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1.1 O corpo como construção social?

1.1.1 Concepção moderna de corpo

1.1.1.2 O corpo anatomizado

Já foi exposto acima que, na Modernidade, as concepções de corpo que foram se constituindo são tributadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado individualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pública é valorizada); a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando no estudo do corpo como realidade em si mesma, dissociada do ser humano); e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo).

Até aqui houve uma referência ao acentuado individualismo moderno, agora serão feitas referências à emergência de um saber racional positivo e laico, que ao estudar o corpo como realidade em si, dissociando-o do ser humano, de forma reificada, produziu o recuo das concepções populares acerca do corpo, fazendo que estas concepções fossem substituídas por um saber biomédico, oficial, sobre o corpo. Para que isto tenha se tornado efetivo, foi de suma importância o crescente interesse por dissecações de cadáveres nos estudos de anatomia no fim da Idade Média. “Isto não se fazia desde o século III a.C, quando dissecações humanas – as únicas que o mundo antigo conheceu – foram feitas em Alexandria. Seguiu-se um período muito longo de uns quinze séculos sem dissecações” (MANDRESSI, 2012, p.411).

Sobre este longo período sem dissecações difundiu-se a opinião de que isto teria ocorrido devido a uma proibição por parte da Igreja Católica. Porém não há documentos que atestem isto, o único documento que poderia ser citado em apoio a esta alegação é a decretal Detestande feritatis, emitida pelo Papa Bonifácio VIII, em 1299. Entretanto, esta decretal expunha a oposição do pontífice ao esquartejamento dos cadáveres. A decretal pretendia colocar um fim no costume de desmembrar os corpos dos defuntos para tornar mais fácil o transporte até o local da sepultura, quando distante do local da morte. Desta forma não se tratava de proibir dissecações anatômicas, que começavam a ser praticadas nesta época (MANDRESSI, 2012, p.411-412).

Sobre esta questão da suposta proibição, Le Goff e Truong (2010, p.119-120) asseguram:

A dissecação médica não era proibida. Mesmo Galeno, o mestre dos médicos medievais, praticava a dissecação de animais. Assim, em Bolonha, em Salerno, em Montpellier, em Paris, a dissecação tornou-se uma prática pública e didática. O saber livresco predomina, entretanto. A abertura dos corpos era frequentemente destinada a confirmar Galeno. Como resume justamente Danielle Jacquart, “o corpo era ‘lido’ antes de ser visto”.

O predomínio do saber livresco, mencionado por Le Goff e Truong, associado à prática da dissecação apenas com o objetivo de confirmar Galeno, possui uma estreita relação com a depreciação por parte dos médicos no tocante a atividade realizada por cirurgiões na Idade Média. A atividade dos cirurgiões consistia numa prática manual, no manuseio da carne de outrem, algo não estimado por médicos universitários. Associada a “artes mecânicas”, “as dissecações anatômicas, que também implicavam no recurso ao uso da mão e à incisão do corpo, poderiam ter sido objeto de reticências análogas”, segundo Rafael Mandressi (2012,

p.414), que explica ainda que a divisão das tarefas que caracterizam a organização das dissecações públicas até o século XVI mostra, efetivamente, que elas eram regidas por uma hierarquia. O professor comandava o seu desenrolar, lia e comentava os escritos das autoridades do alto de sua cátedra, sendo secundado por um demonstrator, que fazia os assistentes ver o que o mestre explicava, enquanto a preparação do cadáver era em geral confiada a um cirurgião barbeiro. Mesmo assim, não dá para concluir que o descrédito das “artes mecânicas” estivesse na origem de uma impossibilidade qualquer de praticar dissecações.

Uma vez que a busca por impedimentos que retardaram por mais de um milênio a prática das dissecações humanas se revela infrutífera, Mandressi (2012, p.415) julga conveniente deslocar o ponto de vista sobre esta questão. Em vez de procurar saber por que não houve dissecações até a Idade Média tardia, seria melhor perguntar por que razão se começou a recorrer a ela nesta época?

Com efeito, não somos obrigados a postular que a falta de dissecações seja necessariamente devida a um impedimento. Isto equivale no fundo, a considerar a dissecação como um meio “natural” de chegar ao conhecimento do corpo. Ora, escrutar cadáveres com ajuda do escalpelo não é necessariamente uma evidência fora de um tempo e de um espaço que viram este ato tornar-se a chave das operações de desnudar “verdades” do corpo. Temos o direito de presumir que a outros tempos correspondem outras evidências, e que, se durante longos séculos as dissecações não foram praticadas, é principalmente porque elas não foram julgadas necessárias. Podemos, portanto, considerar o acesso às dissecações como uma invenção, uma resposta que, em um determinado momento, apareceu como adequada ou vantajosa diante da exigência de obter ou perfazer um novo conhecimento sobre o corpo (MANDRESSI, 2012, p.415).

Uma vez que se compreendam as dissecações como uma invenção, ou uma reposta que surgiu num determinado momento para satisfazer a exigência de um novo conhecimento sobre o corpo, entende-se igualmente que isto possui como ponto de partida a recepção da medicina greco-árabe no Ocidente medieval. Isto se fez por meio de uma vasta tarefa de tradução. Segundo Mandressi (2012, p.415-416), como fruto desta vasta tarefa de tradução de obras médicas greco-árabe, primeiramente no sul da Itália, onde, na segunda metade do século XI, Constantino, o Africano, traduziu, no mosteiro do Monte Cassino, muitos textos médicos árabes para o latim. Dois deles devem ser particularmente lembrados: o Isagogo, uma introdução à medicina de Galeno composta por Hunain Ibn Ishaq (falecido em 877), e o Liber pantegni, uma obra enciclopédica do médico de origem persa Haly Abbas (século X). Uma

segunda etapa importante teve lugar em Toledo, no século XII. As contribuições fundamentais no domínio da medicina datam do período marcado pela presença, naquela cidade, de Gerardo Cremona, que chegou lá depois de 1145 e traduziu, aparentemente como chefe de uma equipe, dezenas de obras. Dentre as obras médicas, pode-se citar Liber de medicina ad Almansorem, de Rhazès (falecido por volta de 930), a Cirurgia de Albucasis (falecido em 1013), o comentário de Ibn Ridwan (século XI) à Arte médica de Galeno, adaptações árabes de tratados galênicos e, sobretudo, o Cânon da medicina de Avicena.

As traduções do árabe tiveram um papel de primeira importância na evolução do saber médico na Europa latina. Elas contribuíram decisivamente, de modo particular na impregnação galênica da medicina medieval europeia. Isto se fez, em primeiro tempo, por intermédio de um galenismo arabatizado, mas de imediato se quis aceder diretamente aos textos autênticos de Galeno. O corpus galênico greco-latino começou então a se constituir. Por volta de 1185, Burgúndio de Pisa fez versões greco-latinas de tratados como Do método terapêutico, Das compexões ou Dos lugares

afetados. Essas traduções sucederam, em particular, as de Niccolò da

Reggio, médico da corte angevina de Nápoles que traduziu, em 1317, Da

utilidade das partes do corpo [De usu partium], trazendo a primeira

recuperação direta de uma exposição essencial da anatomofisiologia galênica (MANDRESSI, 2012, p.416).

Sob influência deste conjunto de obras, do fim do século XI ao começo do século XIV, a posição dos conhecimentos anatômicos ganhou em clareza e em precisão. Além disto, os tratados de cirurgia elaborados no Ocidente a partir da segunda metade do século XIII, que têm como fonte obras árabe-latinas, insistem na importância dos conhecimentos anatômicos.

O recurso à dissecação aparece quando a maioria dos escritos médicos que podiam exercer uma influência neste sentido só estavam disponíveis em versões árabe-latinas. Foram Haly Abbas, Rhazés, Avicena e, mais tarde, Averróis que fizeram da anatomia algo que devia ser conhecido, ou mais bem conhecido do que antes. Uma vez colocada essa exigência, num determinado momento foi adotada, para satisfazê-la, a modalidade de abrir corpos humanos, o que essas mesmas fontes não preconizavam expressamente.

Mas, para esta modalidade, incentivava-se a apelar para a experiência. À base do que se podia ler em Averróis ou Avicena, a constituição do saber anatômico está associada a um procedimento fundado na observação. Neste quadro, o recurso ao veredicto dos sentidos torna-se o método adequado para resolver os casos de opiniões discordantes das autoridades, para verificar de

visu o que é dito nos textos, ou ainda, conforme o caso, para corrigir as

O procedimento de abrir cadáveres era realizado para fins variados: para o transporte dos restos mortais com o objetivo de sepultá-los na terra natal do defunto; para fins de embalsamento; para exames post-mortem com o intuito de estabelecer a causa da morte. Práticas que se distinguiam uma das outras por sua intencionalidade, seja ritual ou judiciária, a depender do caso. Neste contexto, segundo Mandressi (2012, p.418), estas práticas têm em comum a época de sua introdução, entre os séculos XII e XIII, sendo que as dissecações só aparecem por volta do fim deste período, isto é, depois de outras práticas que comportam a abertura do cadáver humano. Este aparecimento tardio pode ser significativo, se interpretado como a irrupção de uma intencionalidade específica de exploração do corpo, num contexto em que práticas fundadas na abertura de cadáveres forneciam um dispositivo técnico do qual era possível apropriar-se. O apelo ao uso de dissecações surgiu, quando a abertura de cadáveres foi estimulada pela curiosidade anatômica.

Ora, se as técnicas de busca de uma verdade no interior do corpo morto, e o próprio fato de entregar-se a uma busca deste tipo, foram adotadas em contato com práticas que as exploram, é preciso ainda que se tenham tido boas razões para fazê-lo. Essas razões não podem provir a não ser do estado do saber anatômico, no seio do qual são firmadas demandas epistemológicas face às quais a autópsia cadavérica podia representar uma oferta apropriada. Isto se opera no fim de um processo subtendido pela introdução dos textos médicos mencionados. Assiste-se primeiramente, por meio das obras árabe- latinas, à promoção da anatomia à primeira classe dos componentes do saber médico e, em seguida, à atribuição, também em grande parte sob a influência desses textos, de uma função decisiva às constatações sensoriais entre as fontes do conhecimento anatômico. Assim são fixados, a seu respeito, um novo estatuto e novas orientações que, na virada dos séculos XIII e XIV, assumem práticas que consistem em manipular, abrir e escrutar o interior dos corpos (MANDRESSI, 2012, p.418-419).

Em 1543, é publicado em Basileia o De humani corporis fabrica de Andreas Vesalius (1514 – 1564 d.C), médico belga considerado o pai da anatomia moderna. Um enorme tratado de anatomia de 700 páginas. O surgimento do De humani corporis fabrica, no mesmo ano em que Nicolau Copérnico (1473 – 1543 d.C) publica De revolutionibus, é sintoma de um processo de mudança nos modos de conceber o mundo e o homem no Ocidente. O próprio Vesalius discorre longamente em seu tratado sobre os obstáculos mentais que precisam ser superados para que o corpo seja considerado como virtualmente distinto do homem. As observações de Vesalius sobre anatomia humana encontram suas fontes neste olhar distanciado, que esquece metodologicamente o homem para considerar somente o corpo.

Na proporção em que o corpo humano é manipulado, retalhado, esquadrinhado por meio de dissecações públicas em teatros de demonstrações, sob o olhar de diversos expectadores, opera-se uma mudança nas mentalidades das pessoas no Ocidente. O corpo começa a ser esvaziado da presença humana, é posto em suspenção, dissociado do homem, é coisificado, passando a ser estudado por si mesmo, como uma realidade autônoma. A anatomia humana apoia-se num olhar distanciado, que metodologicamente se esquece do homem para considerar somente o corpo, este analisado como uma máquina, parte por parte, componente por componente. O corpo absorve traços de uma entidade mecânica composta de peças e suscetível de ser desmontada. É a fragmentação do corpo que está no centro do projeto anatômico, pois a anatomia não trata do corpo inteiro e contínuo, mas dividido em partes e membros. O mecanicismo fragmenta, faz das partes do corpo engrenagens de um dispositivo que fez da máquina a principal metáfora do corpo humano.