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Uma mudança na orientação da sociedade teria fortes implicações também no terreno epistemológico. E aqui também é válida a afirmação de que a imagem do que deveria ser o conhecimento não pode ser oferecida previamente, pois ela surge da negação determinada da forma de racionalidade predominante nas sociedades modernas e capitalistas. O conhecimento não é um campo neutro, imune à influência exterior. Assim como a escolástica foi a figura espiritual do medievo, que ao mesmo tempo legitimava e criticava esta ordem social, a assim denominada ratio é a figura espiritual da modernidade, e ela não deve ser vista como um mero reflexo da situação dada, pois tanto contribui para o esclarecimento quanto para o obnubilamento geral. A característica principal da ratio é sua ênfase na identidade, na rotulação dos objetos. A negação determinada desta, por conseguinte, deve ser uma abertura aos elementos qualitativos dos objetos que foram menosprezados pela racionalidade classificadora.

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Caso, a meu ver, de grande parte da teoria crítica atual, em especial do Habermas pós Teoria do Agir Comunicativo e de Honneth. O caso de Honneth, ao menos em Luta por reconhecimento, é interessante porque ele parece cair no erro especular do velho espírito do anticapitalismo, ao conceder a primazia às demandas de reconhecimento desprezando os conflitos cujo cerne estão na economia, sejam ou não de redistribuição (Cf. Honneth, 2003). De qualquer forma, Habermas fez as pazes com o capital sobretudo por resignação (não haveria outra alternativa, segundo ele); Honneth, por sua vez, sustenta uma visão demasiado positiva da sociedade de mercado que é questionável até mesmo para as sociedades superdesenvolvidas da Europa ocidental (cf. Honneth, 2014).

134 De acordo com a análise adorniana, a ratio tem por meta o controle dos objetos, o domínio destes. Para atingir tal meta, a ratio não carece de um conhecimento aprofundado das nuances, das variações e dos devires das coisas, pelo contrário, ela se contenta com a operacionalização das mesmas, algo que já é conseguido com a mera classificação, isto é, com a subsunção do particular no universal que supostamente o representa. O resultado é um conhecimento que não apreende o particular, não desvenda as especificidades, mas que consegue tornar a natureza e os homens controláveis. Este conhecimento, no entanto, faz uma violência desnecessária que precisa ser reparada, e para tanto é fundamental que essa figura espiritual se desfaça e dê espaço para o surgimento de outra. Na Dialética negativa Adorno apresenta o que ele chama de uma “utopia do conhecimento”: uma figura espiritual que se contrapõe a predominante e que busca reparar a violência feita por ela, uma figura que busca apreender as qualidades e as efemeridades de modo a iluminar o objeto sem deformá- lo.

Isso não significa abrir mão dos conceitos enquanto entidades capazes de identificar: “Aquela parte da verdade que pode ser alcançada por meio dos conceitos, apesar de sua abrangência abstrata, não pode ter nenhum outro cenário senão aquilo que o conceito reprime, despreza e rejeita. A utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-lo a esses conceitos” (DN: 17). Os conceitos seguem sendo necessários, mas deixam de ser a meta do conhecimento para passar a ser apenas um instrumento nesse processo. Assim, conhecer algo não mais significaria saber identificá-lo, mas, em oposição a isto, lograr a revelação do objeto por meio da configuração exata de seus diversos elementos, de seu processo de devir e de suas relações com o entorno, com a totalidade. Por meio de conceitos é possível iluminar a não-identidade; por meio de universais se é capaz de mostrar o particular, mas tão somente ao se reconhecer a limitação destes como instâncias sempre parciais, que sempre deixam o essencial de lado e que, por isso, precisam reconhecer sua própria insuficiência para conseguir transcendê-la.

O pensamento não-identitário, a figura que busca ir além da ratio, se caracteriza assim pelo procedimento da constelação:

O momento unificador sobrevive sem a negação da negação e mesmo sem entregar-se à abstração enquanto princípio supremo, de modo que não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses

135 conceitos entram em uma constelação. Essa constelação ilumina o que há de específico no objeto e que é indiferente ou um peso para o procedimento classificatório. (DN: 140)

A constelação é a reunião não hierárquica de diversos conceitos que, juntos, conseguem mostrar as peculiaridades do objeto que excedem a mera rotulação80. A função da teoria não é apenas a de reunir tais conceitos, mas em especial a de mostrar a forma exata em que eles se relacionam entre si81. Ademais, é preciso apresentar a composição destes elementos em sua historicidade própria: “Somente um saber que tem presente o valor histórico conjuntural do objeto em sua relação com os outros objetos consegue liberar a história no objeto; atualização e concentração de algo já sabido que transforma o saber. O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do processo que ele acumula em si.” (DN: 141-2). É preciso mostrar o devir do objeto por meio da constelação.

Ao contrário da ratio, cujo conhecimento é sempre um meio de domínio da natureza (seja esta externa ou interna), o pensamento não- identitário é algo feito sem um fim específico, ou melhor, é sua própria

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“Se o conceito simplesmente isolasse, poderíamos sim localizar o não- idêntico como uma categoria residual do processo de identificação. No entanto, como a atividade de conceituação envolve também um preparar do cenário, uma armação prévia, o não-idêntico indica um excesso, não um resto” (Silva, 2006, p. 42).

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“A ideia de constelação foi desenvolvida por Adorno a partir das considerações feitas por Benjamin a respeito da lógica subjacente à construção de um ensaio filosófico. Inicialmente, Adorno queria com isso se referir a uma estrutura conceitual marcada pela justaposição entre todos e cada um dos conceitos, e não pela submissão a um deles ou a um princípio ordenador. Segue- se dessa primeira abordagem que Adorno não pretende elaborar um sistema de argumentação que proceda metodicamente desde a percepção clara e distinta do objeto até a definição de suas partes, mas, ao contrário, um ‘anti-sistema’ em que o todo do objeto deve ser recomposto a partir da contraposição de complexos parciais, de mesmo peso e ordenados de maneira a constituir um campo de forças conceitual. Assim, um ensaio, em sua forma de apresentação paratática, recusando a subordinação de argumentos em uma forma hierárquica, constituiria o modelo dialético, por excelência, de uma relação não-violenta com o dado e de uma linguagem que não fetichiza o conceito” (Silva, 2005, p. 328-9). Para uma análise mais pormenorizada, Cf. Silva, 2006. A gênese benjaminiana do conceito, assim como a recepção adorniana, é examinada por Luciano Gatti em Constelações (Cf. Gatti, 2009).

136 finalidade. Por diversas vezes Adorno adverte seus interlocutores que tal modelo de conhecimento “se joga a fond perdu nos objetos” (DN: 36), que ele causa vertigens, e previne àqueles que se orientam praticamente, que só investigam o que pode ser operacionalizável, que nada imediato pode ser ganho com a busca pelo não-identitário. É claro que tal conhecimento não é de todo inútil, mas sua utilidade não consiste em algo imediato, no aumento das forças de controle e de produção. Antes, trata-se de uma forma de pensamento que busca fomentar as experiências, aprimorando a capacidade de reflexão daqueles que dela fazem uso, e somente a médio ou longo prazo isso poderia provocar mudanças ou mesmo ser notado. Na medida em que expressa a dor e o sofrimento que são recalcados pela ratio, o pensamento não-identitário converge com a teoria crítica da sociedade, estabelecendo uma racionalidade mais crítica e reflexiva. Só isso possibilitaria curar as feridas que a violência do próprio conhecimento acarreta, de modo que a dominação da natureza não se dê de forma obstinada e cega e que os indivíduos resistam ao invés de sucumbirem.