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Umberto Galimberti (2006, p.17) levanta a questão “o que será do homem num universo de meios que não têm em vista outra coisa senão o aperfeiçoamento e a potencialização da própria instrumentalização?” O homem num universo de meios é o homem num universo de possibilidades, no qual as coisas são como são, mas podem ser diferentes, um universo de contingência, um futuro aberto. Após o fracasso das grandes utopias, é a técnica moderna que mantém o horizonte aberto para as utopias futuras. A técnica moderna por seu caráter contingente possibilita à humanidade desocultar o mundo.

Entre as categorias que costumamos usar para nos orientarmos no mundo, a única que nos põe à altura do cenário aberto pela técnica é a categoria do

absoluto. “Absoluto” significa livre de qualquer vínculo (solutus ab),

portanto, de todo horizonte de fins, de qualquer produção de sentido, de todo limite e condicionamento (GALIMBERTI, 2006, p.15-16).

O entendimento de que a humanidade está situada no horizonte de uma Modernidade técnica oferece condições teóricas tanto para se compreender a Modernidade na sua origem quanto para lidar com os temas que ocasionaram o surgimento das teorias da “pós- modernidade” e da “segunda modernidade”, pois como núcleo central estas teorias trazem uma crítica à razão. O que a teoria da Modernidade Técnica tem a mostrar é que as possibilidades positivas e negativas da Modernidade são determinadas pelo caráter contingente da técnica. É ela que fornece as oportunidades e os riscos da Modernidade.

Os espantosos surtos irracionalizantes no século XX somente aproximam-se de uma compreensão analítica quando começamos a entender que a modernidade é na sua raiz técnica. A técnica, por sua vez, contribui em função de seu caráter contingente para uma destituição da predominância da racionalidade de fins, tão característica da fase histórica na qual surgiu o capitalismo, por uma racionalidade contingente. Essa racionalidade desoculta científica e tecnicamente o Ser, sem dispor de um fim que daria direção ou identificaria limites. Sem direção e limites a modernidade técnica desenvolve-se racionalmente, sem que haja uma proteção contra oscilações irracionalizantes que castigam cada vez mais seu percurso (BRÜSEKE, 2002, p.141).

Se a técnica se torna esse horizonte último a partir do qual se desvelam todos os campos da experiência, se não é mais a experiência que, reiterada, comanda o procedimento técnico, mas é a técnica que se coloca como condição a decidir o modo de se fazer a experiência, então assistimos a uma reviravolta pela qual o sujeito da história não é mais o homem, e sim a

técnica, que, emancipando-se da condição de mero “instrumento”, dispõe da

natureza como um fundo e do homem como um funcionário seu. Isso comporta uma revisão radical dos tradicionais modos de entender a razão, a verdade, a ideologia, a política, a ética, a natureza, a religião e a própria história.

A técnica como fornecedora das oportunidades e dos riscos da modernidade, porém não somente os riscos que provêm do culto das forças do real, como alerta Beck, mas também os riscos do culto das forças do bem e do culto das forças originárias (LOPARIC, 1994). Em meio a este alerta, Brüseke (2002, p.141) acrescenta:

As grandes catástrofes do século XX, o século mais sangrento na história da humanidade, estão intimamente ligadas tanto com a sobrevalorização das forças do bem como das forças originárias. A primeira e a segunda guerra mundiais tiraram toda a sua força da modernidade técnica das sociedades contemporâneas, e sua mobilização totalitária ganhou força tanto de ideais nobres como de necessidades arcaicas. O nacional-socialismo, com a sua relação pré-lógica com o solo e o sangue, seu culto à comunidade dos soldados, dos camponeses e dos operários é o maior exemplo disso. Mas também o culto das forças do bem fez as suas vítimas. A cumplicidade intelectual de grandes cientistas do Ocidente e do Oriente com o regime soviético – nos anos de 1920, 1930 e 1940, tão inescrupuloso quanto seu adversário nacional-socialista – explica-se pela adesão à sua autolegitimação classista-universalizante. Esta, por sua vez, consistiu basicamente no argumento que a causa nobre, a libertação dos operários e dos camponeses das restrições historicamente impostas, justificava temporariamente a injustiça, a desigualdade e a ditadura (Courtois, 1997).

Ao pensar o modo como a técnica possibilita a revisão de cenários históricos e desloca o homem da posição de sujeito da história para a de funcionário da técnica, Galimberti (2006, p.14) expõe a forma como a técnica comporta uma revisão radical dos modos tradicionais de entender a ética:

A ética, como forma de agir em vista de fins, sente a sua impotência no mundo da técnica, regulado pelo fazer como pura produção de resultados, em que efeitos se adicionam de tal modo que os resultados finais não se remetem mais às intenções dos agentes iniciais. Isso significa que não é mais a ética que escolhe os fins e encarrega a técnica de encontrar os meios, mas é a técnica que, assumindo como fins os resultados dos seus procedimentos, condiciona a ética, obrigando-a a tomar posição sobre uma realidade, não

mais natural e sim artificial, que a técnica não cessa de construir e tornar possível, qualquer que seja a posição assumida pela ética.

A Modernidade, entendida como essencialmente técnica, faz compreender melhor os fenômenos contingentes e irracionais gerados em seu seio. Isto provoca um esvaziamento de tal magnitude que torna a técnica imune à ética, fazendo com que se adapte a todos os três tipos ideais apresentados (o alemão, o russo e o americano).

Diante destas questões até agora suscitadas, percebe-se que o problema perene da condição humana é a contingência, o fato que algo é necessariamente como é, mas, também poderia ser diferente. Muito antes do surgimento da Modernidade Técnica que colocou a mudança, a inovação, a construção e a destruição, no centro da dinâmica social, o homem percebeu essa conditio sine qua non da sua existência.

Por meio da técnica, a humanidade intervém na natureza ansiosa por prever e controlar o devir, o movimento, e assim perpetuar-se. Por sua vez, a contingência inerente à técnica moderna amplia as possibilidades, fortalecendo a crença de que tudo é possível de ser realizado tecnicamente, até mesmo o anseio por perpetuar-se. A técnica, deste modo, adquire significado religioso, alimentando a crença de que poderia conceder as possibilidades para redenção dos seres humanos, que no caso dos pós-humanistas de modo similar aos gnósticos, consiste na libertação da condição corpórea. Assim, a técnica concederia as condições para que se realize o triunfo final da humanidade, limitada por sua condição orgânica, biológica. A técnica possibilitaria a consumação escatológica, a inauguração de uma nova era pós- biológica, “novos céus e uma nova terra, as coisas velhas passaram, eis que tudo se fez novo”. Uma era livre de doenças, na qual os paralíticos voltarão a andar, cegos a enxergar e os mudos a falar; uma era onde não há choro ou luto, porque a morte não existirá; uma era na qual as deficiências serão eliminadas e a humanidade experimentará a emergência de todas as suas potencialidades.

Este tom escatológico e apocalíptico está sendo utilizado de forma intencional como alerta para o modo como a existência, em meio a um contexto tecnológico, é alimentada por um imaginário religioso. Religioso, porém, em sua versão dessacralizada, pois não serão poderes divinos que operarão tais transformações, mas a própria humanidade através do conhecimento (gnosis) técnico-científico. A noção de corporeidade, corpo como construção social, parece se impor ao ponto de subordinar totalmente o corpo biológico, negando sua relevância, sua realidade enquanto fenômeno da natureza. Neste sentido, há uma posição

extremada que através da ênfase sobre o culturalmente construído restringe o papel biológico na formação de noções sobre o corpo. Desta noção de corpo culturalmente construído, através das possibilidades geradas pela técnica, passa-se a concretização de corpo tecnicamente construído, não somente como forma de conceber o corpo, mas pelo fortalecimento da crença de que o que até então era apenas um conteúdo de consciência, uma idealização, pode tornar- se algo real. O imaginado pode ser materializado, construído de fato tecnicamente.

Há o apagamento pelas normas de etiqueta de elementos que identificam a corporeidade: odores do suor, flatulências, arroto, roncos estomacais, escarros, secreções nasais, dentre outros. Além destes, são considerados embaraços, para moderna representação do corpo, elementos que denunciam fragilidade e limitação: velhice, doenças, deformidades e deficiências físicas, por exemplo. Há também como resultado de uma idealização do corpo, o repúdio ao que não se enquadra no ideal de corpo jovem, malhado na academia, bronzeado. Neste sentido, as intervenções técnico-cirúrgicas visam aperfeiçoar, adaptar aos padrões estéticos, corrigir, melhorar o rascunho corporal. Assim as tecnologias geram possibilidades ou a ilusão de que tudo é possível. Uma vez que a contingência está fortemente atrelada à técnica moderna. Ao criar possibilidades reais de se moldar o corpo ao desejo, alimenta-se a crença de que o ser humano pode projetar-se e executar o projeto de “auto-melhoramento”, transmutar o que não lhe agrada. Ao gerar a ilusão de infinitas possibilidades, alimenta imaginários sobre o futuro dos seres humanos e a completa eliminação do que se julgue limitador da auto-transcendência humana. Dentre estes limitadores o corpo e a própria condição humana. Eis um eschaton gnóstico, a consumação da história e a próxima etapa no processo evolutivo possibilitados pelo conhecimento (gnosis).

CAPÍTULO 2

MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES FILOSÓFICAS

Já no início do século XX Georg Simmel (apud MARRAMAO, 1997, p.105) observou que “Moderno” e “moda” possuem uma ligação não apenas terminológica, mas uma ligação intrínseca, pois ambos os termos descendem do advérbio latino modo, cujo significado é “agora mesmo”, “há pouco”, “acabou de acontecer”. E, como consequência, Simmel destaca que a modernidade é antes de qualquer coisa a época na qual a circulação das mercadorias e das ideias, bem como a crescente mobilidade social, ao universalizarem-se a todos os círculos da vida social, focalizam o valor do novo, criam as condições para a identificação do valor com a novidade como tal.

Considerando a forma como esta inconfundível proximidade entre moderno e novidade, não raramente, servem como um paradigma hermenêutico, quando a modernidade está sendo objeto de investigação. Assim, não é sem razão que Henrique Vaz (2012, p.18) declara:

Já mencionamos a forma desse paradigma, a saber: uma dialética entre continuidade e descontinuidade, que acompanha, aliás, toda a evolução da razão ocidental: continuidade e descontinuidade entre mito e razão filosófica no mundo antigo, entre fé e razão clássica na Idade Média, entre fé e razão moderna no mundo pós-medieval. No uso desse paradigma, trata-se de definir a linha de ruptura que separa a emergência do realmente

novo e o progressivo esmaecimento do antigo. Na última das modernidades

– a que estamos vivendo –, a interpretação da ruptura nos interpela particularmente, pois nela é a interpretação da nossa própria existência histórica que está em jogo.

Ora, o paradigma da ruptura só é pensável na pressuposição de uma continuidade que se rompe. Essa pressuposição nos impõe pensar o novo como negação dialética do antigo que lhe dá origem. No acontecer histórico não há, evidentemente, nenhuma emergência do absolutamente

novo. A continuidade do tempo subjaz a todas as mudanças. O paradigma ruptura deve ser inicialmente formulado segundo os termos da relação que

continua a unir o antigo e o novo no desenrolar histórico da sua separação. Como pode ser observado, Vaz destaca que compreender o processo de ruptura entre o antigo e o novo na modernidade constitui-se extremamente relevante para o entendimento desta dialética entre continuidade e descontinuidade no desenvolvimento da razão ocidental. Isto levando em conta que a modernidade ocidental é comumente interpretada a partir da ruptura com a Idade Média latina. Uma evidência desta interpretação jaz na origem da

expressão Idade Média (media aetas), elaborada pelos humanistas do Renascimento já contendo um juízo de valor, referindo-se ao hiato de civilização que é necessário saltar para se alcançar a civilização antiga da qual os humanistas se consideravam herdeiros. Além disto, não esquecendo que a Idade Média latina é reconhecida como realização de uma civilização cristã. Deste modo, Vaz (2012, p.19) constata:

A ruptura presente na formação da modernidade passa a ser entendida, desta sorte, como ruptura com uma determinada figura histórica do cristianismo, ruptura esta que avançará no século XVIII para formas de ruptura radical com toda a tradição cristã. Tal processo foi antes designado com o termo hoje raro de “secularização”. É justamente na interpretação dos vínculos históricos que ligam o mundo moderno ao mundo cristão medieval que são propostos diversos paradigmas e, neles, as categorias de uma axiologia da modernidade.

Isto exposto, neste capítulo, pretende-se examinar a modernidade em sua relação com o fenômeno da secularização. E isto sem desconsiderar a genealogia do conceito de secularização, bem como o debate filosófico que percebe na novidade moderna a permanência de categorias teológicas transformadas com relação ao seu sentido original. E assim, numa forma secularizada, essas categorias teológicas continuam a exercer influência sobre o mundo social e as experiências da existência humana que são formadoras do modo de conceber a realidade, a auto-interpretação da sociedade.