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Conclusão

No documento Download/Open (páginas 188-192)

A análise qualitativa-fenomenológica dos conteúdos animal e humano verbalizados no Psicodiagnóstico Rorschach revelou-se ser de grande valia para a investigação da qualidade da percepção do humano; esta investigação é capaz de esclarecer sobre a significação afetiva das relações interpessoais, sobre a concepção que o indivíduo tem das relações humanas na sua vida e sobre os tipos de experiências passadas que formaram a base destas concepções. Tal análise, aplicada às respostas fornecidas pelas oito crianças vítimas de abuso sexual, forneceu dados ricos e importantes a este respeito.

O que ficou mais evidente na fenomenologia dos conteúdos animal e humano foi a predominância das percepções diabólicas, agressivas e negativas sobre as simbólicas, positivas e lúdicas; as primeiras percepções configuraram-se como as respostas mais freqüentes em ambos os conteúdos (excluindo-se as respostas neutras). Não podemos afirmar categoricamente que este tipo de resposta é a mais freqüente em todas as crianças vítimas de abuso sexual, ou então que é mais freqüente neste grupo do que em outros grupos de crianças, submetidas a outras espécies de violência ou não submetidas à violência; como este estudo foi descritivo, o que podemos afirmar é que este tipo de resposta predominou na maioria dos participantes desta pesquisa. Estudos comparativos utilizando o Rorschach em grupos de crianças sexualmente abusadas e não-abusadas poderia esclarecer quais respostas são mais freqüentes e mais características de violência sexual, em relação a uma população de crianças tomada como normativa, como grupo-controle.

A grande quantidade de percepções humanas e animais marcadas pela agressividade e destrutividade apontam também para a possibilidade de ocorrer a

identificação da criança com o agressor; a supremacia destas representações humanas no psiquismo de uma criança poderia ser vista (dentre outras várias possibilidades de desenvolvimento ulterior), como um “embrião” desta identificação. Quando atitudes malevolentes e destrutivas são internalizadas e assumidas/aprendidas como modelo de relação a ser estabelecida com o outro, isto pode contribuir para a transformação da criança em futuro agressor sexual; ao vivenciar o terrificante e o diabólico na experiência, algumas crianças podem se identificar com a destrutividade. Isto poderia ser uma das explicações do por que algumas crianças vitimizadas sexualmente se tornam futuros abusadores.

As respostas que expressam simbolicamente a relação agressor-vítima parecem ser bastante indicativas de crianças submetidas à violência, já que o Rorschach capta projeções de experiências, de uma história de vida. É provável que estas respostas indiquem a continuidade da atuação desta experiência no psiquismo da criança, de forma latente e inconsciente ou de forma explícita, contribuindo para a solidificação das representações negativas acerca dos humanos, do masculino e da convivência interpessoal. Nesta perspectiva, considerou-se dano psíquico a supremacia das representações negativas e desconstrutivas do humano sobre as positivas e construtivas; acreditamos que a representação interna que um indivíduo tem acerca do humano e dos relacionamentos determinará o modo como ele se comportará em suas relações interpessoais, de natureza social ou íntima. Se o significado construído sobre estas relações é marcado por aspectos e antecipações negativas e dolorosas sobre a qualidade destes relacionamentos, provavelmente esta representação trará ao indivíduo dificuldades de estabelecer um relacionamento interpessoal positivo e prazeroso. A reconstrução das relações interpessoais abaladas pelo abuso sexual deve ser um tópico importante a ser tratado na psicoterapia destas crianças.

A forma adotada nesta pesquisa de se considerar as respostas que reproduzem a relação agressor-vítima levou em consideração a participação das experiências vividas na produção destas respostas: ao invés de se atribuir à criança a malevolência e a destrutividade expressas nas respostas de personagens agressivos que agem com violência contra um outro personagem, passamos a ver tais respostas como indicativas da sua situação de ter sido vítima desta violência, e propomos que a nomenclatura das respostas Rorschach passe a distinguir as respostas violentas dadas por uma criança vitimizada, das respostas violentas dadas, por exemplo, por um agressor, já que acreditamos que, na criança, a produção de respostas agressivas deve-se a situações violentas vivenciadas. A passagem da posição tradicional de se codificar as respostas ao Rorschach para esta na qual o discurso do sujeito é que dita a significação específica da resposta, e atenta aos significados que comunicam, foi, a nosso ver, a principal contribuição desta pesquisa. Só assim é possível captar a significação afetiva das respostas, e proceder ao cálculo de um psicograma que indique não somente se o indivíduo é capaz de estabelecer relações com os humanos, mas, principalmente, que indique também a qualidade destas relações. Da mesma forma deveria proceder-se à codificação das cinestesias animais e humanas, pois seus diferentes sentidos qualitativos deveriam ser explicitados na codificação para uma melhor apreciação das motivações que subjazem estas respostas.

Esta pesquisa veio reafirmar a necessidade do cuidado que se deve ter na inquirição da criança vítima de abuso sexual, para se evitar uma possível re- vitimização pela exposição da criança às memórias dolorosas e traumáticas que a fazem reviver novamente o trauma, muitas vezes já “esquecido”. O Rorschach é uma das técnicas que podem ajudar a criança a falar sobre o ocorrido (quando isto é necessário ao andamento das questões jurídicas envolvidas no caso) de maneira

simbólica, lúdica e não intrusiva, necessitando-se apenas de uma investigação mais detalhada das respostas na fase do inquérito do teste, para que a criança possa expressar e projetar, com mais liberdade, seus pensamentos e sentimentos; estimula- se a criança a falar mais sobre suas respostas, assim como, na hora lúdica, seguimos suas “pistas” e fazemos perguntas pertinentes e esclarecedoras a respeito do que está sendo comunicado, para que o sentido destas respostas possa ser ampliado e melhor compreendido.

Pretendemos, com esta pesquisa, ter lançado luz sobre algumas questões de perícia psicológica da criança vitimizada através do Psicodiagnóstico Rorschach e também sobre questões clínicas, especificamente sobre a avaliação do dano psíquico relacionado ao tema do relacionamento interpessoal. Esperamos também ter contribuído com o contínuo processo de aperfeiçoamento deste instrumento psicodiagnóstico, que deve constantemente sintonizar-se às novas demandas sociais, culturais e psicológicas de um mundo que está num ininterrupto processo de transformação.

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