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Conclusão: Os maus bocados de um crítico em uma situação de prosperidade

É bastante provável que dentre os distintos pontos da crítica social adorniana este, a questão do remetente e do destinatário, seja, por assim dizer, o mais datado. Ao menos aquele que precisa de mais contextualização histórica para ser compreendido. Isto por um motivo muito simples: Adorno escreve sua obra tardia no decorrer de um processo de grande prosperidade econômica, o qual pode até ser considerado inclusivo, pois, em especial na Alemanha, realmente elevou o padrão de vida mesmo das camadas mais pobres em um nível considerável. Os períodos de prosperidade costumam ser, também, momentos de comodismo ou, ao menos, de integração. Isto criou uma espécie de sombra que paira sobre a obra adorniana que consiste no temor do capitalismo conseguir administrar de forma permanente as suas tensões e contradições a tal ponto que consiga manter as pessoas subjugadas, mas, mesmo assim, não hostis ao processo que as subjuga. Um pouco como na obra beckettiana: o pior parece não ser a efetiva possibilidade do fim de partida, da catástrofe total, mas sim a perpetuação da agonia, do estado de espera em que ficam os indivíduos reduzidos ao estado de espectadores passivos de sua própria desgraça, ainda que cômoda. Mais ainda, mesmo a situação de prosperidade não teria conseguido, aos olhos do frankfurtiano, afastar de vez as

74 possibilidades de recaída na selvageria que marcara de forma indelével não só a sociedade alemã, mas também a sociedade moderna em geral. No epílogo que finda a presente tese tento lidar, na medida do possível, com as diferenças que marcam nossa época, de rápida deterioração do padrão de vida causado pela crise, talvez mesmo derrocada, do capitalismo (mas não só dele) diante da era dourada do pós-guerra que tem em Adorno um de seus mais incisivos críticos. Antes de concluir, gostaria ainda de mencionar outra vez que um pensamento datado não é por isso menos interessante. Mau é o pensamento que já surge obsoleto ou, ainda, aquele que conquista sua permanência ao custo de sua abstração.

Enfim, para recapitular, neste segundo tópico foi visto essencialmente que, segundo o autor frankfurtiano: 1) a possibilidade da crítica permanece aberta na medida em que continuam havendo indivíduos não totalmente modelados pela sociedade; 2) que a crítica feita por eles é correta na medida em que é capaz de explicar a sociedade e suas patologias; 3) que tal crítica não é paternalista (ao menos no sentido político), principalmente porque ela não consiste em dizer que as pessoas são alienadas e portanto não vivem do modo certo, mas sim por criticar o processo de reificação que impede que estas pessoas se autodeterminem; 4) que ela é endereçada às gerações futuras, uma vez que estas podem dar fim ao processo de reificação em um momento que se mostrar oportuno (diferente, portanto, do contemporâneo a Adorno); 5) que ela é também endereçada aos indivíduos da sociedade que lhe foi presente, na medida em que eles não estão plenamente adaptados e que se pode fomentar a capacidade crítica destes, resistindo assim contra a barbarização da sociedade.

75 3. Crítica do capitalismo ou crítica da racionalidade prevalescente?

Sugeri, nos dois capítulos precedentes, que, embora obstáculos por enquanto intransponíveis bloqueassem as possibilidades emancipatórias, a teoria de Adorno não se tornou uma espécie de lamento resignado, mas seguiu sua vocação crítica buscando não só as melhorias possíveis de serem obtidas dentro da ordem existente, como também manter viva a esperança de um mundo reconciliado. Para tanto, ela precisa ser capaz de articular a expressão do sofrimento que fica contido, reprimido, na ordem atual; e articulá-lo de tal maneira que consiga colocar em questão as suas causas sociais, mostrando que uma sociedade transformada poderia suprimir boa parte do sofrimento atualmente existente. E mais, foi visto que, de acordo com Adorno, o sofrimento sempre deixa rastros, de forma que mesmo aqueles indivíduos mais bem adaptados podem se tornar críticos em relação à ordem existente na medida em que seus desejos e necessidades não sejam razoavelmente satisfeitos. Por causa disto, mesmo uma ordem aparentemente estável como aquela de meados dos anos sessenta estava assentada em bases frágeis, uma vez que o imperativo de manter razoavelmente satisfeitos os indivíduos colide com a necessidade sistêmica de multiplicar o capital investido. Por isso há sempre, nas sociedades capitalistas, uma tensão latente.

Uma afirmação feita carece, no entanto, de muitos esclarecimentos. Logo no início do trabalho eu disse que os humanos não eram livres, aos olhos do frankfurtiano, uma vez que haviam se tornado meras engrenagens do circuito da valorização do valor. Isto é, que aquilo que impede os indivíduos de serem livres, e portanto aquilo frente ao qual é preciso se emancipar, é o capitalismo. Esta afirmação precisa ser problematizada, ao menos porque ela vai na contracorrente de boa parte do que têm sido dito acerca da obra adorniana. Neste caso, para dar um passo adiante na investigação aqui em curso e mostrar os motivos pelos quais a sociedade capitalista tardia analisada por Adorno não era uma boa sociedade aos seus olhos, e portanto porque os indivíduos não eram livres, porque a vida que eles viviam podia ser considerada uma vida lesada, danificada ou atrofiada, é preciso dar um passo atrás e analisar um período do desenvolvimento da teoria não só de Adorno, mas do próprio Instituto de Pesquisa Social. Um momento de ruptura com a teoria tal como ela era feita nos primórdios do Instituto, mas uma ruptura que precisa ser muito bem qualificada.

O momento em questão é o começo dos anos 40. Desde a ascenção do nazifascismo tornara-se urgente uma teoria que explicasse

76 seu poder de atração. Da mesma forma, as políticas anticíclicas keynesianas bancadas sobretudo por Roosevelt nos Estados Unidos indicavam mudanças profundas na organização do capitalismo, assim como o aparente sucesso do planejamento econômico soviético. No conhecido ensaio programático de 1937, “Teoria tradicional e teoria crítica”, Horkheimer sugeria que a principal diferença entre o capitalismo tardio ou monopolista de então frente ao capitalismo liberal investigado por Marx setenta anos antes era que agora os meios de produção estavam nas mãos de magnatas industriais, ao passo que antes quem detinha o capital e o controle sobre ele eram os pequenos proprietários privados (Cf. Horkheimer, 1975, p. 157-8)47. Quatro anos depois, no entanto, Pollock publicava na revista do Instituto, então publicada em inglês e intitulada Studies in Philosophy and Social Science, os artigos State Capitalism e Is National Socialism a New Order?, artigos nos quais sugeria que a mudança então em curso alterava a ordem social em um nível muito mais fundamental: na verdade, com a ascenção do planejamento, do Estado interventor, Pollock afirmava que a dominação econômica típica do século dezenove havia se transformado em uma dominação eminentemente política. Esta transformação, de acordo com grande parte da literatura secundária sobre o Instituto e seus teóricos, teria causado alterações de grande monta nas análises subsequentes, levando a um abandono da crítica ao capitalismo e à economia política, ou melhor, a substituição desta pela crítica da dominação da natureza e da racionalidade instrumental. No entanto, como mostrarei a seguir, é um engano acreditar que Adorno aderiu à tese de Pollock. E mais: é um equívoco supor que a crítica da economia política e do capitalismo deixaram de estar no centro de sua análise. A hipótese que defendo, por conseguinte, é que, ao menos de acordo com Adorno (mas não, necessariamente, com outros teóricos críticos do Instituto) a crítica do capitalismo seguiu sendo necessária, mas já não era mais suficiente. Com as mudanças então em curso, o pensamento crítico não podia mais se limitar a criticar o capitalismo deixando de lado as reflexões acerca de quanto o próprio capitalismo se

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Convém ressaltar que “Teoria tradicional e teoria crítica” já apresenta o começo desta transformação teórica que visa repensar a crítica social a partir do advento do nazifascismo e das transformações econômicas então em curso. Neste texto, inclusive, surgem os primeiros questionamentos acerca do quão imbricado está a própria forma de racionalidade moderna com a realidade capitalista criticada, de forma que a crítica social passa a ser também uma crítica do conhecimento. A este respeito, cf. Berendzen, 2013.

77 imiscuiu na forma de racionalidade prevalescente e faz uso desta para seus propósitos; tampouco podia deixar de lado a questão da dominação da natureza, nem, ainda, ignorar os danos e as mutilações sofridas pelos indivíduos ou pelo que restavam deles.

No presente capítulo devo analisar com maior atenção a argumentação de Pollock (I); para então apresentar a interpretação hegemônica acerca da obra tardia de Adorno, a qual sugere a tese da adesão à posição de Pollock e de substituição do objeto da crítica (II); a seguir, mostro as principais deficiências de tal interpretação e demonstro, a partir de um número significativo de passagens, que Adorno não aderiu à posição de Pollock e que não houve uma substituição do objeto de crítica (III), por fim, argumento que a crítica da economia política, embora siga sendo necessária, já não seria mais suficiente (IV).