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Discutindo o nacional do cinema nacional

Capítulo 2 – Do novo cinema ao cinema contemporâneo: a questão da identidade nacional no cinema português

2.1 Cinema e identidade nacional: o quadro conceptual do cinema nacional

2.1.1 Discutindo o nacional do cinema nacional

Depois da revisão crítica dos problemas que decorrem da categorização de um cinema nacional, devemos agora olhar a maneira como os filmes de determinado contexto de um Estado-nação enunciam o nacional, como o tematizam através de representações nacionais que, como sabemos, são complexas e discrepantes. É óbvio que a enunciação deste nacional se faz pela diferença, como já notámos, em relação a um outro. Mas, para além disso, tendo em conta que os filmes estão incluídos em determinado espaço cultural, eles integram-se com os diferentes elementos culturais de uma comunidade imaginada, como propõe Benedict Anderson. Isto é, o cinema reforça ou questiona a identidade cultural, por métodos complexos, numa determinada comunidade nacional, estabelecendo marcas distintivas na paisagem sociológica e relacionando-se com tradições culturais diversas. É nesse contexto de elo de ligação de uma comunidade imaginada que o cinema é visto por Robert Stam e Ella Shohat (1994, pp. 101–104), no seu importante estudo sobre a desconstrução dos discursos ocidentais. Na esteira do romance ou do jornal como formas de narração da comunidade, o cinema, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, funciona como um meio de comunicação essencial para fazer a narrativa da nação, muitas

vezes a partir do ponto de vista histórico75, como aliás, acentuam os dois autores (1994, p. 102):

“os filmes de ficção (...) herdaram o papel social do romance realista do século XIX em relação aos imaginários nacionais76. (...) Os filmes comunicam o «tempo do calendário» de Anderson, uma sensação do tempo e da sua passagem. Assim como as ficções literárias nacionalistas inscrevem, numa multitude de acontecimentos, a noção de um destino linear e compreensível, também os filmes organizam acontecimentos e ações numa narrativa temporal que se desloca para um destino, e assim configura o pensamento acerca do tempo histórico e da história nacional”.

Para além disso, os dois autores demonstram que este tipo de narração pode ser feita a partir dos modelos dominantes da identidade nacional, revelando as estruturas de poder hegemónicos e os seus imaginários77. Sendo assim, o cinema participa da construção de um imaginário nacional, e o seu caráter visual permite-lhe ser enunciador de marcas culturais de determinada nação. Neste contexto, por exemplo, podemos entender a posição de Siegfried Kracauer, num texto já datado, a partir da análise do cinema alemão de entre- guerras que já mencionamos atrás78. Para o autor, é possível estabelecer uma relação entre o cinema produzido em determinada nação com um certo espírito coletivo: “O que os filmes refletem não são simplesmente credos explícitos mas disposições psicológicas – aquelas camadas profundas da mentalidade coletiva que se estendem a uma dimensão inferior da consciência” (Kracauer, 2004, p. 6)79. A ideia que presidia ao trabalho de Kracauer era, assim, fazer notar certas representações culturais que emanavam de um conjunto de filmes. Para Philip Rosen (2006, pp. 18–21), o método de Kracauer é interessante porque

75 Este ponto de vista histórico é também acentuado por Philip Rosen, quando caracteriza um cinema nacional a partir de uma “intertextualidade à qual se pode atribuir um certo peso histórico” (Rosen, 2006, p. 17).

76 Stam e Shohat (1994, p. 103) afirmam que o cinema transforma a função do romance na comunidade imaginada, a partir do ponto de vista do espectador: “o cinema pode mobilizar, de forma mais eficiente, o desejo de forma mais sensível a noções nacionalizadas e imperializadas de tempo, enredo e história. O ritual institucional do cinema juntando uma comunidade – espectadores que partilham a mesma região, língua, e cultura – torna-se homólogo, em certo sentido, da reunião simbólica da nação”.

77 Noutra escala, e já numa leitura pós-colonial, Stam e Shohat (1994, pp. 102–103) olham para a relação entre o cinema e o imperialismo, reforçando leituras do olhar ocidental e a sua comunidade imaginada como posição dominante de poder entre o centro europeu e as periferias das colónias.

78 Segundo Philip Rosen (2006, p. 19), o estudo de Kracauer permite traçar, em diversos filmes, “um tema dominante no coração da mentalidade coletiva alemã do entre-guerras: uma mentalidade de rejeição de um real concreto polivalente e indecidível, e o fascínio resultante com um autoritarismo cuja alternativa é figurada como caos”.

permite uma análise intertextual entre diversos filmes, relacionando-os tematicamente. O argumento de Kracauer baseia-se em “assuntos compulsivamente repetidos, que surgem ao longo de todos os níveis dos filmes de uma nação – desde o cinema «artístico» auto- consciente até ao mais orientado para as massas –, e que são sintomas de uma «mentalidade coletiva, uma «vida interior» partilhada” (Rosen, 2006, p. 19). Estes assuntos estão presentes tanto em elementos diegéticos, como na forma e no estilo destes filmes. Rosen, no entanto, sublinha que Kracauer propõe a existência de uma classe média dominante como uma premissa inicial80: “[a] existência de uma classe culturalmente

dominante, ou uma classe dominante na cultura, cuja coerência social e psicológica pode ser alegada e depois emprestada à sociedade como um todo, é o que sublinha a coerência que Kracauer exige para a sua leitura destes filmes” (Rosen, 2006, p. 20)81. Assim, o

cinema nacional – na sua multiplicidade de visões e características – pode convocar uma comunidade cultural, tornando-se dominantes certas análises intertextuais, quer a partir de relações entre o cinema e outros artefactos culturais, quer a partir de um conjunto de filmes. Esta última hipótese é interessante porque relaciona filmes de um determinado momento histórico, olhando o que eles têm em comum, mas também deve ser compreendida com certo cuidado de análise, porque deve suspeitar-se, a todo o momento, de discursos críticos que pretendem uniformizar e canonizar o cinema nacional ou até a forma como o cinema constrói consensos identitários que promovem a formulação de discursos nacionalistas. Como acentua Andrew Higson (2002, pp. 61–62), na sua conceptualização do cinema nacional, é necessário enquadrá-lo numa determinada identidade cultural: nesse aspeto, devem ser analisados os conteúdos e os temas de um corpo de filmes, procurando ver quais as representações propostas e os discursos dominantes; isto é, “as formas como o cinema se introduz ao lado de outras práticas culturais e as formas como se coloca em histórias e tradições culturais pré-existentes da nação produtora, reformulando-as em termos cinemáticos e apropriando-as para construir as suas próprias convenções genéricas” (Higson, 2002, p. 62). Para além disso, Higson também acentua outros elementos a considerar nesta análise: a visão de mundo expressa

80 Kracauer coloca-o do seguinte modo: “Na Alemanha pré-Nazi, tendências de classe média penetraram todos os estratos; elas competiam com as aspirações políticas da esquerda e também preenchiam os vazios do espírito de classe alta. Isso explica uma atração nacional do cinema alemão – um cinema firmemente enraizado na mentalidade da classe média” (Kracauer, 2004, p. 8).

nesses filmes, o seu estilo, o seu “sistema formal de representação”, e as formas de construção da subjetividade (Higson, 2002, p. 62).

Em termos metodológicos, será necessário avançar na questão, procurando tipologias ou desenvolver, como Susan Hayward (2005, p. 8) designa, uma “cartografia do nacional”. É este o ponto de vista das investigações de Mette Hjort (2005, pp. 95–109), quando declara que há formas diferentes de tematizar a nação: por um lado, considera que, normalmente, a nação é trazida para primeiro plano através de elementos de nacionalismo banal82, isto é – e utilizando o cinema dinamarquês83 como exemplo –, “locais

dinamarqueses, a língua dinamarquesa, atores dinamarqueses e adereços que espelhem a cultura material dos dinamarqueses, qualificam-se como sendo sobre a Dinamarca” (Hjort, 2005, p. 99). Nesse sentido, para tematizar a nação num filme é necessário que estes elementos sejam sinalizados e destacados. Não o sendo, passarão certamente despercebidos para uma audiência nacional84. No entendimento de Hjort (2005, pp. 102– 108), para o nacional ser tematizado é necessário que o realizador dirija a atenção para elementos nacionais85. É neste sentido que Susan Hayward86 também destaca a função das narrativas na construção de um cinema nacional. Isto é, a construção de uma dimensão nacional faz-se através de narrativas, como aliás foi trazido à discussão quando abordamos o conceito de comunidades imaginadas e a proposta de Bhabha em relação à narração da

nação. Esta narrativa serve como construção de uma história e de representações culturais,

que assim adquirem uma formatação lógica e dramática. Nesse sentido, o nacional pode

82 O conceito de nacionalismo banal foi desenvolvido por Michael Billig. Para o autor (cf. 1995, pp. 6–8), as nações ocidentais têm hábitos enraizados para reproduzir a nação. Esses hábitos estão inculcados em práticas quotidianas e invisíveis em que a nação é sinalizada. Para Billig, esta banalidade não é benigna porque pode ser usada politicamente com propósitos conservadores. Para além disso, este nacionalismo banal é continuamente lembrado por sinais aparentemente inócuos: “a imagem metonímica do nacionalismo banal não é a bandeira que é ondulada conscientemente e com ardente paixão; é, pelo contrário, a bandeira suspensa num edifício público” (Billig, 1995, p. 8).

83 Curiosamente, como refere Hjort (2005, p. 100), são estes elementos de um nacionalismo banal que os institutos de cinema nacional reclamam quando se referem à necessidade de um cinema nacional que apresente questões nacionais. Já assinalámos esta questão atrás, reproduzindo um extrato da lei do cinema portuguesa.

84 Ainda que uma audiência internacional os possa estranhar e dar-lhes uma forma nacional marcada.

85 Ao detalhar esta questão, Hjort (2005, pp. 102–108) propõe que, por um lado, essa tematização pode constituir-se de forma “monocultural hipersaturada”, quando se coloca, de forma sistemática, elementos oficiais da cultura nacional; por outro, a tematização pode ser formada a partir de uma “interculturalidade contrastante”, quando há uma focalização em diferentes culturas nacionais, colocando a atenção nas diferentes especificidades nacionais.

86 Susan Hayward (2005, pp. 8–16) desenvolve um conjunto de sete tipologias que auxiliam a caracterização da enunciação do nacional de um cinema, organizando certos aspetos formais e narrativos que colaboram na formação de imaginários nacionais.

surgir no cinema a partir das narrativas fílmicas, como um reflexo, isto é, organizando as significações de um imaginário cultural e promovendo a sua explicação.

Nesse sentido, é norma o cinema nacional adaptar textos literários, fazendo uma “reinscrição de um artefacto cultural existente no texto fílmico”, num processo que Hayward designa como “uma dupla nação-narração” (Hayward, 2005, p. 9). Para além da adaptação, a narrativa fílmica pode fazer uma construção textual da nação, que tanto pode ser explícita como implícita. No primeiro caso, a narrativa constrói-se para significar a nação e, ao trabalhar num registo histórico, implica um reforço da mitologia dominante (o que por vezes pode ter um sentido quase propagandista); no segundo, as narrativas constroem a nação implicitamente, em sentido conotativo e, dessa forma, há uma

construção da mitologia, embora ela possa ser propagandista ou subversiva87 (Hayward, 2005, pp. 9–10). Para a autora (2005, pp. 8–13), outros elementos cinematográficos trabalham características nacionais específicas, como o género cinematográfico88; os códigos e convenções89; a gestualidade e a morfologia90; ou a estrela de cinema91. Finalmente, do ponto de vista de Hayward (2005, pp. 13–14), há um binómio inescapável nas relações entre um cinema do centro e um cinema da periferia; na verdade, este binómio tem diversas camadas em que as posições se reconfiguram: num primeiro patamar, o cinema de Hollywood funciona como o centro e os diferentes cinemas nacionais como periferia92; no entanto, num segundo patamar, o cinema nacional pode funcionar como centro em relação a um cinema de autor que se desenvolve no contexto da produção nacional. Este centro nacional opera a partir de investimentos similares aos de Hollywood,

87 Há, nesta formulação, uma proximidade óbvia entre Hayward e Hjort, no que diz respeito à forma como a organização narrativa e visual sinaliza a nação.

88 O cinema de género, com ímpeto popular, desenvolveu-se também a partir de certos modelos nacionais (Hayward, 2005, p. 10); isto é, há determinados géneros que são exclusivos de um cinema nacional, sobretudo a partir de convenções e modos de produção autóctones (cf. também Elsaesser, 2005, p. 485). 89 Aqui refere-se aos modos de produção e à “iconografia da imagem”: as representações que os filmes nacionais convocam, isto é, permitindo ver aquilo que eles mostram, mas também aquilo que escondem (acentuando um binómio de presença/ausência). Assim, as representações convocam mitos homogeneizantes e conciliatórios do contexto nacional (Hayward, 2005, pp. 10–11)

90 Para a autora, há um conjunto de gestualidades e morfologias do corpo que são características de determinado contexto cultural: uma “tradição performativa” do cinema nacional (Hayward, 2005, p. 12). Aliás, Hayward sugere ser possível que os códigos da gestualidade possam ser mais específicos que os narrativos.

91 As estrelas de cinema têm características próprias em diferentes contextos culturais (espaciais e temporais); nesse sentido, na forma como as estrelas funcionam como intermediários entre o real e o imaginário, elas são também signos dos contextos nacionais (Hayward, 2005, pp. 12–13).

92 Hayward também assinala que o cinema em si – enquanto dispositivo tecnológico homogeneizador – representa um centro de práticas produtivas estandardizadas, para o qual as especificidades nacionais funcionam como periferias.

mas cuja penetração não ultrapassa o mercado nacional. Funcionam em parceria com a televisão e formam discursos de homogeneização do cinema nacional. Este cinema acaba por se colocar no centro do cinema nacional, mantendo relações com os cinemas periféricos (em relação ao cinema do centro nacional), normalmente entendido como cinema de autor ou vanguardista (que por vezes se normaliza e chega também a ser cinema do centro). Como afirma Hayward: “esta tipologia permite assinalar que não há um cinema único que possa ser o cinema nacional, mas diversos. Nesse sentido, permite ultrapassar o perigo do historicismo que identifica o cinema nacional com um conjunto de movimentos ou realizadores específicos e sugere, por outro lado, que existe um fluxo, mesmo um deslizamento, entre os diversos cinemas que constituem o cinema da nação” (Hayward, 2005, p. 14).

Levando em conta as tipologias anteriores, percebe-se que o cinema convoca e joga com as dinâmicas sociais de uma nação. Para além disso, os discursos entre centro e periferia produzem diferentes formas de ativar ou criticar os mitos que configuram uma nação. Para Hayward (2005, p. 15), o cinema do centro “na sua reconstrução [da nação] proporciona, principalmente, transparência hegemónica”, enquanto o cinema da periferia “desafiará, ou mesmo desconstruirá, essa transparência e essa hegemonia”. No entanto, como atrás referimos, não é possível afirmar um carácter fixo destes diferentes cinemas, porque em alturas distintas eles estabelecem pontos de centralidade diferente, mas também relações diferentes com os mitos populares da cultura nacional. O cinema nacional é, nesse sentido, historicamente instável.

Como se antevê, há dinâmicas nos filmes produzidos em contexto nacional que ultrapassam as barreiras nacionais, porque fazem parte de práticas internacionais do cinema. Será nesse equilíbrio entre práticas nacionais e internacionais que se podem estabelecer pontos de análise temporários a um cinema nacional. Como a análise precedente confirma, o nacional de um cinema nacional coloca-se a partir de diversos elementos no interior dos textos fílmicos, assim como hierarquias de poder em relação à cultura nacional. Podemos, então, assumir de que os filmes produzidos em determinado contexto nacional falam sobre a nação a partir das suas narrativas e convenções cinematográficas (estrelas, géneros e estilos). Os seus temas, para além de um nacionalismo banal, convocam diferentes questões nacionais e introduzem-se num diálogo no interior da identidade cultural. Muitas vezes, como adverte Higson (cf. 2002, pp. 62–

63), as complexas dinâmicas culturais de uma determinada sociedade podem ser postas em causa a partir de processos de “hegemonia cultural” (como aliás já vimos quando falamos da criação de cânones) que podem impor visões unívocas da identidade nacional. Estas posições, como aliás é acentuado na elaboração de Hayward, provocam, necessariamente, uma transformação histórica em diferentes momentos das vidas culturais nacionais.

Esta dimensão nacional e cultural no cinema – quer do ponto de vista narrativo e temático, quer a partir de um conjunto de práticas estilísticas – é, assim, realizada a partir de representações nacionais que, muitas vezes, tomam a forma de uma grelha alegórica: um determinando contexto subjetivo fala para um contexto nacional a partir de uma extrapolação textual e estilística, um processo de codificação cultural. A construção deste conceito – a alegoria –, no cinema, é por exemplo93, desenvolvido por Ismail Xavier94

(2004, 2012). Como acentua o autor, a alegoria é um recurso textual que permite mediar a experiência humana no decorrer do tempo histórico e, nesse sentido, ganhou especial relevância na modernidade por ser um recurso com uma especificidade cultural importante: “a alegoria colocou-se em primeiro plano e uma das razões para o seu despertar nos tempos modernos é o facto de ter sido sempre o processo significante mais identificado com a presença da mediação, e com a ideia de artefacto cultural que requere quadros de referência específicos para ser lido, muito distante de qualquer sensação de «naturalidade»” (Xavier, 2004, p. 333). Neste sentido, o investigador aborda especificamente a alegoria nacional no cinema nas suas diversas abordagens durante a história do cinema, procurando precisamente fazer uma compreensão cultural das “vidas privadas como representativas dos destinos públicos” (Xavier, 2004, p. 335). Para além disso, a alegoria serve como meio de velar significados ocultos, ultrapassando regimes censores e autoritários.

Do ponto de vista histórico, a alegoria permite fazer uma aproximação do passado como leitura do presente e, nesse sentido, pode ser usado com uma função totalizante do nacionalismo, como aliás já tinham assinalado Stam e Shohat. Aliás, Xavier promove uma curiosa análise da história do cinema, a partir das suas primeiras décadas (1910 e 1920),

93 A alegoria nacional tem sido utilizada como categoria de análise textual. Um dos casos mais interessantes foi a leitura executada por Fredric Jameson (1986) no contexto dos textos do terceiro-mundo.

94 A complexidade da análise alegórica no cinema, na elaboração de Xavier (2004, p. 337), exige um “gesto cultural de focos múltiplos” porque se desenrola não só através da sucessão dos planos, numa construção narrativa, mas também nos “efeitos verticais das composições visuais ou os códigos culturais integrados na banda sonora”.

nas quais os filmes funcionavam como mais um instrumento tecnológico e ideológico para um combate entre nações. Para o autor, o espetáculo visual destes primeiros filmes converte-os numa espécie de monumentos: uma leitura possível pela sua escala desmedida na construção de cenários arquitetónicos, mas também pelo excesso estilístico95. Nestes

filmes, as “alegorias nacionais apresentam visões totalizantes da história, combinando dramas privados e assuntos públicos”, criando ficções fundacionais, que “podem ou não estar diretamente envolvidas com o debate político, mas estão sempre em consonância com conceções dominantes da identidade nacional” (cf. Xavier, 2004, pp. 351–355, 2012, p. 30). Assim, a produção fílmica cumpre uma função similar à das feiras mundiais, através da sua exibição de valores nacionais específicos e históricos96, de um nacionalismo

exacerbado, mas também de grande sofisticação tecnológica: “o cinema tornou-se um índice de modernização e poder; assim, os diferentes países olhavam para o esforço de aperfeiçoamento do seu cinema como estratégia privilegiada de afirmação nacional e, em certos momentos, de celebração da hegemonia” (Xavier, 2004, p. 352).

No entanto, o cinema moderno e contemporâneo trabalha a partir de um novo paradigma de descontinuidades e fragmentação da modernidade. Neste novo modelo e visão de mundo, a alegoria nacional no cinema pode também ter um papel a desempenhar, sobretudo de um ponto de vista crítico, pondo em causa a situação política, cujos mecanismos de atuação ainda são nacionais. Este novo modelo só é possível porque, precisamente, o conceito de nação tem sido fortemente questionado na sua perenidade histórica e totalizante. Nesse sentido, Xavier (2004, p. 350) propõe que certos filmes de estratégias alegóricas façam uma relação entre a nação e os sujeitos sociais, isto é, “uma perceção geral da nação é crucial para uma tematização não apenas de assuntos claramente

95 Os exemplos paradigmáticos são Cabiria (1914, Itália, Giovanni Pastrone); Intolerância (1916, Estados Unidos da América, D.W. Griffith); Napoleão (1927, França, Abel Gance); Metropolis (1926, Alemanha, Fritz Lang); e Outubro (1928, União Soviética, Sergei M. Eisenstein). Neste contexto, Ismail Xavier designa-os como “filmes-catedrais”. Este tipo de filmes “envolve não apenas diferentes conceções de história e nação na forma de afirmação política com conotações religiosas, mas também uma procura de diferentes inovações estéticas que esbateram as fronteiras entre espetáculo visual e uma arquitetura de escala monumental. [Estes filmes] (...) apresentam uma combinação de ambição estética, compromisso político e celebração de valores nacionais. Estas são obras singulares na história do cinema por causa do seu excesso estilístico, sintetizado