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4.1. O PAPEL DOS JUÍZES PARA A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS

4.2.2. Eficácia das normas programáticas de direitos sociais

4.2.2.1. O pensamento de Canotilho

Inicialmente, em seu livro Constituição dirigente e vinculação do legislador, Canotilho defende a idéia de que as normas programáticas estão longe de configurar “simples programas, proclamações, exortações morais, declamações, sentenças políticas, aforismos políticos, promessas, determinações programáticas, programas futuros, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade”338. A inclusão dessas normas na

336 GRAU, Eros Roberto. A Constituição brasileira e as normas programáticas, Revista de Direito

Constitucional e Ciência Política, n. 4, Rio de Janeiro, Forense, p. 42.

337 Ibidem, p. 43.

338 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra:

Constituição acentua que a vontade dos órgãos encarregados de realização dos programas constitucionais é um elemento condicionante de sua força normativa339.

Assim, há uma vinculação do legislador com os preceitos estabelecidos pela Constituição posto que o legislador

está normativo-constitucionalmente obrigado a <<cumprir>> ou a <<realizar>> os preceitos constitucionais que careçam de concretização legislativa, sendo importante debater-se o meio de evitar que ele protele essas tarefas para as <<calendas gregas>>”340.

Contudo, essa vinculação não se opera nos mesmos moldes em que ocorre a do administrador à lei. Vale dizer: “a liberdade de conformação do legislador, não é o correlato, a nível legislativo, do poder discricionário, a nível administrativo”341.

Disso se depreende que a visão de Canotilho é de que o legislador está vinculado juridicamente à Constituição e, por conseguinte, aos seus programas, restando a ele obedecer aos fins expressos na Carta Magna sem padecer do vício da discricionariedade.

No entender do mencionado doutrinador, portanto, as normas programáticas produzem efeitos jurídicos de caráter impositivo, ou seja:

Às ‘normas programáticas’ é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder público (Crisafulli). Mais do que isso, a eventual mediação concretizadora, não significa que este tipo de norma careça de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela interpositio do legislador; é a positividade das normas-fins e normas-tarefas (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes. (...)

Em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às normas programáticas, deve considerar-se ultrapassada a oposição estabelecida por alguma doutrina entre ‘norma jurídica actual’ e ‘norma programática’ (aktuelle

339 Ibidem, p. 298. 340 Ibidem, p. 256. 341 Ibidem, p. 63.

RechtsnormProgrammsatz): todas as normas são actuais, isto é, têm força normativa independente do acto de transformação legislativa.342

Como se vê, a posição inicial de Canotilho em relação às normas programáticas é bastante clara: não existe distinção entre normas programáticas e normas atuais, posto que todas as normas constitucionais têm força normativa independentemente de qualquer ato do legislativo. E mais: todos os órgãos concretizadores (Legislativo, Executivo e Judiciário) estão vinculados positivamente no sentido de concretizar estes tipos de normas.

Posteriormente, quase quinze anos depois, Canotilho reviu os seus conceitos, demonstrando o seu novo entendimento no ensaio Rever ou romper com a Constituição Dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo, obra que veio a ser incorporada à segunda edição de Constituição dirigente e vinculação do legislador, em seu Prefácio.

O autor lusitano passa a ver na vontade transformadora da Constituição dirigente um elemento utópico e arrogante, vez que a pretensão voluntarista de regular domínios que lhe são estranhos acabaria por abrir caminho para a ditadura partidária e para a coerção moral e psicológica. Além disso, ignoraria outras formas de direção política alheias ao Estado, como as formas de delegação/descentralização da regulação, os modelos neocorporativos e os de autodireção social, ante os quais o Estado retornaria ao seu papel subsidiário, de mero garantidor343.

Haveria, assim, um equívoco em tentar promover, de forma irreal, uma folha de papel em um instrumento dirigente da sociedade, vez que, ainda que a previsão constitucional de fins e tarefas do Estado seja um elemento idôneo a conferir-lhe maior legitimidade, seria um exagero tentar esgotar todas as tarefas estatais no texto constitucional, bem como não seria adequado sujeitar ao monopólio estatal o desempenho de todas as tarefas públicas344.

Além disso, pecaria a Constituição dirigente na extensão acrítica da aplicabilidade imediata, própria dos direitos fundamentais da liberdade, aos direitos

342 Ibidem, p. 183.

343 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra:

Coimbra Editora, 1994, Prefácio, p. IX-XI.

fundamentais sociais, em geral dependentes da ação do legislador para alcançar a plenitude dos seus efeitos345.

Entretanto, alerta para o fato de que permanece indispensável à Constituição a previsão dos direitos e liberdades mínimos, de modo a que estejam presentes as condições elementares para o exercício da cidadania pessoal, política e econômica, a ser mantida, por sua vez, a salvo das maiorias parlamentares346.

Em relação aos direitos sociais, Canotilho continua a afirmar que a sua positivação é uma exigência ética e jurídica para o livre desenvolvimento da personalidade e para a proteção da dignidade humana, desde que não se atire o Estado à ingovernabilidade com a consagração, sob a forma de direitos fundamentais, de matérias que, na verdade, devam estar sujeitas às políticas públicas e, assim, ao jogo político347.

O Estado, pois, não poderia assumir uma posição totalizante e planificadora global, porquanto o constitucionalismo moralmente reflexivo demandaria a constitucionalização da responsabilidade social (onde o Estado dividiria com outros agentes a realização de políticas públicas, passando a atuar de forma subsidiária), a prevalência da diversidade sobre o autoritarismo e do contrato sobre a lei, para que haja o fim das desigualdades e para a tolerância e diálogo entre as culturas. Somente desta maneira, seria ainda admissível a materialização da política com fundamento em normas programáticas348.

Por último, defende ele a idéia de que a Constituição dirigente, como estatuto jurídico do político, desconsideraria a auto-referenciabilidade e a auto-organização de vários sistemas sociais e a própria rebeldia do político a uma conformação autoritária, para concluir que, caso o dirigismo constitucional seja entendido como normativismo revolucionário capaz de, só por sir, operar transformações emancipatórias, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta, assim como também estará fadada ao fracasso se não considerar os processos de abertura do direito constitucional aos direitos internacional e aos direitos supranacionais, pois numa época de múltiplas cidadanias seria prejudicial aos próprios cidadãos o fecho da Constituição349.

345 Ibidem, Prefácio, p. XV-XVI. Nesse sentido, o §1° do art. 5° da Constituição brasileira de 1988, à luz das

novas idéias do autor, consagra posição insustentável.

346 Ibidem, Prefácio, p. XX. 347 Ibidem, Prefácio, p. XXI. 348 Ibidem, Prefácio, p. XXII-XXIII. 349 Ibidem, Prefácio, p. XXIII-XXX.

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