• Nenhum resultado encontrado

A Crítica da Razão Pura de Adorno?

Conforme informação de Rolf Tiedemann – a quem foi incumbida a tarefa da edição das obras póstumas e das obras completas de Adorno –, a Dialética negativa comporia, juntamente com a Teoria estética e um livro sobre teoria moral, que não chegou a ser iniciado, uma trilogia que, nas palavras de Adorno, seria o que ele “tinha para por na balança” (Tiedemann, 1986, p. 537). Se, como bem nota Tiedemann, com tal sentença Adorno comete uma injustiça com suas obras anteriores, menosprezadas nela, ele revela, ao mesmo tempo, o quão importante era esta trilogia final da qual só a obra aqui analisada foi concluída. A semelhança para com o projeto crítico de Kant salta aos olhos. Um livro principalmente sobre teoria do conhecimento, um sobre moral e outro sobre estética. A Dialética negativa ocuparia assim na trilogia adorniana o papel exercido pela Crítica da razão pura no tríptico kantiano. No entanto, é só com grandes dificuldades que se pode caracterizar tal obra como sendo principalmente de teoria do conhecimento96. É certo que Adorno está interessado em discutir a relação sujeito-objeto, o como e o quanto o primeiro pode conhecer do segundo e mesmo em propor uma forma de conhecimento distinta da atualmente predominante; temas estes que são usualmente classificados

96

Na verdade, nesta conclusão pretendo justamente mostrar que é equívoca a interpretação, amplamente disseminada, de que a Dialética negativa é essencialmente uma obra de teoria do conhecimento (como sugere, p.ex., Zuidervaart, 2011). O’Connor, por sua vez, interpreta a Dialética negativa como a “fundação teórica do tipo de reflexividade – a postura crítica – requerida pela teoria crítica. A dialética negativa nos oferece maneiras pelas quais podemos questionar ‘o dado’ ou reconhecer distorções da experiência” (2004, p. ix). Assim, embora a Dialética negativa seja, de acordo com O’Connor, a parte puramente filosófica do trabalho de Adorno, a função desta seria “não apenas exemplificar a atitude crítica, mas, sobretudo, demonstrar que ela é possível (2004, p. x). No entanto, Adorno é enfático em seu antifundacionismo e parece mais preocupado, mesmo na Dialética negativa, em criticar a sociedade do que em demonstrar que isso é possível. Destarte, sugiro, pelo contrário, que a Dialética negativa é um escrito de teoria crítica, que difere de seus textos de intervenção da década de sessenta apenas por seu caráter programático, o que lhe confere um patamar mais alto de abstração (sendo, em parte, uma reflexão segunda ou terceira acerca de seus outros escritos).

165 como pertencentes ao campo da reflexão epistêmica, à teoria do conhecimento. Mas igualmente é certo que o frankfurtiano debate nela a falta de liberdade existente na sociedade burguesa, a falsidade da vida no mundo contemporâneo e a impossibilidade de não se fazer o mal ao se estar em um todo antagonista; assuntos que fogem das reflexões sobre epistemologia usuais e encontram refúgio no campo da filosofia prática97. Mas deixe-se por ora em suspenso a difícil questão de como conciliar a crítica social com a crítica ao conhecimento nesta obra, retornando à questão da semelhança entre o projeto adorniano e o da filosofia crítica do teórico de Königsberg. Tal analogia com a obra kantiana seria gratuita se não fosse acrescentada a ela outro detalhe, bem mais importante, e que consiste, a meu ver, em um primeira passo, não o único, para começar a decifrar o “enigma” Dialética negativa. Adorno propõe nesta obra nada menos que uma nova “revolução axial da guinada copernicana” (DN:8). Ora, é sabido que o objetivo de Kant, em sua primeira crítica, foi fazer uma guinada no pensamento: assim como Copérnico tirara a Terra do centro do universo para colocar o Sol em seu lugar, Kant tirou o objeto do centro da investigação para colocar o sujeito nele. Por conseguinte, a primeira crítica almeja inquirir a capacidade cognitiva do sujeito a fim de responder a pergunta, “que podemos conhecer?”. Adorno, em contrapartida, propõe uma nova guinada do centro de investigação filosófico: tirar o foco do sujeito e recolocá-lo no objeto. Eis o primeiro elemento-chave para a compreensão da obra. Não é desnecessário lembrar que voltar o centro de investigação para o objeto não significa simplesmente se desfazer de toda a reflexão acerca da capacidade cognitiva contida na obra kantiana; pode-se dizer que essa operação visa algo como a aufhebung hegeliana, uma superação que, no entanto, mantém em grande parte aquilo que suprime.

Mas por quais motivos se deve tomar o objeto como o centro da investigação? E quais as consequências decorrentes desta inversão? Aqui é preciso lembrar do tema recorrente em todas as obras adornianas que tratam da atualidade e persistência da filosofia, assim como das que tecem reflexões acerca da teoria do conhecimento, a saber, a crise e o declínio do idealismo. Para Adorno, o idealismo consiste sobretudo na primazia do sujeito sobre o objeto e, por conseguinte, foi a corrente

97

Tanto Türcke (2004) quanto Behrens (2005) mostram o entrelaçamento entre a crítica da teoria do conhecimento e a crítica da sociedade que permeiam a Dialética negativa, oferecendo uma interpretação, ao menos em suas linhas gerais, semelhante a que aqui apresento.

166 majoritária da filosofia moderna ao menos até o século XIX. Ele pode possuir características díspares: ser, como na obra cartesiana, uma construção erguida sobre um conhecimento interno, a certeza de que se é, de que se pensa, e de que o conhecimento obtido por meio do pensamento puro não é vago e incerto como aquele adquirido por meio da experiência sensível. Pode igualmente consistir no idealismo transcendental kantiano, em que os objetos não são cognoscíveis tais como são em si mesmos, sendo preciso se contentar com o conhecimento limitado de como eles aparecem para nós. Pode ainda ser o sistema idealista hegeliano em que sujeito e objeto mediam-se reciprocamente, de modo que poderia ser até mesmo problemático falar em primazia do sujeito não fosse o fato de ambos serem desdobramentos da ideia, e que, ao fim e ao cabo, finda com a conclusão de que o objeto é, ele mesmo, parte constituinte do sujeito, do espírito. Não obstante tais variações, o idealismo contém semelhanças para além da primazia do sujeito (embora com ligação a ela): ele tem por intuito o domínio da natureza, seja interna, seja externa; propõe um tipo de conhecimento que visa conceituar os objetos, isto é, tem como telos a identificação, a subsunção do ente singular em seu conceito universal e, por causa disso, despreza os elementos particulares e contingentes daquilo que conceitua. Assim, a guinada em direção ao objeto visa a superação do idealismo pela proposição de uma filosofia materialista que quer sobretudo conhecer o não-idêntico nos objetos. O que pode ser considerado o segundo elemento para montar o mosaico Dialética negativa.