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A Invenção da Tradição: acerca da afirmação de um cânone no cinema português desde o novo cinema

Capítulo 2 – Do novo cinema ao cinema contemporâneo: a questão da identidade nacional no cinema português

2.2 A Invenção da Tradição: acerca da afirmação de um cânone no cinema português desde o novo cinema

Depois da análise do cinema nacional e das suas condicionantes, vamos debruçar-nos sobre a história do cinema português, para perceber de que forma o nosso caso de estudo, o cineasta João Canijo, dialoga com essa história. A nossa preocupação é, no âmbito desta investigação, perceber como o cinema português trabalhou o nacional e dialogou com tradições culturais diversas. Para esse caminho, será necessário proceder a um levantamento das relações entre a identidade nacional portuguesa e certas especificidades do cinema, sobretudo as suas condições de produção (incluindo a exibição) e paradigmas estilísticos. Pretende-se, de certa forma, traçar um panorama, que nos permitirá dois caminhos já no terceiro capítulo desta dissertação: por um lado, perceber a construção de um cânone, com o qual o trabalho de João Canijo dialogará; por outro, perceber de que forma o nacional foi discutido nesse cânone, para depois ser possível comparar, diacronicamente, com os filmes de João Canijo e a sua própria discussão nacional. Assim, neste subcapítulo, tentaremos fazer uma breve análise histórica que culminará no estudo de um cânone no cinema português desde os anos 1960. Esta elaboração histórica permitirá esclarecer certos aspetos da análise posterior à relação entre o cinema português e a identidade nacional, sobretudo do ponto de vista da sua tradição cultural.

No contexto do cinema produzido em Portugal, ressalta um período histórico singular, a partir dos anos 1960, que precisamente constitui um cânone no cinema português. É aceite, no contexto desta pesquisa, a centralidade do movimento novo cinema

português. Para além deste, surge outro que se introduz apenas nos anos 1980: o de escola portuguesa. Sabemos que ambos são conceitos particularmente frágeis se os levarmos à

letra: isto é, a existência de um corpus de filmes com características comuns que se consubstanciaram numa escola cinematográfica. Para além disso, os conceitos pressupõem uma particular formulação nacional, o que também poderá ser problemático, já que não abrem a produção deste período a um necessário trânsito internacional. Contudo, como

veremos, a ideia de um novo cinema português111 pressupõe um determinado conjunto de autores e de filmes que, de facto, partilham algumas aspetos produtivos, temáticos e estilísticos. Generalizando, estes filmes têm em comum, sobretudo, uma visão dita moderna do cinema, e assumem a primazia dos realizadores enquanto autores da obra cinematográfica. De certa forma, esta nova vaga partilha dados formais e produtivos com o modelo do cinema de arte europeu: certos elementos estilísticos ou narrativos, mas também formas de produção e relações económicas com o Estado. Formou-se, assim, um núcleo nacional cujo discurso cultural se aproxima de outras cinematografias. Em termos genéricos, a ideia que preside a estes anos, foi explorada numa célebre frase do cineasta Paulo Rocha (cit. in Lemière, 2006, p. 747):

“Não há mercado, não há indústria, quase não há produtores. Mas há bons técnicos e bons actores, e uma dúzia de realizadores com imaginação e rigor, que estão habituados a correr riscos. Não há censura, não há modelos, cada filme é uma aventura solitária, laboriosa, obsessiva. Neste ambiente nascem obras inesperadas, mais líricas do que dramáticas, hesitando entre os fantasmas do passado e as tentações da arte moderna”.

Esta afirmação leva mesmo Paulo Filipe Monteiro (2004, p. 36) a notar que “em contradição com a ideia de escola, embora em continuidade com o modo como Rocha desde o início a definiu, [uma escola portuguesa define-se] como grande possibilidade de existência e visibilidade dos individualismos que de facto permitiram tantos filmes inesperados da nossa cinematografia”.

Neste contexto, devemos agora olhar os dois conceitos sob o ponto de vista histórico, vendo como eles foram sendo elaborados pela historiografia nacional. Por um lado, a escola portuguesa assumiu-se como um conjunto específico de autores e de filmes que se projetou no circuito de exibição internacional, no final da década de 70 e nos

111 Utilizamos neste trabalho a expressão novo cinema, em vez de cinema novo, já que parece ter vingado no discurso académico. Os antecedentes históricos de ambas as expressões foram extensamente discutidos por Paulo Cunha (2005, pp. 16–40). O investigador demonstra que a expressão novo cinema pretende ser mais abrangente (precedendo mesmo a estreia de Os Verdes Anos e inicialmente marcada por oposição a um velho

cinema) enquanto a expressão cinema novo é mais marcada por uma historiografia da Cinemateca Portuguesa

(cujo cânone de filmes é mais exíguo). Segundo Paulo Filipe Monteiro (1995, pp. 655–656) – talvez o investigador que inicia o atual predomínio da expressão novo cinema –, a diferença entre as duas expressões também marca a distinção entre o movimento português e o movimento brasileiro, e até nas suas caraterísticas temáticas mais consagradas: no primeiro caso, o novo cinema português é marcado pelas influências da nova vaga francesa e um trabalho pelo cinema de arte, enquanto no cinema novo brasileiro há um cinema influenciado por um conteúdo político. Sobre esta distinção ver também Seabra (1988b, p. vii).

primeiros anos da década de 80; por outro lado, o novo cinema português é um movimento amplo que surge nos anos 60 e que se consubstanciou, para além dos filmes, na colocação estratégica de um conjunto de autores e técnicos nos lugares-chave da cinematografia portuguesa. Este novo movimento nasce de um conjunto de circunstância históricas e culturais e ficou marcado por um acontecimento fílmico no início dos anos 60: Os Verdes

Anos (1963), de Paulo Rocha. O filme e o ano – segundo João Mário Grilo (2006, p. 19), o

“ano de 1963 configura, pois, um momento charneira na história do cinema português, cheio de novidades extremas e quase irreversíveis” – são marcos simbólicos, já que escondem um conjunto de fenómenos políticos e culturais que permitem a chegada da nova vaga112. Aliás, foi sendo discutido, ao longo dos anos, qual o primeiro filme do novo

cinema português113, pondo em discussão filmes diversos como Saltimbancos (1951), de Manuel Guimarães, Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa, ou mesmo Pássaros de Asas

Cortadas (1963), de Artur Ramos. Como veremos, o novo cinema será feito precisamente

também contra este cinema. Neste contexto, tem sido também discutida a importância de

Acto da Primavera (1963), de Manoel de Oliveira (que abordaremos de seguida), enquanto

referência tutelar dos novos cineastas. No entanto, o cânone historiográfico advoga que o início do movimento é marcado pela estreia do filme de Paulo Rocha, como acentua Bénard da Costa (1991, pp. 118–119):

“Seja como for, nesse ano de 1963 o cinema novo aconteceu. E aconteceu com Os Verdes Anos de Paulo Rocha. Com ele e com esse filme o cinema português voltava a afirmar-se como portador de um imaginário específico. Belarmino de Fernando Lopes, em 1964, continuou-o. Após anos de «apagada e vil tristeza» voltava a existir cinema em Portugal e voltava a existir Portugal para o cinema. E, como sucedera nos anos 30, nos dez anos que vão de 1963 a 1973, tudo mudou e tudo se modificou. Novos cineastas, novos técnicos, novos actores. Durante dez anos coexistiram, é

112 Entre os quais: a política de concessão de bolsas do Fundo de Cinema, com uma nova direção de César Moreira Baptista (desde 1958); a degradação continuada do velho cinema português, consubstanciada no ano de 1955 (o ano zero do cinema português, em que não foi produzida qualquer longa-metragem); a posição de destaque dos cineclubes durante a década de 50; a emergência e consolidação do neorrealismo português (sobretudo no campo literário); alguns filmes documentais realizados pelos novos cineastas; o I Curso de Cinema no Estúdio Universitário de Cinema Experimental (da Mocidade Portuguesa); a criação da Cinemateca Portuguesa; ou até mesmo uma vontade de renovação que surgiu da crítica de cinema (cf. Costa, J. B. da, 1991, pp. 111–119; Cruchinho, 2001, pp. 215–240; Cunha, P., 2005, pp. 45–55; Grilo, 2006, pp. 17– 19; Monteiro, 1995, pp. 638–654; Pina, 1986, pp. 134–142; Sales, 2010, pp. 113–166).

113 Para uma revisão crítica da discussão sobre o filme que iniciou o novo cinema português, ver Paulo Filipe Monteiro (1995, pp. 656–662).

certo, com o «estrebuchar» da velha guarda. Em 73, nas vésperas da Revolução de Abril, conquistavam o poder. Ainda hoje o mantêm”.

A novidade de Os Verdes Anos estava num conjunto bastante amplo de técnicos, atores, criadores que, com esse filme, se estreavam no cinema português, como refere o produtor António da Cunha Telles em entrevista citada por João Mário Grilo (2006, p. 19) explicando que a frescura do filme “(...) ficava a dever-se à condição de «virgem» da equipa que nele tinha trabalhado: «(...) nos Verdes Anos todos os membros da equipa, desde o eletricista ao realizador, estavam a fazer o primeiro filme... (...) Quando hoje se volta a ver

Os Verdes Anos sente-se alguma fragilidade, mas, ao mesmo tempo, sente-se um sopro que

vem da sinceridade e do entusiasmo com que o filme estava a ser feito»”. Na verdade, o filme de Paulo Rocha será o primeiro sinal de um conjunto de obras que foram possíveis no contexto das Produções Cunha Telles, uma produtora de António da Cunha Telles que desenvolve vários filmes do novo cinema português – para além de Os Verdes Anos, também

Belarmino (1964), de Fernando Lopes; Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo; Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha; e Sete Balas para Selma (1967), de António de

Macedo114 –, assim como um conjunto de coproduções francesas, de filmes de Pierre Kast,

François Truffaut ou As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó. Como dirá mais tarde Luís de Pina (1986, p. 148), os filmes das Produções Cunha Telles anunciavam um novo cinema:

“Feitos praticamente sem apoio oficial, independentes do ponto de vista criativo, buscando uma expressão estética diferente, mais moderna e mais próxima do nosso quotidiano, os filmes de Cunha Teles eram sobretudo uma aposta corajosa e integralmente assumida, um risco total, um projeto quase suicidário. E, no entanto, foram eles o cinema português mais vivo dos anos 60, apesar da sua fragilidade e do seu compromisso total com o desconhecido. Havia, quer se quisesse quer não, um novo cinema português, uma outra visão do filme. Tudo viria, praticamente, a sair desse grupo de jovens reunidos à sua volta”.

Nesse sentido, o movimento inicial do novo cinema português marca também um particular programa de cinema, como declara João Mário Grilo (2006, p. 19) ao afirmar que

114 O filme Sete Balas para Selma é um híbrido, promovido no final das Produções Cunha Telles (e apenas parcialmente produzido por esta produtora), de forma a combinar o cinema de autor com o cinema comercial. No entanto, foi muito mal recebido pelos novos cineastas, com destaque para uma virulenta crítica de João César Monteiro (cf. Costa, J. B. da, 1991, p. 127; Grilo, 2006, p. 21).

Os Verdes Anos “é ainda fruto de um outro modo de conceber a vida e as matérias do

cinema, como partes indissociáveis de uma mesma totalidade; (...) é a primeira resposta global ao cinema do passado, com a mesma coerência, mas pondo em cena uma filosofia radicalmente oposta”. Da mesma forma, M. S. Fonseca (1993, p. 1) dirá sobre o mesmo filme, que ele é caracterizado como novo, porque “quer nomear-se mais do que a simples circunstância da estreia, significando-se o início efetivo de uma nova concepção de prática cinematográfica em Portugal, desde os processos de produção até a uma compreensão da

mise-en-scène que viria a repor o entendimento do cinema como um fim em lugar do meio

que quase tinha sido em Portugal”. Talvez Paulo Rocha (cit in. Monteiro, 1995, pp. 664– 665), de novo, tenha sido o melhor a colocar a questão, quando definia o princípio orientador do seu filme que, como veremos, também poderá ser aplicado a todo o novo

cinema português: “normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação

à mise-en-scène. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o décor e a personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que lhe davam o seu peso e a sua importância”.

Para além disso, esta nova geração, simbolizada por Paulo Rocha, tinha uma referência tutelar: Manoel de Oliveira, que acabara também de fazer um filme radical, Acto

da Primavera – aliás, num momento de particular reentrada de Oliveira no universo do

cinema português, já que realiza, no mesmo ano, a curta-metragem A Caça (1963); esta dupla de filmes será mesmo o prenúncio da obra sequente do autor e do seu entendimento do cinema como registo audiovisual de uma representação (Seabra, 1988a, p. 14), promovendo uma mistura híbrida de registos ficcionais e documentais; finalmente, inaugura, como alguns autores propõem115, a entrada do cinema moderno em Portugal. Como bem resume Tiago Baptista (2008, p. 84): “os novos realizadores adoptaram Manoel de Oliveira como figura tutelar. (...) Para muitos realizadores portugueses, e para outros no resto do mundo, Oliveira simbolizaria por isso um cinema radicalmente moderno, feito sem concessões às fórmulas do cinema de entretenimento”. Paulo Cunha (2005, p. 169) diz

115 Para João Mário Grilo (2006, p. 20), “com o Acto da Primavera, e quase vinte cinco anos depois de Douro, Oliveira instalava-se, de novo, na vanguarda do cinema mundial, demonstrando um génio que a deplorável situação da cinematografia portuguesa continuava longe de justificar”; Carolin Overhoff Ferreira (2008, p. 9) também afirma que Acto da Primavera é “de fato uma obra-prima que introduz na cinematografia portuguesa uma ousadia formal e uma preocupação social até então inexistentes”; José Manuel Costa (2004, p. 127) acrescenta que o filme é “a inauguração de uma ficção moderna sobre a ideia do desdobramento de registos, ou seja, de leituras”.

mesmo: “Para os defensores incondicionais de um cinema de autor mais formalista, o exemplo do percurso cinematográfico de Manoel de Oliveira assumia o carácter de mito”.

No entanto, o primeiro sopro do novo cinema português terminava com a falência das Produções Cunha Telles116 e apenas alguns projetos individuais vão acontecendo entre o

final dos anos sessenta e o início dos anos setenta117. Carolin Overhoff Ferreira (2013, p.

47) identifica, a partir desta altura, um “crescente pessimismo” e para o crítico Augusto M. Seabra (1989, p. 6), o fim deste primeiro momento do novo cinema é um marco decisivo na construção do paradigma da originalidade do cinema português porque há um choque, nunca mais recuperado, dos autores com um público que não os reconhece e, nesse sentido, todo o cinema subsequente “pode ser interpretado como uma recusa constante e recíproca entre o cinema e a sociedade portuguesa”.

O momento de tensão com o fim da casa de produção de Cunha Telles, obriga o grupo de cineastas a reagir e a procurar uma forma de financiamento alternativo. A via encontrada seria a Fundação Gulbenkian, uma fundação privada que mudara o panorama artístico português desde que o início da sua atividade em 1956118. Obrigados a responder às solicitações da Fundação, o grupo de realizadores preconiza um documento-análise à situação e às necessidades futuras. Esse documento, hoje essencial ao entendimento da proposta radical deste grupo, é O Ofício do Cinema em Portugal119 (Costa, J. B. da, 2007, pp.

61–64), última etapa antes da criação do Centro Português de Cinema (organismo que receberá o financiamento da Fundação Gulbenkian, e que será conhecido como a estrutura decisiva para os Anos Gulbenkian). Este documento afirmará a necessidade do controlo

116 Como diz João Mário Grilo (2006, p. 21), “no interior das Produções Cunha Telles a atmosfera azeda bastante pelo idos de ‘67 (um pouco pela grande falta de dinheiro, um pouco também pela discordância entre produtor e realizadores sobre o destino a dar ao que ia aparecendo)”; João Bénard da Costa (1991, p. 125) acrescenta: “Apesar do relevo histórico e artístico destas obras [os filmes produzidos por Cunha Telles], nenhuma logrou qualquer sucesso comercial e, apesar do seu baixo custo, todas fizeram perder dinheiro”. 117 A primeira realização de António da Cunha Telles (O Cerco, 1970) ou o segundo filme de Fernando Lopes (Uma Abelha na Chuva, 1972).

118 Segundo Bénard da Costa (1991, p. 128): “Rapidamente [a Gulbenkian] se tornou num estado dentro do Estado e a sua acção (sobretudo nos campos da música e das artes plásticas) transformou por completo o cinzento panorama da vida artística portuguesa”.

119 O documento foi resultado da discussão proporcionada pela Semana de Estudos sobre o Novo Cinema

Português, organizada pelo Centro Português de Cinematografia (Cineclube do Porto) e entregue em abril de

1968 à Gulbenkian por um grupo de cineastas composto por: Alfredo Tropa, António de Macedo, António- Pedro Vasconcelos, Artur Ramos, Ernesto de Oliveira, Manoel de Oliveira e Paulo Rocha. O documento em si seria assinado por vinte cineastas (cf. Costa, J. B. da, 2007, pp. 7, 12). Utilizamos aqui a versão reproduzida no livro Cinema Português: Anos Gulbenkian (Costa, J. B. da, 2007, pp. 61–64). Sobre a relação da Fundação Gulbenkian, o novo cinema português e o Centro Português de Cinema ver também o texto de Paulo Cunha (2005, pp. 62–92).

criativo dos realizadores sobre os seus filmes, utilizando, para reafirmar essa liberdade, a expressão “autores-realizadores” para se designar. O Ofício prova, em alguns dos seus pontos, a conceção de cinema de arte que este grupo advogava ao exigir à Fundação um respeito pela “livre iniciativa da criação cinematográfica, não acrescentando novos condicionalismo aos já existentes (censura, por exemplo)”, e, por isso, a “acção do Centro no ciclo da produção, a verificar-se, deverá confinar-se a um auxílio material, abstendo-se de tudo o que possa representar limitação ao caminho livremente escolhido pelos autores- realizadores” (in Costa, J. B. da, 2007, p. 63). No texto, também já se depreendia a dificuldade económica da aventura de fazer um cinema difícil para o público: “O Cinema pelo qual vale lutar é um cinema condenado, ainda durante muito tempo, ao insucesso financeiro: o cinema de qualidade” (in Costa, J. B. da, 2007, p. 63). Um grupo bastante heterogéneo “de tendências estéticas diversas, mas com um núcleo sólido (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, Fonseca e Costa, Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos) com apetência e capacidade de poder” conseguia, assim, lançar as bases para um programa coerente de apoio ao cinema, um programa aliás que o Estado Português também terá lido na preparação da futura lei do cinema (Costa, J. B. da, 1991, pp. 130– 131).

O primeiro conjunto de filmes do Centro Português de Cinema não deixa de ser impressionante e em finais de 1970 estão em produção ou vias de começar sete filmes120, integrantes do I Plano. Como dirá mais tarde Fernando Lopes (cit. in Monteiro, 1995, p. 679), com a entrada da Gulbenkian no cinema português, os cineastas da geração anterior (dos anos 50) “compreenderam que tinham perdido a partida. Penso aliás, que sem a Gulbenkian, o esforço da primeira fase do «Cinema Novo» se teria gorado completamente, por pura falta de continuidade”. A consistência dos Anos Gulbenkian estava mesmo na possibilidade da constituição de um corpo alargado de filmes, como afirma Lopes (cit. in Monteiro, 1995, p. 677): “A importância do CPC está na produção contínua que foi capaz de pôr de pé. Reparem que desde os anos 30, 40, o cinema português não tinha um «corpus».

120 São eles: Pedro Só (1972), de Alfredo Tropa; O Recado (1972), de José Fonseca e Costa; Perdido Por Cem... (1973), de António-Pedro Vasconcelos; O Passado e o Presente (1972), de Manoel de Oliveira; Vilarinho das

Furnas (1970), de António Campos; Pousada das Chagas (1972), de Paulo Rocha; e Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1970), de João César Monteiro. Para além destes, o II Plano contemplará filmes de

António de Macedo, António da Cunha Telles, Alberto Seixas Santos, Fernando Matos Silva, João César Monteiro e António Reis.

E com o CPC e a Gulbenkian, em três, quatro anos, aparecem uns dez, doze filmes, se não mais”.

Num dos momentos oficiais de apresentação dos primeiros filmes produzidos pelo CPC e pela Gulbenkian, em fevereiro de 1972, Fernando Lopes, perante uma assistência em que estava incluído o Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, proferirá um famoso discurso: “Hoje, que o cinema passou o seu meio século de existência e quando nomes como os de Griffith, Eisenstein, Murnau, Dreyer, Rossellini, Bergman, Jean Renoir ou Godard se contam entre os valores mais importantes da cultura ocidental, ao lado de Joyce, Picasso e Stranvinsky, nós, portugueses e cineastas, começamos a ver, com mais claridade e confiança, o cinema como facto cultural, reconhecido pública e oficialmente”121

(cit. in Costa, J. B. da, 2007, p. 28). Comentando esta sessão, Bénard da Costa (2007, p. 28) dirá também: “Era a consagração da vitória do cinema novo português, no duplo sentido em que o consagrava na Gulbenkian e o consagrava junto das entidades oficiais que não puderam de estar presentes.” Ou seja, “25 de Fevereiro de 1972 pode ser considerada, simbolicamente, a data da «tomada de poder»” (Costa, J. B. da, 1991, p. 135; cf. Lemière, 2006, pp. 739–740).

João Mário Grilo faz um resumo da importância destes anos, ressaltando um conjunto de novos autores e do apoio específico da Gulbenkian, que, na sua opinião, pressupõe também, como uma das causas primeiras para o triunfo do novo cinema português, o “divórcio estabelecido e substanciado entre produtores e realizadores (consagrado na fundação do Centro Português de Cinema, verdadeira cooperativa de autores), que permanecerão de costas voltadas uma boa dezena de anos” (Grilo, 2006, p. 22). Ainda segundo o mesmo autor, a nova geração incluída no CPC “procede de uma cultura cinéfila, de uma habituação do olhar às salas de cinemateca europeias, e de um entendimento do cinema como uma experiência artística e estética vivida em plenitude” (Grilo, 2006, p. 23).

Outros fatores vão consubstanciar a vitória institucional dos cineastas da nova vaga, através de elementos-chave de uma política de cinema em Portugal. O mais importante