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1.1 O corpo como construção social?

1.1.1 Concepção moderna de corpo

1.1.1.1 Corpo como fator de individuação

Durkheim (2008), em As formas elementares da vida religiosa, ao discorrer sobre a noção de alma, apresenta-a como um protótipo a partir do qual foi construída a ideia de seres espirituais presente no pensamento religioso em geral. Para Durkheim (2008, p.323), o que há de objetivo na noção de alma são as tramas que constituem a vida interior das pessoas, sendo estas de duas espécies diferentes e irredutíveis uma à outra: umas estão em relação com o mundo exterior e material; as outras com um mundo ideal ao qual se atribui uma superioridade moral sobre o primeiro. Desta forma, segundo ele, o homem é constituído de dois seres que se orientam em sentidos divergentes e quase contrários, e dos quais um exerce sobre o outro verdadeira preeminência. Assim, segundo ele, tal é o sentido profundo da antítese que todos os povos conceberam mais ou menos claramente entre o corpo e alma, entre o ser sensível e o ser espiritual que coexistem no homem.

Em conformidade com Durkheim, para tornar essa dualidade inteligível absolutamente não é necessário imaginar, sob o nome de alma uma substância misteriosa e irrepresentável que se oporia ao corpo. Para ele, o erro está sobre a forma de símbolo empregado, não na realidade do fato simbolizado. “É sempre verdade que a nossa natureza é dupla; existe realmente em nós uma parcela da divindade porque há em nós uma parcela daqueles grandes ideais que são alma da coletividade” (DURKHEIM, 2008, p.324). Isto porque, para Durkheim (2008, p.324), “A alma individual não é senão uma porção da alma coletiva do grupo; é a força anônima que está na base do culto, mas encarnada em indivíduo cuja personalidade assume; é o mana individualizado.”

Deste entendimento de que a alma individual surge dos grandes ideais que forma a alma coletiva compreende-se a origem da crença de que a alma sobrevive ao corpo. No sentido de que a crença na imortalidade das almas dos indivíduos é a maneira que o homem encontrou, para explicar a si mesmo, um fato de que não pode deixar de chamar a sua atenção: a perpetuidade da vida do grupo.

Os indivíduos morrem; mas o clã sobrevive. As forças que constituem a sua vida devem, portanto, ter a mesma perpetuidade. Ora, essas forças são as almas que animam os corpos individuais; porque é nelas e por elas que o

grupo se realiza. Por essa razão, é necessário que elas perdurem. É até necessário que, perdurando, elas permaneçam idênticas a si mesmas; porque, como o clã conserva sempre a sua fisionomia característica, a substância espiritual da qual é feito deve ser concebida como qualitativamente invariável. Já que se tem sempre o mesmo clã como o mesmo princípio totêmico, é preciso que as almas sejam as mesmas, as quais não são senão o princípio totêmico fragmentado e particularizado. [...] E essa crença, apesar de seu caráter simbólico, não deixa de ter verdade objetiva. Porque se o grupo não é imortal no sentido absoluto da palavra, é verdade, no entanto, que subsiste aos indivíduos e que renasce e se reencarna em cada nova geração (DURKHEIM, 2008, p.329).

O exposto até aqui contextualiza a afirmação feita por Durkheim de que o corpo desempenha o papel de um fator de individuação. De modo mais preciso ainda, esta afirmação ocorreu no contexto da discussão de que a ideia de alma foi durante muito tempo e, em parte, ainda continua sendo a forma popular da noção de personalidade. Assim, a origem da ideia de alma deve ajudar a entender como a ideia de personalidade se constitui.

Ressalta, do que precede, que a noção de pessoa é o produto de dois fatores. Um é essencialmente impessoal: trata-se do princípio espiritual que serve de alma à coletividade. É ele, com efeito, que constitui a própria substância das almas individuais. Ora, ele não é apanágio de ninguém em particular: faz parte do patrimônio coletivo; nele e por ele comungam todas as consciências. Mas, por outro lado, para que haja personalidades distintas, é necessário que intervenha outro fator que fragmente esse princípio e que o diferencie; em outras palavras, é necessário um fator de individuação. É o corpo que desempenha esse papel. Como os corpos são distintos um dos outros, como ocupam pontos diferentes do tempo e do espaço, cada um deles constitui um meio especial onde as representações coletivas vêm se retratar e se colorir diferentemente. Resulta daí que, se todas as consciências engajadas nesses corpos estão voltadas para o mesmo mundo, isto é, o mundo de idéias e de sentimentos que constituem a unidade moral do grupo, nem todas o vêem pelo mesmo ângulo; cada uma o exprime à sua maneira (DURKHEIM, 2008, p.330-331).

Esses dois fatores, um impessoal e coletivo e outro individualizador, o primeiro fornecendo a matéria-prima da ideia de alma. Assim não é de espantar-se com a atribuição de papel dada ao elemento impessoal na gênese da noção de personalidade. Desta maneira, compreende-se que o que faz do homem uma pessoa é aquilo que o confunde com os outros homens.

Durkheim (2008, p.332) declara que os elementos que servem para formar a ideia de alma e aqueles que entram na representação do corpo provêm de duas fontes diferentes e independentes uma da outra. Uns são constituídos das impressões e das imagens que partem

de todos os pontos do organismo; outros consistem em ideias e em sentimentos que derivam da sociedade e que a exprimem.

A noção de corpo como fator de individuação exposta por Durkheim está centrada numa organicidade, segundo ele, “há realmente uma parte de nós mesmos que não está sob a dependência imediata do fator orgânico; tudo aquilo que em nós representa a sociedade” (DURKHEIM, 2008, p.332). Em razão disto, ele resume a questão da seguinte forma: “o único meio que temos para nos libertar das forças físicas é opor-lhes as forças coletiva” (DURKHEIM, 2008, p.333). Isto se assemelha com a moderna representação do corpo, centrada no saber biomédico, mas mesmo que se reconheça a realidade concreta deste corpo orgânico, deve-se considerar que tanto a alma quanto o corpo podem ser produto de representação coletiva. Neste sentido, a moderna representação do corpo o representa coletivamente através do seu papel de individualização. Esta representação do corpo moderno está amparada por ideias e pensamentos coletivos que reforçam a individualização, o isolamento do grupo, e quando se particulariza no indivíduo, torna-se expressão individual da alma coletiva do grupo. Assim de nada adianta opor as forças físicas as forças coletivas, pois na atualidade uma é derivada da outra.

Na Modernidade, o individualismo crescente constitui-se na alma coletiva do grupo. Isto se individualiza através da noção de corpo como cisão, o elemento que separa o indivíduo de si mesmo, do cosmo e dos outros.