• Nenhum resultado encontrado

Um longo e produtivo caminho percorrido, um logo caminho a percorrer... No início deste trabalho pensava que se tomasse, isoladamente, as metodologias de aprendizagem – os métodos utilizados para ensinar a ler e a escrever os jovens e adultos deste País – ou as motivações individuais como algo vindo do interior do próprio indivíduo chegaria a conclusões surpreendentes.

Porém, no caminho percorrido, nos momentos de desconstrução e reconstruções teóricas e metodológicas, percebi que não podia entender essas questões de forma estanque e fragmentária, desvinculadas das condições reais de existência dos indivíduos e de outra exterioridade, a discursiva, o que implicou todo um trabalho de reformulação de conceitos no campo da linguagem e da língua. E, principalmente, das noções de sujeito e de sentido, considerando que se constituem, ao mesmo tempo, na articulação entre língua e história em que entra a ideologia e o inconsciente para produzir um imaginário, fazendo funcionar uma sociedade dada.

Foi, então, que entendi que as metodologias utilizadas para ensinar jovens e adultos, são importantes ferramentas ou instrumentos de construção de uma forma-sujeito determinada, pelas articulações de diferentes discursos, como os científico, político e jurídico na nossa sociedade, fazendo funcionar um imaginário de que a aprendizagem da leitura e da escrita é um lugar de mudança nas relações de fala e de poder, e que quem não consegue chegar a este lugar continuará na condição de fracassado, marginalizado, doente.

Porém, a aprendizagem da leitura e da escrita não possibilita, por si só, esta mudança de lugar nas relações de fala e de poder, é preciso muito mais para sair dessa condição de analfabeto, de fracassado, de marginal, de bicho, de coisa. É preciso, entre outras coisas, que façamos trabalhar os sentidos que fundam e fundamentam a educação de jovens e adultos, criando condições para que ocorram mudanças e transformações pedagógicas, mas também sociais e políticas. A forma de assujeitamento é histórica e se dá em diferentes épocas e em diferentes lugares e nos diferentes discursos. O nosso sujeito de linguagem, marcado por uma forma-sujeito histórica, tem que se submeter à linguagem para que tenha a ilusão da sua determinação, seja essa determinação marcada pela metodologia mecânica ou criativa, seja pela garantia ou não do seu direito fundamental, seja pela consciência ou não de sua forma-sujeito.

Mas, a formação do autor é função da escola, ou melhor, é uma questão da subjetividade na relação com a escrita na escola. E aí ficam algumas questões. Como pensar nessa formação do autor na escola em relação às classes populares? Aprender as formas legítimas da cultura dominante. Sim, mas e as suas formas culturais? Ficam como alternativas ou variedades?

O que pude evidenciar, também, nos espaços discursivos que fundam e fundamentam o fracasso escolar é que o lugar de interpretação do ser alfabetizado/letrado sempre foi para poucos não só pela exclusão do indivíduo do processo de escolarização, característica da sociedade capitalista em manter as diferenças, mas sobretudo pelos modos de individuação social e histórica que se instalaram na nossa sociedade e pela configuração que a função-autor adquiriu na própria prática pedagógica. A escola enquanto uma instituição ‘reguladora’ do Estado, que surgiu para oferecer educação para todos é responsável pela reprodução e transformação social, e ao tentar inscrever o sujeito adulto analfabeto o vem fazendo de modo desigual e marginal, não conseguindo organizar as desigualdades econômicas e/ou sociais.

Não foi um “caminho” fácil chegar nesse lugar de compreensão. Para tanto tive que retomar o discurso da Psicologia, com uma nova compreensão dos seus fenômenos, obrigando- me a rever teorias psicológicas até então adotadas como únicas e verdadeiras. Foi um efeito de verdadeira descontrução e ao mesmo tempo construção de uma compreensão de uma posição sujeito historicamente determinada, de uma percepção da consciência articulada ao imaginário social, tudo isso sustentado por um referencial teórico, que era novo para mim, a Análise do Discurso um instrumento de análise de texto e uma teoria.

O contato com a AD, também, me permitiu “olhar”, “ler”, “perceber” as teorias científicas de outra forma, além de fazer-me parar e refletir sobre a minha própria prática profissional: a da clínica e a de sala de aula.

Comecei a pensar nas metodologias de ensino, no ensinar a ler e a escrever, na palavra como "um microcosmo da consciência humana", como lugares de estruturação e significação, em que o sujeito inscrito em uma formação discursiva, significa e re-significa o mundo e a si próprio. Onde a relação entre sujeitos em um momento histórico dado é que produz efeitos de sentidos. E que isso tem história e faz história. Por isso dizer certas coisas aqui e agora significa também dizer as antigas: o dito funciona em relação ao não dito e ao já dito.

A estruturação da consciência no e pelo sentido e pela percepção do e relação com o outro, em que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação entre língua e

história, é ponto fundamental para compreendermos a construção de um imaginário acerca do adulto analfabeto no Brasil. O modo como este adulto aprende a ler e a escrever pode ser considerado um elemento estruturante da sua consciência, e conseqüentemente, do modo de como ele irá se significar e se constituir como autor, ou responsável pelo que diz.

O sujeito-aluno exercita a função autor, quando ele se inscreve no repetível histórico, representando-se como controlador e criador dos sentidos e sentindo-se seguro e capaz de dizer aquilo que quer dizer, quando toma consciência de que suas palavras podem refletir o seu pensamento, mesmo que seja por esquecimentos, ou pela memória discursiva. Os alunos desta pesquisa repetem o que está dito e o que está no não-dito na sua e na nossa história, e nos principais discursos que fundamentam a EJA. O aluno que não aprende a ler e a escrever se assume como marginal, doente, não cidadão, bicho ou coisa. A autoria só se dará de uma forma legitimada institucional e socialmente se os sentidos fizerem sentido para o sujeito a ponto de se sentir fonte e origem destes sentidos, dos efeitos do interdiscurso da ideologia. O dizer significa enunciar outros ditos para que o nosso faça sentido. Para que o sujeito de direito – sujeito adulto- analfabeto -, deixe de ter, então, uma identidade socialmente reconhecida e reconhecível como a de marginal, bicho, coisa, não cidadão.

Penso, contudo, que é muito importante capacitar os jovens e adultos para responderem às exigências do mercado, proporcionando-lhes conhecimentos gerais e específicos e o domínio de habilidades flexíveis e adequadas às novas formas de produção e gestão, porém, rejeito a idéia de que deve haver uma coincidência entre os objetivos dos patrões e dos empregados para o alcance do “bem comum” e da qualidade total. Esse discurso que preconiza a igualdade de oportunidades no trabalho e na escola, o consenso e a unidade, parece-me um discurso desastroso, porque nos textos aqui analisados preconizou-se a importância de atitudes e habilidades, tais como a capacidade de trabalhar em equipe, solidariedade, autonomia, criatividade, potencialidade para tomar decisões, flexibilidade e espírito de iniciativa. Mas na nossa prática pedagógica e social, em contextos de trabalho específicos, sedimentam-se cada vez mais, a cultura do controle e a permanência de relações hierarquizadas, e valorizam-se os padrões de disciplina, a subserviência, o cumprimento das ordens e a aceitação silenciosa das determinações superiores. No cotidiano das relações interpessoais, o intenso ataque ao corporativismo e o conseqüente apelo à solidariedade, embasados em princípios éticos, camuflam, negam evidentes conflitos e confrontos.

Não podemos deixar de mencionar que uma das condições para a manutenção da exploração em países capitalistas, é a reprodução da divisão entre o trabalho manual e trabalho intelectual, a reprodução do fracasso escolar enquanto um lugar estruturante das desigualdades.

Tendo feita essa primeira experiência com o mundo da pesquisa, de rupturas teóricas, de experiências novas e produtivas que resultaram na elaboração desta dissertação, tenho pretensões futuras: as de continuar neste caminho de construção e desconstrução de sentidos e de produção de conhecimentos científicos, considerando os caminhos deixados abertos pelas diferentes discursividades analisadas.

Documentos relacionados