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Concretização de acordo com a realidade brasileira

4.1. O PAPEL DOS JUÍZES PARA A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS

4.2.2. Eficácia das normas programáticas de direitos sociais

4.2.2.2. Concretização de acordo com a realidade brasileira

Na segunda parte deste trabalho, foi visto que a aplicação do Direito, atividade posterior à interpretação, é um processo de criação de normas individuais. Partindo do conhecimento do objeto interpretado, o operador jurídico retira das múltiplas interpretações possíveis da norma a mais adequada para a solução do caso concreto.

Verificou-se também que a interpretação constitucional se diferencia da interpretação das demais normas jurídicas em muitos aspectos, em razão da hierarquia e da necessidade de legitimidade da Constituição, da variabilidade e aplicabilidade de suas normas, bem como de suas peculiaridades semânticas.

O aspecto principal, porém, do processo de interpretação e aplicação das normas constitucionais é o seu elemento político, que é de maior intensidade que as demais normas do ordenamento jurídico. Ao se reconhecer uma carga política de maior intensidade na Constituição, conseqüentemente, os métodos utilizados para se interpretar as normas constitucionais devem ser diferenciados dos métodos de conhecimento das normas infraconstitucionais,350 porquanto “o erro do jurista puro ao interpretar a norma

constitucional é querer exatamente desmembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade política fundamental”351.

Rememoradas essas considerações, já estudadas na segunda parte desta obra, tem-se que a interpretação/aplicação das normas constitucionais não pode prescindir da análise da realidade concreta. Aqui entra em voga os métodos pós- positivistas, atentos mais a concretização material da Constituição do que ao positivismo formalista e técnico.

A interpretação constitucional é um processo de concretização e visa a uma tomada de decisão no caso concreto. Assim, “aquilo que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob inclusão da ‘realidade’ a ser ordenada”352.

350 BONAVIDES, op. cit., p. 420. 351 Ibidem, p. 420.

352 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís

Não se pode transpor, portanto, sem as devidas adaptações, o pensamento de Canotilho353, próprios da sociedade portuguesa, para a realidade brasileira.

Portugal, atualmente, é um Estado inserido no Mercado Comum Europeu, cujo estágio de integração é bem diferente do Mercosul, no qual o Brasil encontra-se inserida. Além disso, o estágio de desenvolvimento do Estado português é muitas vezes superior do da Revolução de 1976, cuja Constituição foi originariamente elaborada sob a inspiração de um movimento revolucionário, que recebeu uma base teórica da concepção inicial de Canotilho sobre a Constituição dirigente.

Neste contexto é que se explica a própria mudança de concepção de Canotilho. A derrocada do dirigismo constitucional diz respeito exatamente à sua desilução diante da existência de fórmulas que, por mais que exprimissem o espírito revolucionário no momento constituinte de 1976, estabeleciam promessas utópicas de felicidade que, por serem inalcançáveis, serviriam apenas para o descrédito da Constituição.

Uma vez superada a quadra histórica da revolução e consolidadas as instituições democráticas, não caberia mais a positivação, em sede constitucional, de um normativismo revolucionário que atribuísse ao Estado toda a responsabilidade pela condução da vida social. Na verdade, esse normativismo revolucionário que se adequava a um momento de instabilidade já não seria mais conveniente para uma nova circunstância de harmonia institucional.

Muito embora a Constituição brasileira de 1988 não tenha apresentado o mesmo vezo socializante da portuguesa, o fato é que ambas foram elaboradas em circunstâncias similares de redemocratização e superação de regimes autoritários.

Mesmo com essa ausência de impulso revolucionário, a tese inicial de Canotilho sobre a Constituição dirigente alcançou um notável prestígio entre os doutrinadores brasileiros, o que em parte pode ser explicada pelas mesmas circunstâncias políticas e históricas em que se encontravam ambos os países. A questão que se põe agora é a seguinte: é o constitucionalismo moralmente reflexivo aplicável à moderna circunstância social, econômica e política brasileira?

A primeira observação que se impõe é a seguinte: não existe na Carta Magna brasileira o mesmo impulso revolucionário da lusitana, elaborada em 1976.

Daí que é totalmente insubsistente a preocupação do doutrinador sobre o fato do dirigismo constitucional ser entendido como normativismo revolucionário capaz de, só por sir, operar transformações emancipatórias. É que, no Brasil, a Constituição se limitou a instituir um Estado voltado para a redução das desigualdades e para a promoção da justiça social (artigos 30 e 170 da CF), não tendo jamais a pretensão de realizar um movimento

revolucionário.

Uma segunda constatação diz respeito ao atual distanciamento social, econômico e político entre Portugal e Brasil. O Estado brasileiro é um país de modernidade tardia onde, além da péssima distribuição de riqueza, existem inaceitáveis padrões de desenvolvimento social. A fome ainda é uma das principais causas de morte; o percentual da população brasileira abaixo da linha de pobreza é estarrecedor; alfabetização ainda é um sonho distante em muitos lugares do país. Enfim, a promessa de instituição de um Estado voltado para a redução das desigualdades e para a promoção da justiça social nunca saiu do papel.

Assim, é totalmente inadmissível abrir mão de um programa de justiça social no Brasil, posto que neste o Estado ainda é o principal ator para a condução de um projeto de transformação social. Falar em constitucionalismo moralmente reflexivo, onde o Estado dividiria com outros agentes as responsabilidades sociais, é totalmente inaceitável, salvo se, no caso brasileiro, estes outros agentes é quem atuassem de forma subsidiária. Entender o contrário significaria, além do retorno ao tempo das Constituições- garantia (onde o Estado era visto como um inimigo a ser controlado), uma temeridade posto que é, no mínimo ingênuo, acreditar que a sociedade civil assumirá com vantagens as atribuições que o Estado já não vem honrando adequadamente.

É nessa ordem de idéias que Streck defende a adoção de uma teoria da Constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia, como o Brasil, na qual se apontaria o conteúdo programático dirigente mínimo a constar da Constituição, assim como os respectivos mecanismos de acesso à jurisdição constitucional e de participação democrática354 .

354 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004,

Para ele, o procedimentalismo355 somente seria aplicável nos países onde os principais problemas de exclusão social e dos direitos fundamentais tenham sido resolvidos, ou seja, onde já se verifique a emancipação social e a plena autonomia dos indivíduos. Em suma, onde haja uma autêntica democracia substantiva356.

Ocorre que a realidade brasileira é diametralmente oposta a dos países desenvolvidos, tendo em vista que existe no país um vergonhoso quadro de desigualdades sociais e o próprio princípio democrático é de aplicação oblíqua vez que o sistema eleitoral brasileiro é falho, com uma predominância de uma estranha “troca de favores”357.

Assim, ainda que não seja possível a adoção no Brasil de uma postura completamente substancialista, para Streck é indispensável empunhar a bandeira da Constituição como repositório dos valores fundamentais da sociedade e, mais dos que isso, como base para o estabelecimento de uma ordem social voltada para a promoção de um conteúdo material de vida e para realização da modernidade que busque a implementação da igualdade material entre os indivíduos358.

A Constituição dirigente ainda é o arcabouço normativo necessário para o desenvolvimento de um projeto de combate à pobreza e desigualdade, mediante esquemas de socialidade.359

No Brasil, onde o Estado ainda exerce uma posição nuclear no desenvolvimento da sociedade, não é admissível, por enquanto, que lhe seja retirada a centralidade do processo de evolução social. Logo, o Poder Público deve manter-se na realização de tarefas e da promoção de fins, razão pela qual o agente político precisa estar vinculado negativa e, sobretudo, positivamente na consecução de seu mister.

E é precisamente este o propósito da Constituição dirigente: eleger parâmetros de vinculação material para os detentores do poder político não apenas para

355 Movimento que sustenta, em linhas gerais, que a Constituição não deve assumir a tarefa impossível de

propor a cristalizar valores supostamente caros ao Estado e à sociedade, cabendo-lhe apenas disciplinar o procedimento democrático, sob pena de impedir uma geração de autogovernar-se segundo as decisões da maioria, submetendo-se às gerações anteriores. Ao contrário, o movimento do substancialismo propõe, em linhas gerais, a prevalência das Constituições sobre as maiorias eventuais, defendendo a existência de valores constitucionais substantivos e do seu papel de vetor hermenêutico do Direito infraconstitucional.

356 Ibidem, p. 173. 357 Ibidem, p. 189-190. 358 Ibidem, p. 325. 359 Ibidem, p. 131-132.

vedar-lhes certas condutas, como também para obrigá-los a cumprir tarefas e direcionar suas ações para alcançar finalidades determinadas.

Não há, pois, como sustentar a tese do constitucionalismo moralmente reflexivo para o caso brasileiro. A interpretação/aplicação de uma norma é um processo de concretização, onde a realidade sociológica não pode deixar de ser considerada.

E essa realidade no Brasil aponta atualmente, via de regra, para a necessidade de vinculação de todos os poderes à implementação, na medida do possível e de acordo com o caso concreto, dos direitos sociais consignados nas normas programáticas.

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