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Toda a diferenciação anterior entre potência congênita (não-racional) e adquirida (racional) é desenvolvida com o propósito de dar continuidade à análise da potência para produzir os contrários. No entanto, tal divisão só é verificável nos seres animados - exclusivamente nos racionais – e para incrementar a análise da potência para os contrários, Aristóteles resolve retomar a distinção potência racional/não-racional incluindo novamente toda a realidade, e não mais se restringindo à perspectiva do ser humano. Para isso, ele recapitula a análise do potente100 (dunato\n) visando a considerar melhor as condições, as implicações e os limites para a atualização do potente: “Visto que o potente tem potência

para algo (ti\) e em algum tempo (pote/) e de algum modo (pw\j), com todas as demais

determinações que necessariamente entram na definição”.101 A fim de tratar das condições necessárias para que o dunato\n se atualize, para que se efetive conforme sua definição (diorismo/j), Aristóteles passa a explorar alguns fatores referentes tanto às potências racionais quanto às não-racionais. Os fatores selecionados, determinantes de sua definição, são (a) as particularidades do ser em questão, (b) o modo como o ser promove ou sofre a transformação e (c) o tempo em que tudo isso ocorre.

O primeiro fator considerado são as particularidades deste algo (ti\\) que é dito ser

potente. Tais determinações, ou particularidades, envolvidas devem ser consideradas a partir do pressuposto aristotélico de que há potência sempre de algo determinado, ou seja, a potência não é mera potência de qualquer coisa; não há potência simplesmente, assim como também não há só movimento, mas o movimento é de algo para algo. Esse algo que é movimentado ou que é potente possui propriedades específicas tais como aquelas representadas nas categorias (qualidade, quantidade, etc.). Relembrando o exemplo do óleo

100 Cf., Θ1, 1046a 5-19 e D12, 1019a 15-1020a 5.

101 e)peiì de\ to\ dunato\n tiì dunato\n kaiì pote\ kaiì pwÜj kaiì oÀsa aÃlla a)na/gkh proseiÍnai e)n t%½ diorism%½.

(Θ1, 1046a 24-26) pode-se verificar a importância dessas propriedades de cada ser: o material recomendado para servir de combustível na fabricação de uma tocha que servirá para iluminar um ambiente não pode ser a água, porque esta não possui as propriedades necessárias para se dar a queima; mas o óleo sim é o material que tem poder para queimar.

O segundo fator relevante é modo (pw\j) como algo se torna outro. A análise da maneira ou modo como ocorre a transformação é importante para afastar aquelas interpretações que costumam privilegiar o casualismo. O modo determinado para o potente significa que a maneira como algo se torna outro não é aleatória, não acontece ao acaso nem tão pouco de modo absoluto, porque não acontece em toda e qualquer situação.

O último fator é o tempo porque toda potência se dá em algum tempo (pote/). Embora esse tempo assinalado aqui por Aristóteles não seja uma especificação exata do momento em que ocorre a transformação (o movimento), ele serve para demarcar uma ordem de sucessão em que se dão as potências. Esse caráter mais geral do tempo e sua importância enquanto fator determinante podem ser melhor evidenciados a partir de sua definição exposta na Física: “É evidente, então, que o tempo é número de um movimento

conforme o antes e depois, e é contínuo, porque é número de algo contínuo”.102 Tudo o que está em movimento é passível de ser numerado, ou seja, de ser temporalizado.103 Tal movimento é classificado numa certa ordem: primeiro ocorre um movimento, depois outro e outro. Sendo a potência um princípio de movimento, então há uma ordem que deve ser respeitada na sucessão da potência; não é em qualquer momento que alguma coisa se torna outra: primeiro se dá uma potência, depois outra e outra e assim sucessivamente. Uma semente, por exemplo, tem a potência para ser uma árvore, porém não a tem em qualquer tempo, mas somente após uma sucessão temporal. Convém ressaltar também que somente as coisas em movimento é que estão submetidas ao tempo, portanto, aos seres imóveis, tais como o Primeiro motor e os números, não lhes são atribuídos tempo algum.

102 oÀti me\n toi¿nun o( xro/noj a)riqmo/j e)stin kinh/sewj kata\ to\ pro/teron kaiì uÀsteron, kaiì sunexh/j

sunexou=j ga/rŸ, fanero/n. Física, IV, 220a 24-25. O tempo também é dito de muitos modos, bem como expresso por termos diferentes. Na definição acima o termo usado é xro/noj, porém, para efeito da presente análise, utilizamos pote/ e xro/noj como sinônimos sem considerar suas diferenças específicas. Para uma análise detalhada desse assunto, confira: Puente, F.R. Os sentidos do tempo em Aristóteles. Loyola, São Paulo, 2001.

103 “Esse número com que numeramos o movimento é precisamente o tempo.” Puente, F.R. Os sentidos do tempo em Aristóteles, p. 62.

Estas são as condições que devem ser respeitadas para a avaliação da atualização do potente, aplicáveis tanto às potências racionais quanto às não-racionais. A sentença a seguir apenas relembra a distribuição dessas potências, tendo sempre o lo/goj como fator determinante: “e algumas coisas podem mover segundo a razão e suas potências são

racionais, enquanto outras são não-racionais e também suas potências são não-racionais, e aquelas estão necessariamente no ser animado, enquanto que estas podem estar em ambos”.104 As potências racionais podem mover ou ser movidas segundo o lo/goj e, por isso, pertencem necessariamente aos seres animados, não a todos, mas exclusivamente ao homem que tem em comum com os outros seres animados (cão, cavalo) as potências não- racionais típicas das funções nutritiva e sensitiva da alma. Por outro lado, os seres inanimados só possuem potência não-racional.

Essa revisão tem como propósito principal introduzir uma peculiaridade muito relevante entre as condições necessárias para a atualização dessas diferentes potências, ressaltando a maior complexidade para as potências racionais visto que elas envolvem outros elementos em sua constituição. A sentença abaixo destaca, novamente como fator diferenciador, a potência para os contrários:

estas últimas potências [não-racionais], quando o agente e o paciente se aproximam nas condições requeridas, fazem ou padecem necessariamente, enquanto que aquelas não necessariamente. Pois todas estas limitam sua atividade a um só objeto, enquanto que aquelas o estendem aos contrários, de modo que produzirão ao mesmo tempo efeitos contrários, porém isto é impossível.105

A atualização das potências não-racionais fica assegurada a partir da observância de algumas condições básicas, tais como material adequado e proximidade entre agente e paciente. Quando aquele que age está próximo o suficiente daquele que padece, o primeiro (o fogo) age necessariamente, como também o segundo (a madeira) padece (será queimada) necessariamente. Tomando o exemplo do fogo como agente do movimento e a madeira como paciente tem-se que: “o fogo tem potência de queimar (e junto com ela de iluminar e

de aquecer); não, porém, em qualquer momento e condição, mas só quando esteja próximo

104 kaiì ta\ me\n kata\ lo/gon du/natai kineiÍn kaiì ai¸ duna/meij au)tw½n meta\ lo/gou, ta\ de\ aÃloga kaiì ai¸

duna/meij aÃlogoi, ka)kei¿naj me\n a)na/gkh e)n e)myu/x% eiånai tau/taj de\ e)n a)mfoiÍn. Θ5, 1048a 2-5.

105 ta\j me\n toiau/taj duna/meij a)na/gkh, oÀtan w¨j du/nantai to\ poihtiko\n kaiì to\ paqhtiko\n plhsia/zwsi, to\

me\n poieiÍn to\ de\ pa/sxein, e)kei¿naj d' ou)k a)na/gkh: auÂtai me\n ga\r pa=sai mi¿a e(no\j poihtikh/, e)keiÍnai de\ tw½n e)nanti¿wn, wÐste aÀma poih/sei ta\ e)nanti¿a: tou=to de\ a)du/naton. Θ5, 1048 a 5-10.

do objeto e o objeto seja de modo a receber a ação do fogo, e todas as circunstâncias sejam favoráveis ao caso”.106 Como as potências não-racionais são capazes de produzir um

só efeito entre os contrários, apenas as condições mínimas já são suficientes para a efetivação das potências, não acarretando qualquer absurdo.

Entretanto, visto que as potências racionais são as únicas que podem produzir contrários, caso as condições mínimas (material propício e aproximação satisfatória) sejam suficientes para que um atue enquanto o outro padece, então, em algum momento os efeitos contrários poderiam estar simultaneamente no mesmo objeto devido à atividade do agente. Para Aristóteles essa hipótese é um absurdo, é simplesmente impossível (a)du/naton), pois como já foi salientado, a potência racional para os contrários nunca ocorre simultaneamente. Então deve haver algum outro princípio capaz de garantir a potência para os contrários sem incidir em contradições.