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Conclusão: representações culturais no cinema português

Capítulo 2 – Do novo cinema ao cinema contemporâneo: a questão da identidade nacional no cinema português

2.6 Conclusão: representações culturais no cinema português

No final de um dos seus mais importantes livros, João Bénard da Costa (1991, p. 184), numa declaração hoje quase histórica, afirmou: “[a] escola portuguesa de cinema ou (...) imaginário português feito cinema (...) [construiu] a imagem espectral, que, melhor do que nenhuma outra [arte] reflectiu, nos seus fantasmas e frustrações, nos seus medos e culpas, a imagem da realidade portuguesa, ao menos desde Salazar até aos nossos dias”. De facto, como fomos demonstrando ao longo deste capítulo, o cinema português participou da construção de um quadro cultural nacional dos últimos cinquenta anos. Seria quase impossível isso não acontecer, face à importância do cinema – e, em anos mais recentes, do audiovisual – na construção de discursos sobre a identidade nacional. Também por isso, o cinema foi uma arma de combate histórico na sociedade portuguesa, mesmo que de pouco alcance.

Enfim, como tentámos provar, houve um conjunto de cineastas que, à suposta revelia de um poder ditatorial, afirmaram-se como centrais na definição de um cinema português, criando as condições para que seja construído um cânone que é hoje defendido no discurso académico. Esses cineastas, através dos seus depoimentos e os discursos dos seus filmes, acentuaram uma tradição do cinema de arte europeu que se prolonga até ao momento atual, através do conceito de cinema de autor, continuamente interessado em explorar as potencialidades visuais e narrativas do cinema. Ao mesmo tempo, as mudanças no panorama audiovisual português (e internacional, como observámos através da formulação de Elsaesser), a partir dos anos 80 e 90, mostraram que este cinema de autor iria conviver com a crescente importância de um cinema comercial e, até, a produção audiovisual dos canais de televisão. Como um todo, estes filmes alteraram o panorama conhecido do cinema feito em Portugal (embora seja importante reforçar a necessidade de reavaliação dos outros cinemas que coexistiram com o novo cinema português).

No primeiro capítulo, acentuámos alguns temas recorrentes da cultura portuguesa que influenciaram o sentimento de identidade nacional. Através do pensamento de Eduardo Lourenço, observámos como foi possível construir um imaginário mítico, que influenciou a forma como os portugueses se veem a si próprios. Foi esse imaginário que acentuou algumas ideias-chave, como a esquizofrenia patente entre tempos eufóricos e tempos decadentes. Também referimos uma tensão identitária entre um tempo colonial/imperial e um tempo europeu. O momento contemporâneo é, na verdade,

socialmente marcado por crises e consensos, pelo menos desde a Revolução de Abril. Como vimos através das observações de pensadores das últimas décadas, essas figuras míticas continuam a ensombrar o presente. Mas, de forma decisiva, foi importante descrevermos como a longa ditadura do Estado Novo também influenciou, indubitavelmente, aquilo que se pensa sobre a identidade nacional portuguesa.

O cinema português relacionou-se, como é óbvio, com esta longa tradição. Entre os diversos autores aqui discutidos, foi possível fazer uma associação de um movimento do cinema português entre os anos 60 e 80 que debateu, de forma muito acutilante, o momento histórico português, atravessando precisamente as diferentes épocas de crise e consenso. Nesse aspeto, alguns autores sugeriram uma ligação profunda à tradição cultural negativista da decadência, propondo que esta ligação empobrecia o imaginário cultural português e, ao mesmo tempo, significava uma passividade e situacionismo dos realizadores. Outros autores implicaram no cinema português dos anos 60 uma vontade de se abrir a um novo mundo, mas através de estratégias que contornavam os problemas da censura e de uma sociedade fechada. Nos anos 80, esses mesmos cineastas, próximos de conceções do cinema moderno ou cinema de autor, continuaram a discutir o país, propondo três temas primordiais: a revisitação de aspetos históricos da origem de Portugal; um regresso às origens rurais da sociedade portuguesa; ou a reativação de traumas históricos recentes, como a guerra colonial e a censura, relacionando-os com os tempos de liberdade. Esses filmes mostravam um certo desencantamento com a situação pós- revolucionária e, ao mesmo tempo, construíram narrativas de personagens à deriva, precisamente acentuando uma tensão identitária evidente. A partir de então, o cinema português continuamente pergunta que sociedade foi construída a partir da revolução democrática.

Nos anos e nos filmes das décadas de 60-80 é óbvia a influência do cinema chamado moderno: isto é, de um modelo de cinema de arte europeu que foi cultivado pelos cineastas portugueses. Esse modelo implicava uma série de efeitos estilísticos, sobretudo ao nível da importância da mise-en-scène sobre as matérias narrativas. Presidia a este cinema uma espécie de recusa de uma invisibilidade narrativa do cinema clássico e dominante. A não- narratividade e a exploração dos aspetos puramente visuais do cinema conduziu, em muitos destes cineastas, a um cinema-poesia, cujos referentes visuais clamavam por uma consciência do ato de filmar. A posição do realizador era, assim, afirmada, enquanto cerne

da autoria cinematográfica, como aliás assim fora quando os cineastas se autointitularam

autores-realizadores no célebre documento que apresentaram à Fundação Gulbenkian. Mas,

mais do que esta dimensão moderna, podemos voltar a utilizar o conceito estimulante de Carolin Overhoff Ferreira e aplicar a estes filmes a etiqueta de filme indisciplinar. O que isto significa para os filmes modernos portugueses – e, provavelmente, algumas dessas características chegaram ao cinema contemporâneo – é a capacidade de transgredir fronteiras, sobretudo as fronteiras de género, cultivando um hibridismo entre o documentário e a ficção. Para além disso, o conceito questiona a ideia de rutura, ao mesmo tempo que reforça a dimensão estética e a sua capacidade intrínseca de dissenso, ao contrário do sugerido por autores como Paulo Filipe Monteiro, quando propõem ver este cinema sob o prisma de uma continuada comiseração por si mesmos. Para esta indisciplinaridade foi, obviamente, muito importante uma proteção do Estado – ao nível do financiamento do cinema português – assim como uma forma de produção pobre – tanto cultivada pelos cineastas como implícita nas condições de financiamento do espaço português. Esta pobreza conduziu a uma condição artesanal deste modo de produção. Uma condição que permitiu uma liberdade criativa decisiva para uma certa rebeldia dos cineastas.

Neste contexto, não deixa de ser importante voltar ao assunto do realismo – que, aliás, tem sido motivo de reapreciações recentes. Não cabe no âmbito desta tese produzir teoria sobre o assunto, mas será, provavelmente, um campo por explorar que pode estabelecer ligações interessante entre as diferentes gerações. No caso da produção crítica cuja revisão efetuámos, pareceu evidente que os filmes portugueses destas décadas têm um défice de realidade quotidiana. Muitos preferiram abordar questões históricas, outros literárias e alguns mesmo misturaram o presente com um passado distante. Nesse sentido, parece evidente que parte deste cânone, entre as décadas de 60 e 80, se ausentou de problemas prementes da sociedade portuguesa contemporânea dos filmes. Talvez nesse sentido, este cinema tenha sido construído a partir de uma invenção da tradição. No entanto, nunca poderemos esquecer uma quantidade apreciável de filmes que lidaram com o seu presente contemporâneo. Sem dúvida, ainda assim, talvez tenha sido um caminho inescapável: isto é, a desestruturação do realismo foi um percurso sinuoso para regressar ao país. Mas também o país pode ser discutido quando se utiliza a ideia da indisciplinaridade ou do “regime estético” de Jacques Rancière. É, assim, um resultado de

uma tensão identitária, formulando-se mais como uma questão, muito antes de ser uma afirmação. Qual a representação da identidade nacional que os filmes propunham nesses anos 80?

Esta pergunta foi intensamente trabalhada durante esses anos, tanto pela velha geração, como por uma nova que surgiria no final dessa década. Os tempos históricos foram mudando e talvez com isso também os interesses dos cineastas. A década de 90, assim, assistiu a uma inusitada forma de pensar a sociedade portuguesa. Notámos, nesse aspeto, a quantidade de novos temas que inundaram o cinema português: problemas sociais, imigração, crise da família, revisitação do salazarismo, etc. Estes novos temas surgiam acompanhados de uma preocupação com problemas eminentes da sociedade e, nesse sentido, os autores que acompanhámos sugerem que a procura a questão do realismo foi de novo colocada pelos cineastas mais jovens: o quotidiano surgia, assim, em força no olhar destes novos filmes.

Esta atitude perante o presente está implicada também nas alterações profundas ao panorama audiovisual português: o crescimento da televisão e das produções comerciais provoca essa procura do quotidiano e dos temas polémicos. Como notámos, estas alterações estão em linha com mudanças estéticas e produtivas no cinema contemporâneo, assim como decorrem, também, das profundas transformações nas dinâmicas nacionais, sobretudo com a crescente hibridização cultural, decorrente da intensificação da globalização. No espaço português, essa globalização conjugou-se com uma abertura física e virtual ao espaço europeu. Uma consequência imediata disso foi a crescente importância da imigração na sociedade portuguesa. De certa forma, o cinema português dos anos 90 colocava a sociedade portuguesa em comparação com o seu espaço mundial, revendo-se na condição semiperiférica, de que nos falava Boaventura de Sousa Santos (cf. 2002), e relatando os problemas sociais dessa condição. Assim, propôs uma visão socialmente pessimista, ainda que os cineastas tenham sabido procurar o que ia para além dos discursos clássicos da identidade nacional, debatendo a complexificação desse discurso com os novos movimentos migratórios.

Em termos de produção e dimensões estilísticas, o cinema contemporâneo português aproxima-se também das práticas do seu tempo. Assim, os métodos industriais – consolidados pela Europa e pelas práticas audiovisuais – tornam-se normativos, mas coexistindo ainda com experiências artesanais, que procuram um novo tempo de produção.

Todas essas práticas foram influenciadas (e continuam a ser afetadas) pela introdução do vídeo e do digital. Essa componente tecnológica do cinema teve um impacto nas novas formas de produção – sobretudo no documentário, capaz de ultrapassar a barreira do tempo finito e caro da película – e também na aproximação a um realismo imediato: as câmaras são mais pequenas, menos obstrutivas e conseguem potenciar uma invisibilidade do aparato cinematográfico.

Se pensarmos em esquemas interpretativos da identidade nacional e o corpo teórico que analisámos – assente em Eduardo Lourenço, José Gil e Boaventura de Sousa Santos, entre outros –, verifica-se que o cinema português continuamente se relacionou com as representações culturais construídas durante o tempo ditatorial. Assim, as relações dos cineastas com esse tempo permitiu dialogar com as questões de poder – algo que é decisivo em Lourenço, Gil ou mesmo Moisés de Lemos Martins. Como é que a sociedade portuguesa democrática reagiu a estruturas de poder rígidas e castradoras da liberdade individual? Os filmes debateram-se intensamente com isso, como aliás é marcado pela utilização de alguns destes conceitos – sobretudo a não-inscrição – em autores como Carolin Overhoff Ferreira. Também Leonor Areal nos propõe um problema do pai, ausente ou sacrificado. A crise da família que se sente nos filmes da nova geração – por exemplo, notámos a forma como a família implode nos filmes cujos protagonistas são adolescentes perdidos no mundo – dialoga com este legado cultural. Parece-nos que a nova geração tem reagido a uma nova realidade global, e, ao mesmo tempo, expõe uma certa ilusão identitária, como aquela que tanto Lourenço como Gil nos descrevem. Talvez seja nesse sentido que vários autores reconhecem uma espécie de regresso ao presente contemporâneo. Os novos filmes têm estruturas narrativas particularmente intensas, exibindo as feridas sociais do Portugal moderno. Todos eles confirmam também a confrontação entre zonas mentais: entre um legado histórico fortemente enraizado no imaginário e um novo mundo aberto pela Europa e pela globalização cujo imaginário está em construção. Talvez os novos filmes portugueses reflitam aquilo que se anteviu na descrição de José Gil: uma espécie de pânico sobre esses tempos conflituantes do imaginário. Depois de tanto sentimento de identidade – a hiperidentidade proposta por Lourenço – uma espécie de vazio cultural. É, pois, neste contexto, que vamos colocar a obra de João Canijo, num diálogo do cinema português com as representações culturais da identidade nacional.

Uma das consequências desta encruzilhada histórica e social foi a explosão da violência. Sabemos – porque já o assinalámos no primeiro capítulo – que havia uma violência latente na sociedade portuguesa, mesmo durante o tempo da ditadura. Aliás, uma violência negada mas cultivada pelo regime do Estado Novo. Nos filmes da sociedade contemporânea pós-anos 90, essa violência torna-se explícita. O imaginário português exposto nestes filmes sofre, assim, uma radical alteração: os brandos costumes são exibidos como uma fabricação de um discurso nacional. Família, tensão identitária, violência são, assim, questões que se tornam comuns no cinema contemporâneo, concretizando uma crítica a um certo discurso sobre a identidade nacional. Esta construção temática propõe um olhar sobre um mundo complexo, no qual agora aplicaremos uma necessária aproximação em grande plano: o cinema de João Canijo.