viçosa (Alagoas) uma tradição que vem firmar definitivamente a origem negra do coco. Diz esta tradição, de que tomei conhecimento através de um velho proprietário do Distrito de Chã Preta, que o coco foi inventado pelos negros dos Palmares. Como toda gente sabe, as palmeiras, principalmente a Pindoba, existiam em grande quantidade naquela zona e seu fruto – o coco – era também em grande abundância. Os negros iam em busca do coco, tanto para comer a polpa dos que estavam maduros como para retirar a amêndoa, chamada coconha, dos que estavam secos. Mas para retirar essa coconha os negros sentavam-se no chão, colocavam o duro coco seco sobre uma pedra e batiam com outra até que ele rachasse. A grande quantidade de negros empenhada nesse serviço provocava nas pedras uma zoada enorme que se misturava com os seus costumeiros alaridos. E em meio a essas barulhentas reuniões, alguns começavam a cantar, outros levantavam-se e davam início a um forte sapateado e os demais uniformizavam a pancada das pedras para acompanhar aquele estranho ritmo que surgia. E os negros renovavam a pancada das pedras para acompanhar aquele estranho ritmo que surgia. E os negros renovavam sempre a brincadeira e a coisa virou costume, pois a quebra do coco terminava sempre em cantiga e em dança. Cantiga e dança estas, porém, diferentes daquelas dos seus costumes tradicionais. Sinfonia e coreografia típicas, nascidas no convívio de um alegre trabalho e que se integravam na fisionomia da raça. E os negros ficaram dizendo quando iam às matas buscar os seus frutos prediletos: vamos ao coco, vamos ao coco... Mas este agora não era somente o das palmeiras, mas também aquele canto e aquela dança que surgiram nessas suaves excursões ao som estrídulo de pedras entrechocadas. Foi daí que se originou a nossa famosa dança popular, foi desse costume dos quilombolas que veio o seu nome tão simples mas tão evocativo. E é por isto que eu hoje digo, firmando nessa bonita tradição: não há dúvida, o coco é coisa mesmo dos negros dos Palmares. Depois foi essa dança levada para as senzalas, que lhe acrescentaram a umbigada e o ritmo das pedras substituído pelas palmas e pelo ganzá dos cantadores (2005: 292-293).

Dirceu Lindoso observa, em hipótese, que os discursos folcloristas reforçavam

uma técnica pedagógica criada por brancos, usada pela dominação sesmeiro-escravista

para interiorizar nos negros e noutros homens pobres a imagem da sua própria miséria como fato natural, e não um inconsciente produto histórico e social (Ibid: 290). Narrativas como a do surgimento dos cocos, equivalem-se, no seu carácter estratégico, às do folguedo do quilombo alagoano que este autor percebe ter sido estrategicamente implantado na historiografia oficial como folguedo folclórico, criado pelos próprios escravos, negros e também índios. A este respeito Lindoso observa:

Não me parece um ato inocente o de negros escravos, ou que o foram, cantarem e dançarem, num folguedo de rememorização social, sua própria derrota e inferioridade. O quilombo alagoano pode ser dançado por negros, mas me parece uma pouco inocente invenção de brancos. A própria lenda da mulher branca de Zumbi, representada na figura da menina-rainha-branca do quilombo, pode ser a inversão temática de um conto. Isto é, a lenda proveio da dança do quilombo, o imaginário popular alongando o fato lúdico imediato num fato histórico presumível. Ou se não veio, confluiu com a figura da rainha-menina-branca do folguedo, que

nesse caso aparece não como figura ingênua de um auto popular, criação espontânea do povo pobre, mas como criação ideológica no interior do folguedo, que se deve a uma desenvolvida pedagogia de dominação, com fins intencionais bem nítido (Ibid.: 290).

A sua abordagem é-me acatada como possível, pois para o caso dos cocos o discurso também fora de redução dos seus valores identitários émicos em sentidos opostos dos da festa e da diversão pós-laboral ingénua e despretensiosa da classe pobre, analfabeta e com poucas qualificações sociais. A ideia apontada para o coco revela-se planeada, invertendo um sentido político de reação em contexto lúdico e passivo. Sob esta perspectiva Lindoso observa:

Penso que diante da figura do quilombo, de aparência lúdica, as manifestações do folclore perdem sua suposta virtude espontânea, e retomam sua verdadeira natureza de muitas vezes serem criações ideológicas de um certo tipo de dominação tradicional. (...), o que se pode observar na narrativa lúdica (...) é uma versão de brancos dominadores, de fatos que significam para eles uma vitória e um exercício de poder, e para os negros e outros pobres uma derrota e incapacidade de confrontarem, com êxito, o poder sesmeiro tradicional. Está implícita na narrativa do quilombo, que folgam os negros e outros pobres alagoanos, a ideologia de uma natural impotência dos submetidos em enfrentar vitoriosamente o poder tradicional, e, desse modo, o quilombo se revela, em âmbito de uma cultura residual, uma técnica de uso social de rebaixamento que desmantela a cultura dos oprimidos, que os despersonaliza como partícipes da vida social, impedindo-os de repensar, ainda que em termos utópicos, sua própria felicidade (Ibid.: 291).

Nos seus estudos das expressões folclóricas de Alagoas, Lindoso associa este carácter ao próprio discurso da origem do coco. Na sua análise da literatura desta prática, Lindoso observa que o estudioso Arthur Ramos (1954: 128) não incluiu o coco entre as manifestações de folclore afro-brasileiro por confessar reconhecer nessa dança popular certa influência ameríndia. Em 1954, Câmara Cascudo conjeturou tratar-se de uma dança peculiar do homem do Nordeste brasileiro, surgida no interior e que terá migrado para a zona litoral. O autor refere dados coletados da imprensa no final dos anos de 1820 (1972: 275). Entre a década de 1950 e a década de 1990, o interesse pela