• Nenhum resultado encontrado

Nora (1998, p. 33) afirma que os ‘lugares de memória’ nos permitem, como indicadores e pistas, investigar a relação da sociedade com o passado e de que maneira o presente se utiliza dele e o reconstrói. Por meio dos livros, atividades escolares e monumentos, analisados como esses ‘lugares de memória’, percebemos todo um esforço recente de produção e consolidação da memória de Calabar, em Porto Calvo. Esse esforço particular, iniciado com os ‘empreendedores da memória’, e público, pelas ações da secretaria de educação, até onde vimos, nos levaram ao questionamento de quais interesses o permeiam. Nas entrevistas feitas ao longo da pesquisa, a intenção que, repetidamente, aparece é a de por meio da sua história, Porto Calvo se abrir ao turismo cultural, resultaria em muitos benefícios econômicos, culturais... Diante desse cenário apresentado, compreendemos, em parte, o processo contemporâneo de consolidação da memória de Calabar em Porto Calvo. Algumas informações terminam por ser faltosas porque este é o primeiro estudo sobre o tema. Não conseguimos acessar informações exatas sobre os monumentos (licitação, por exemplo), nem conseguimos fazer uma pesquisa geral com a população para saber o quanto essa elaboração tem sido aceita ou recebida pela população.

Percebemos a distinção entre a produção da história entre os fins do século XIX e início do XX e da produção da memória. Enquanto a preocupação da produção historiográfica, até o início do século XX, era apresentar provas que comprovassem que Calabar não foi traidor, com a memória o discurso se coloca afirmativamente, como quem possui a verdade, e vai se elaborando na cidade, no sentido de fazer com que cada vez mais as pessoas tenham consciência dessa memória, seja por meio das produções, dos monumentos, do currículo.

Com efeito, a memória pretende ser a depositária (que se pretende fiel) do passado [...]. A historiografia pretende ser a produtora da apropriação correta (adequada) do passado com base nos indícios e dados de que disponha, mediante procedimentos metódicos controláveis intersubjetivamente. [...]. A lembrança do passado não é apenas uma forma personalizada e valorada de conhecimento inseguro (pois metodicamente não controlado e, por conseguinte, não científico no sentido moderno), [...]. Nesse sentido, não se tem como dizer que o passado, enquanto tal, seja epistemologicamente ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ (ou nossa lembrança dele), pois esses predicados são atribuíveis ao que dizemos sobre ele ou ao que escrevemos sobre ele” (MARTINS, 2011, p. 20).

Assim, não nos colocamos no sentido de analisar ser verdadeira ou falsa a memória construída a respeito de Calabar em Porto Calvo, porém nos propomos

apresentar os esforços que estão sendo empreendidos para construí-la, enquadrá-la e divulgá-la. Compreendemos, com auxílio de Jelin (2015, p. 234), que as datas comemorativas, as memórias e os mitos vão sendo mudados ao longo do tempo. Revisitados por novas gerações, os novos atores, fornecem novos sentidos a eles. Quer seja na história, quer seja nas ações de memória, vemos as representações de Calabar sendo modificadas ao longo do tempo nos diversos contextos e interesses. Sempre permanece a querela sobre qual de fato tenha sido sua real intenção, o que nos permite supor essa própria disputa como constituinte do mito Calabar. Ele permanece por tanto tempo no imaginário e na produção histórica alagoana por conta do esforço sempre demandado em tentar esquecê-lo ou reabilitá-lo.

A seguir, adentraremos mais profundamente a discussão de Calabar como mito e analisaremos a comemoração da Semana Calabar, como procuraremos compreender o lugar que assume hoje a fala sobre nosso personagem, em Alagoas, apontando, enfim, o que esses processos nos permitem compreender sobre nosso personagem e quais as leituras ainda atualmente acessadas.

CAPÍTULO III

O MITO CALABAR E AS COMEMORAÇÕES DO BICENTENÁRIO

DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA EM ALAGOAS (2017)

Até agora, vimos como Calabar foi evocado pela escrita do Instituto Histórico Alagoano e pela rememoração em Porto Calvo. No ano de 2017, muitas comemorações aconteceram em Alagoas, devido ao bicentenário de sua emancipação política. O governo financiou um ano inteiro de atividades culturais, dentre elas a Semana Calabar, em Porto Calvo; as apresentações do documentário Calabar (FIGUEIREDO, 2007, 50 min), leitura dramática do poema de Lêdo Ivo (1985), entre outras. Logo no início das atividades, foi noticiado, no Diário Oficial93, que seriam feitos cinco atos de resgate da história de Alagoas pelo governo do Estado. Um deles em Porto Calvo, a ida até ali simbolizaria uma visita às origens do estado. O governador Renan Filho junto com o prefeito do município, David Pedrosa, foram ao Memorial Calabar, onde o projeto do ‘Parque Histórico da Batalha de Porto Calvo94’ foi recebido pelo governador das mãos do superintendente substituto do IPHAN. A proposta para desenvolvimento do turismo local e da região norte, inclui o fortim, mencionado pelos entrevistados no capítulo anterior, como também outras quatro fortificações que o Instituto do Patrimônio Histórico afirma ter encontrado

em dois anos de trabalho na cidade95. Além destes, conforme notícia veiculada pelo site

Alagoas Boreal, pretende-se transformar o Alto da Forca, local onde está o Memorial Calabar e o Hospital Municipal, em museu arqueológico. Tais ações de reconhecimento arqueológico dos sítios em Porto Calvo permitiram ao IPHAN concluir que “a cidade da região Norte ‘é a maior referência do período holandês no Brasil’”, “rendendo-se” a sua “vocação histórica (e turística) secular”96.

Observamos que os meios e formas de rememoração, como também as abordagens históricas do passado pelo presente, são vinculados às disputas de interesses entre os que desejam lembrar sobre a forma e conteúdo dessas lembranças (JELIN, 2015, p. 240).

93Maceió, 05 de outubro de 2017, ano 105, nº 190. Acesso em 3 de março de 2018:

http://www.imprensaoficialal.com.br/wp-content/uploads/2017/10/DOEAL-05_10_2017-EXEC.pdf.

94Projeto apresentado no capítulo anterior.

95Informações obtidas no Diário Oficial, Maceió, 05 de outubro de 2017, ano 105, nº 190. Acesso em 26 de

fevereiro de 2018: http://www.imprensaoficialal.com.br/wp-content/uploads/2017/10/DOEAL- 05_10_2017-EXEC.pdf.

96 Porto Calvo finalmente se rende a uma vocação histórica (e turística) secular. Alagoas Boreal, 04

de abril 2018. Disponível em <http://alagoasboreal.com.br/editoria/3806/patrimonios/porto-calvo- finalmente-se-rende-a-uma-vocacao-historica-(e-turistica)-secular>, acesso em 04/05/2018.

Assim, as comemorações e os mitos contribuem para ritualizar a memória e para o processo de estabelecimento do que deve ser ou não lembrado e comemorado. Jelin (2015, p. 240) aponta que uma questão essencial para o pesquisador desse processo é descobrir quem tem o poder simbólico para decidir qual deve ser o conteúdo da memória. No caso de Porto Calvo, veremos a influência do governo estadual e municipal nas comemorações, como também, ainda que com dificuldades por conta da proximidade com os acontecimentos, observaremos as disputas em torno da rememoração e do que deve ser comemorado. Arriscamos apontar o governo também sob o termo ‘empreendedor da memória’ (JELIN, 2015, p. 242), visto que compreendeu o êxito na abertura de novos espaços e projetos, sob a mesma intenção que vimos no capítulo anterior, de investir no

turismo cultural. Tal como apontou Renan Calheiros97, em discurso no Senado Federal,

sobre as comemorações do bicentenário da emancipação alagoana:

O bicentenário transforma Alagoas em palco de diversos eventos, principalmente nas áreas da educação, da cultura, das artes, o que atrai o interesse de muitas pessoas em conhecer melhor a história da nossa terra e a história do nosso povo. Isso proporciona, entre outras oportunidades, o incremento do turismo, que se transformou em uma forte vertente do desenvolvimento para o Estado. Em 2016, por exemplo, Senador Lindbergh, Alagoas foi o único Estado do Nordeste do Brasil que superou o número de turistas recebidos em 201598.

Observamos que o turismo tem servido para estabilizar uma situação de crise econômica (MENEZES, p. 1 e 2), na tentativa de permitir um avanço econômico. Apontamos que os mitos também surgem em momentos de crise, no sentido de ser uma reestruturação mental da sociedade (GIRARDET, p. 181 – 182). O ano de 2017 foi um

97 Importante figura política que foi afamada durante o processo de crise política no Brasil (2015 – 2018)

pela acusação que recebeu por lavagem de dinheiro e corrupção, por diferentes operações, dentre elas a ‘Lava Jato’. Atuante na política partidária desde 1978, e no cargo de Senador pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro de Alagoas, atua desde 1995, foi três vezes escolhido como Presidente do Senado. Informações disponíveis em: BENITES, Afonso. O Camaleão Renan Calheiros, a nova pedra no sapato

de Temer. El País, 05 de abril de 2017, disponível em

< https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/06/politica/1491432425_092006.html>, acesso em 05/05/2018. ALESSI, Gil. Renan é denunciado na Lava Jato e fica novamente nas mãos do STF. El País, 12 de dezembro de 2016, disponível em

< https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481558603_302165.html>, acesso em 05/05/2018.

Perfil Biográfico. Senador Renan Calheiros. Disponível em < http://www.renancalheiros.com.br/perfil-

biografico>, acesso em 05/05/2018. MILITÃO, Eduardo. Juiz de 1ª instância condena Renan Calheiros a

perder o mandato e direitos políticos. Uol Notícias. Disponível em

< https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/11/17/senador-renan-calheiros-e-condenado-a- perder-mandato-e-ter-direitos-politicos-suspensos.htm>, acesso em 05/05/2018.

98 CALHEIROS, Renan. A história de Alagoas. Senador Renan Calheiros, 08 de junho de 2017.

Disponível em <http://www.renancalheiros.com.br/discursos/historia-de-alagoas.html>, acesso em 05/05/2018.

ano de muita crise para o Estado Brasileiro, política-social-econômica, a comemoração tão simbólica dos 200 anos talvez possa contribuir no esquecimento da situação real ou a evocação dos grandes feitos históricos das Alagoas pode ter camuflado o contexto político nacional. Para além dessa suposição, “o mito político [também] é instrumento de reconquista de uma identidade comprometida. Mas ele aparece como elemento construtivo de uma certa forma de realidade social” (GIRARDET, p. 183). Sendo assim, importante elemento para a constituição da identidade de grupos sociais. E, se Barthes procura na imprensa os mitos fabricados, focaremos nosso olhar nas comemorações que relembram Calabar, como espaço de sua reafirmação como mito, por meio das notícias divulgadas pela imprensa oficial.

Para pensarmos essas comemorações em um passado tão recente, observamos a categoria de regime de historicidade presentista formulado por Hartog (2015). O regime de historicidade trata-se da maneira como a sociedade trata seu passado e de seu passado, constituindo, de um modo geral, a consciência de si de uma sociedade (HARTOG, 2015, p. 28). E a abordagem presentista considera o passado tendo em vista o presente (HARTOG, 2015, p. 27). Assim, analisaremos como a partir do presente é tratada a história sobre Calabar, percebendo os interesses envolvidos a partir das atividades de comemoração que resgatam a história de Alagoas no presente. François Hartog, ao discutir o regime de historicidade heroico, mostra que ‘anais heroicos’ conjugam mito e história ou organizam a história de modo explícito como metáfora das realidades míticas (HARTOG, 2015, p. 54). A partir da compreensão de regime de historicidade presentista e do regime de historicidade heroico, consideramos que as comemorações assumem o espaço de conjugação entre mito e história, pois servem para ritualizar a memória (SÁ, 2006, p. 106).

O regime presentista para Hartog ainda se apresenta quando fatos do presente carregam uma carga de histórico ou de acontecimentos antes mesmo de se concluírem. O episódio do 11 de setembro “leva ao extremo a lógica do acontecimento contemporâneo que, se deixando ver enquanto se constitui, se historiciza imediatamente e já é em si mesmo sua própria comemoração sob o olho da câmera. Nesse sentido, ele é totalmente presentista” (HARTOG, 2015, p. 136). Assim, as comemorações são históricas antes mesmo de acontecerem, por isso tanto esforço e divulgação, no sentido de ritualizar a comemoração do bicentenário de emancipação política, deixando-a marcado na história. Veremos as comemorações sobre esse prisma: “uma maneira de traduzir e de ordenar

experiências do tempo – modos de articular passado, presente e futuro – e de dar-lhes sentido [...]” (HARTOG, 2015, p. 139), um sentido construído para a contemporaneidade. Observar esse processo, por meio também da leitura de Nora (1993), nos ajuda a entender porque tamanho apelo ao passado, pois se busca uma memória e um passado que não existem mais. Nesse processo, finca-se ainda mais no presente, sob os termos: memória, patrimônio e comemoração, que apontando um para outro, são englobados por um quarto termo: identidade. Todos esses termos falam sobre elaborações do presente. Essa análise nos mostra um presente preocupado com a identidade, tendo, para isso que criar memórias, escrever histórias, promover comemorações. Silva afirma, que ao contrário do esperado a globalização permitiu o fortalecimento das identidades locais e que as identidades regionais surgiram devido o insucesso da identidade nacional forjada desde o século XIX (2012, p. 27). Entretanto, no caso de Pernambuco, que é o que Silva investiga, mesmo com o esfacelamento das ‘velhas identidades’, calcadas na herança iluminista, o ressurgimento da identidade pernambucana, ao fim do século XX, se dará sob esses ‘velhos moldes’, assim, se apresentará a partir de um mito fundador, a ‘Batalha dos Guararapes (SILVA, 2012, p. 28, 37).

Em nosso caso, a investigação sobre Calabar enquanto mito, dentro dessas comemorações, nos permite formular conclusões sobre os interesses dessas formulações no presente e para o presente, e o que isso nos permite refletir a respeito da construção da identidade alagoana.