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Toda ação cujos meios são nitidamente distintos do fim é caracterizada como um movimento. A diferenciação entre ação perfeita e imperfeita pode ser enriquecida com o auxílio da análise do movimento elaborada no livro III da Física, em que Aristóteles apresenta de modo mais explícito uma definição do movimento a partir do par ato/potência:

“O movimento é, pois, o ato (e)ntele/xeia) da potência, quando o estar em ato atua (e)nergv=) não enquanto ao que é em si mesmo, mas enquanto é móvel”.197 Nessa sentença, movimento é considerado como e)ntele/xeia, mais especificamente, como atividade da potência, ou ainda como o colocar a potência em atividade. Parece bem confuso, principalmente depois de ter sido proposta a divisão de sentidos – embora seja apenas uma divisão didática – cujo termo e)ntele/xeia revelaria melhor o atualizar ou atualidade, e e)ne/rgeia o atuar ou atividade. Contudo, isso pode ser esclarecido a partir da caracterização da du/namij enquanto disposição198 ou propensão para algo e, respectivamente, da e)ne/rgeia enquanto exercício dessa disposição.199 Logo, movimento

197

h( de\ tou= duna/mei oÃntoj <e)ntele/xeia>, oÀtan e)ntelexei¿# oÄn e)nergv= ou)x v au)to\ a)ll' v kinhto/n, ki¿nhsi¿j e)stin. Física, III 1, 201ª 29-33.

198 “Cabe entender também o potencial como disposição, in casu, como disposição para chegar a ser uma estátua; energeîn é no corpus o vocábulo usual para indicar o exercício de uma disposição.” Guillermo de Echandía, in: Aristóteles, Física, livro III, p. 179, nota 8.

199 “O verbo energein (‘operar’) é apropriado para o exercício de uma disposição ou capacidade.” Edward

como atividade da potência é o mesmo que colocar a potência em atividade, não enquanto a atividade é plena (atualizada), mas enquanto está em movimento, em processo. Considerando o duplo aspecto do ato - como e)ne/rgeia, enquanto atividade criadora, e como e)ntele/xeia, enquanto acabamento, como atualização -, percebe-se que nessa definição do movimento, Aristóteles acentua o caráter operativo do ato, ou seja, da e)ne/rgeia enquanto atividade, deixando em segundo plano o seu caráter estático, o da e)ntele/xeia.

O exemplo dado, na Física, oferece meios de melhor elucidar esta definição do movimento: “e o ato (e)ne/rgeia) do construível, enquanto construível é o estar em

construção, porque o ato do construível é o estar em construção ou a casa, porém quando a casa existe já, não é construível; o que se constrói é o construível. Esse ato, então, terá que ser o estar em construção; e o estar em construção é um certo movimento”.200 O que define o ser construível é a atividade, é o exercício da construção e não o fato de a construção ter chegado ao seu acabamento, pois isso significaria estar parado. Movimento é a casa apenas enquanto está sendo construída, não enquanto está acabada. É por isso que o movimento se dá somente enquanto a potência é exercida, enquanto é atualizada, caso contrário, o movimento seria identificado com o próprio ato enquanto atualidade, enquanto ato pleno.

No exemplo da construção de uma casa é possível identificar a seguinte relação: os materiais disponíveis para a construção de uma casa (pedras, tijolos, cimento) são uma casa em potência. Essa potência é verificada no exercício da construção, ou seja, na medida em que se está construindo. Esse mesmo processo de construção é um movimento, portanto, uma atividade que é o exercício daquela potência. Finalmente, a casa é a atualização de todo o processo anterior, tanto do exercício da potência como o fim último da atividade, identificada aqui com o movimento.

Note-se como o movimento parece estar no limbo entre potência e ato, não podendo ser qualificado definitivamente como sendo qualquer um dos dois isoladamente. Em outra sentença da Física, o próprio Aristóteles reconhece a dificuldade em promover uma

200

kaiì h( tou= oi¹kodomhtou= e)ne/rgeia, v oi¹kodomhto/n, oi¹kodo/mhsi¿j e)stin hÄ ga\r oi¹kodo/mhsij h( e)ne/rgeia [tou=oi¹kodomhtou=] hÄ h( oi¹ki¿a: a)ll' oÀtan oi¹ki¿a vÅ, ou)ke/t' oi¹kodomhto\n eÃstin: oi¹ kodomeiÍtai de\ to\ oi¹kodomhto/n: a)na/gkh ouÅn oi¹kodo/mh sin th\n e)ne/rgeian eiånaiŸ: h( d' oi¹kodo/mhsij ki¿nhsi¿j tij. Física, III, 201b 9-18.

definição clara do movimento: “O motivo pelo qual se pensa que o movimento é indefinido (a)o/riston) está no fato de que não se pode entendê-lo em sentido absoluto como uma

potência nem como um ato das coisas; (...) E se pensa que o movimento é um certo ato, ainda que imperfeito”.201 Por um lado, Aristóteles afirma que só há movimento enquanto a potência está sendo atualizada, entendendo o movimento como uma atualização (um ato) que em cada momento de sua realização é incompleta e, por isso, é ação imperfeita, é produção. Por outro lado, mesmo a potência sendo definida como princípio de movimento, ela mesma é entendida sempre em conexão com o ato, da qual depende a realização de sua forma. Ao mesmo tempo em que não é plausível negar o movimento, pois é nossa experiência mais imediata, ele mesmo não se deixa ajustar inteiramente nos padrões conceituais elaborados pelo Estagirita.

O movimento é sempre divisível, não tem fim, também não é um isto (to/de ti), algo que seja passível de ser indicado isoladamente, que seja separado das outras coisas, portanto, não tem existência independente dos seres. Enquanto o ato é o próprio existir da coisa, o movimento não existe sem a coisa. Além disso, movimento não é ato propriamente dito, tampouco é potência, mas é algo que está entre um e outro, promovendo uma ligação entre eles e, justamente, essa característica de oscilação e de elemento de ligação subscreve a definição de movimento como sinônimo de ação imperfeita.

Apesar das dificuldades para estabelecer a diferença entre e)ne/rgeia e ki/nhsij, é preciso assumir que o movimento é a atualidade do que é passível de sofrer ou promover movimento por meio da atividade daquele que tem a capacidade para mover ou ser movido. Em suma, movimento é o estar realizando aquilo que está em estado potencial. Mesmo que não seja possível estabelecer uma definição mais detalhada, todos têm, a partir da experiência, uma apreensão imediata do movimento. Desse modo, Aristóteles parece apelar novamente para o processo de apreensão imediata de um conceito, porque o movimento “é

um certo ato, um ato tal como temos dito, difícil de captar, porém admissível”.202 Ao se admitir seu entendimento, de algum modo o movimento é captado, é apreendido.

201 tou= de\ dokeiÍn a)o/riston eiånai th\n ki¿nhsin aiãtion oÀti ouÃte ei¹j du/namin tw½n oÃntwn ouÃte ei¹j e)ne/rgeian

eÃstin qeiÍnai au)th/n: (…) hÀ te ki¿nhsij e)ne/rgeia me\n eiånai¿ tij dokeiÍ, a)telh\j de/. Física, III, 201b 28-32.

202e)ne/rgeian me/n tina eiånai, toiau/thn d' e)ne/rgeian oiàan eiãpamen, xaleph\n me\n i¹deiÍn, e)ndexome/nhn d' eiånai. Física, III, 202a 2-5.

Embora essa sentença seja da Física, também em Q pode-se perceber que, ao aprofundar a análise da relação entre ser e movimento, os conceitos de ato e potência não respondem totalmente às pretensões de Aristóteles, o que ele mesmo deixa transparecer nas entrelinhas. Isso ocorre, por exemplo, no caso do infinito, do vazio e agora também no próprio esquema elaborado para destacar a imanência do fim na ação.