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4 DINÂMICA HABITACIONAL, MERCADO IMOBILIÁRIO E PRODUÇÃO

4.4 Área central tradicional: nova fronteira para a promoção imobiliária?

4.4.1 Condicionantes legais para a ocupação

No sentido de construir uma compreensão da conjuntura atual – que tem propiciado o lançamento de novos empreendimentos residenciais na área central – e diante da potencialidade de atuação imobiliária para a produção de novas espacialidades residenciais que se apresenta na conjuntura atual e da grande diversidade de tempos históricos representados no seu estoque edificado passível de uso residencial, é necessário caracterizar os aspectos físico-espaciais da área central recifense, bem como elencar as normativas urbanísticas e os processos que podem interferir na lógica de funcionamento do seu mercado imobiliário e condicionar o modo de atuação dos diversos agentes que nele operam.

Quando se trata do atual zoneamento urbanístico do Recife (RECIFE, 2008), sobrepõem-se às já mencionadas e ilustradas macrozonas de ambiente natural e de ambiente construído, todo o zoneamento indicativo das possibilidades de atuação construtiva na cidade. Situadas naquela que se denomina a macrozona de ambiente construído estão as Zonas de

Ocupação Restrita (áreas de morro e/ou com condições de ocupação relativamente adversas devido à instabilidade geomorfológica), Zonas de Ocupação Controlada (áreas já consideravelmente densas e/ou onde se pretende restringir um maior adensamento construtivo) e Zonas de Ocupação Moderada (áreas ainda com potencial de adensamento, onde existe maior “liberdade” para a atuação imobiliária) A todo esse zoneamento ainda se sobrepõem as zonas especiais, tais como a Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); as Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH) – subdivididas em setor de preservação rigorosa e setor de preservação ambiental187 (ZEPH–R e ZEPH–A, respectivamente), e e as

Zonas de Dinamização Econômica (ZEDE) de Centro188 e de Eixo189, dentre outras190. São,

portanto, três camadas em nível de detalhamento progressivo, sendo a primeira a camada composta pelas macrozonas; a segunda aquela que se refere às Zonas de Ocupação Restrita, Controlada e Moderada; e a terceira aquela que trata das Zonas Especiais.

Na área central tradicional do Recife, que na maior parte do seu território é considerada uma Zona de Ocupação Moderada no âmbito da Macrozona de Ambiente Construído, existem áreas delimitadas enquanto ZEDE de Centro Principal, ZEIS e ZEPH. Paralelamente, inexiste uma poligonal única de definição de “centro histórico”. Nesse caso, a multiplicidade de sítios históricos reconhecidos e delimitados como ZEPH191 remete a uma condição de espacialidades

históricas fragmentadas e descontínuas do ponto de vista espacial, regidas por uma legislação que limita fortemente as possibilidades de intervenção e alteração dos imóveis. Esses fragmentos de “áreas históricas” permanecem incrustados em uma zona urbana onde são grandes possibilidades de atuação e de transformação do padrão de ocupação.

Nesse contexto, as áreas ocupadas por ZEPH e por ZEIS192 se configuram como zonas

de restrição no que se refere à mudança do padrão morfotipológico das edificações e ao remembramento/desmembramento de terrenos. Assim, enquanto nessas áreas193 são legalmente

limitadas as possibilidades de atuação para a produção de novas espacialidades residenciais por meio da construção de novas edificações, grande parte da RPA1 não está sujeita a restrições

187 Aqui a preservação ambiental diz respeito à preservação do entorno dos sítios histórico, à conservação das condições morfo-tipológicas das edificações do entorno imediato dos sítios histórico com o objetivo de garantir a manutenção de uma ambienência.

188 De Centro Principal, Secundário ou Local 189 De Eixo Principal, Secundário e Local

190 Como a Zona Especial de Aeroporto (ZEA), que não incide sobre a área central do Recife.

191 O somatório dessas áreas de ZEPH corresponde a 327,00 hectares, equivalente a cerca de 21% da superfície da RPA1.

192 O somatório dessas áreas de ZEIS 137,17 hectares, equivalente a cerca de 9% da superfície da RPA1

específicas à mudança do padrão de ocupação194. A sequência gráfica a seguir ilustra a área

central do Recife e a participação territorial relativa da sua porção hídrica e daquela porção territorial que corresponde aos zoneamentos de maior restrição à intervenção – as ZEPH e as ZEIS. Em branco estão as áreas sem zoneamento restritivo específico – que para efeitos dessa compreensão esquemática podem ser denominadas como “área continental normal”.

Figura 36 - Mapa das áreas com restrição à intervenção na área central tradicional do Recife

Tabela 7- Área total da RPA1, áreas e proporção da área continental, das áreas de ZEIS, de ZEPH e da área continental normal.

Área total RPA 1 Superfície hídrica

Superfície

continental Áreas de ZEIS Áreas de ZEPH

Área continental normal

1525,07 358,65 1166,42 137,17 327,00 702,25

100,00% 23,52% 76,48% 8,99% 21,44% 46,05%

Fonte: Dados do shape (PRC, 2014)

A sequência de figuras a seguir pretende ilustrar a fragmentação dos sítios históricos reconhecidos do Recife como um todo e, no que se refere à área central, ressaltar a sobreposição das ZEIS, ZEPH e ZEDE à Macrozona de Ambiente Construído de Ocupação Moderada, assim como a sobreposição de setores de ZEPH à ZEDE. No caso, todas as áreas em tons de cinza (claro e escuro), compostas pela ZAC-Moderada e pela ZEDE, comportam grandes transformações do padrão construtivo. Aquelas em lilás (ZEIS), em vermelho e laranja (ZEPH), ao contrário, são submetidas a restrições de transformação de diversas ordens.

194 Em algumas partes da “área continental normal”, recentemente (Plano Diretor de 2008), elevou-se o coeficiente de aproveitamento do terreno 3 para 5,5, o que significa que uma parte da RPA1 do Recife teve, de 2008 a 2015, o maior coeficiente de aproveitamento de todo o Recife.

Figura 37 - Mapa do Recife e da sua área central com zonas de Proteção do Patrimônio, de Interesse social e de Dinamização Econômica

Fonte: Shapes (PCR,2014). Elaboração própria

A fragmentação das áreas históricas institucionalmente reconhecidas e a inexistência de um “centro histórico” regulamentado se apresentam como singularidades da área central tradicional do Recife195 que permitem a produção de novas edificações, de padrão construtivo

“atual”, imediatamente justapostas a edificações de reconhecido valor histórico-cultural. Alguns casos emblemáticos podem ilustrar como as novas formas de morar tem aportado nessa área central, não só no entorno dos sítios históricos, mas também incrustadas em zonas institucionalmente reconhecidas como áreas de preservação. No Bairro da Boa Vista, por exemplo, ainda reconhecido como o bairro de melhor desempenho habitacional196, é possível

identificar a presença de edificações residenciais produzidas em tempos notadamente diversos,

195 Alguns municípios, seja pelo protagonismo do poder público local, seja pela atuação de organismos nacionais no reconhecimento do patrimônio edificado, apresentam delimitações formais do que seja o “centro histórico”, como é o caso dos municípios de Belém do Pará e de São Luis do Maranhão, objetos de estudo da já citada pesquisa sobre o Mercado Imobiliário em Centros Históricos.

196 Segundo o programa Morar no Centro, 2003, e afirmações no âmbito do primeiro seminário do Patrimônio do Recife promovido pelo DPPC – Departamento de Preservação do Patrimônio Cultural do Recife, ambos órgãos da Prefeitura do Recife.

com tipologias edilícias distintas. Nesse bairro, o edifício Jardins da Boa Vista se situa a 170 metros do limite do Setor de Preservação Ambiental da ZEPH 8 –Boa Vista. Já o edifício Firmino Fernandes se situa incrustado no Setor de Preservação Ambiental dessa mesma ZEPH, que ainda mantém o seu caráter residencial predominante, apesar de dinâmicas diversas que parecem promover a desconstrução da sua habitabilidade.

Figura 38- Sequência gráfica ilustrativa das espacialidades residenciais na área central do Recife

Fonte: Dados do zoneamento do Plano Diretor Recife, 2008, imagens de satélite em captura de tela do Google. Imagens tratadas pela autora.

Hoje, em uma mesma “vizinhança” e a poucos metros de distância, podem existir dois apartamentos com a mesma área construída, sendo que um será em um edifício de uso misto construído na década de 1970, sem vaga de estacionamento, e o outro será um apartamento da década de 2000-2010, em um condomínio club com ampla área de lazer e duas vagas na garagem. É necessário contemplar a possibilidade que, embora situados em relativa condição

Edf. Firmino Fernandes 2009

Jardins da Boa Vista 2009

Mercado da Boa Vista

Mercado da Boa Vista

de contiguidade espacial, tais apartamentos podem estar destinados a consumidores distintos, que as unidades podem ser comercializadas a preços bastante díspares e que, possivelmente, os imóveis podem estar submetidos a lógicas de circulação e consumo peculiares e diferentes entre si.

No que se refere à segmentação de submercados residenciais, em áreas com estoque edificado tão heterogêneo, cabem vários questionamentos. Seriam a tipologia edilícia, a idade e o nível de conservação das edificações fatores determinantes para a segmentação de submercados residenciais? Em suma, estariam os apartamentos novos, do século XXI, em equipados condomínios, submetidos às mesmas lógicas de circulação e consumo dos apartamentos em edifícios com mais de 30 anos de construção ou das casas históricas sem recuos frontais ou laterais? Como se dá a percepção e a valorização dos atributos habitacionais de cada uma dessas tipologias residenciais por parte da demanda?

Por outro lado, diante do mosaico de condicionantes legais que regem a produção do espaço construído nas áreas centrais, cabe questionar se seriam os coeficientes de aproveitamento dos terrenos e as possibilidades de intervenção nos imóveis, em setores mais ou menos restritivos no âmbito das legislações urbanísticas, os limitantes dos submercados residenciais na ótica dos promotores imobiliários. Esses agentes, que são consumidores no âmbito de um mercado fundiário – que adquirem terrenos para neles operacionalizar o processo produtivo e que se convertem, posteriormente, em ofertantes do mercado residencial – podem condicionar as suas escolhas enquanto consumidores a partir dos coeficientes de aproveitamento dos terrenos que componham a oferta.

Do ponto de vista teórico, apenas um terreno que, legalmente, possa abrigar um novo ciclo produtivo para a construção de um edifício de maior densidade construtiva será objeto do interesse imediato dos produtores capitalistas do espaço. Em teoria, os terrenos edificáveis ocupados só podem abrigar um novo ciclo produtivo quando se esgote a vida útil da edificação nele construída (JARAMILLO, 1977). De modo geral, no caso das edificações de reconhecido valor histórico-cultural, a vida útil das edificações é inesgotável já que, enquanto patrimônio coletivo, elas deverão perdurar por tempo indefinido. O início de um novo ciclo produtivo que, via de regra, viabiliza a construção de edificações mais verticalizadas com técnicas construtivas atuais, o que remete a um uso mais intensivo do terreno, geralmente, viabiliza a captura de rendas e lucros por parte dos proprietários fundiários e dos promotores, diferentemente do que acontece no processo de circulação e consumo de imóveis usados muito antigos, quando o preço de produção já está dissipado e os lucros apreendidos dizem respeito apenas aos processos de circulação e consumo da mercadoria, e não mais ao processo produtivo.

Em uma abstração analítica, seria possível afirmar que, aos terrenos de imóveis preservados, é vedada a possibilidade de abrigar novos ciclos produtivos. Os proprietários desses terrenos não se encontrariam em condições, portanto, de participar da dinâmica de produção de novas espacialidades. A limitação imposta a esses terrenos pode levar à percepção, por parte dos seus proprietários, de que a manutenção de uma edificação histórica lhes impõe perdas financeiras197, já que terrenos semelhantes situados em outras localidades poderão ter um

maior coeficiente de aproveitamento.

O modo como os imóveis “consolidados” pouco verticalizados, mais ou menos antigos, participam na dinâmica contemporânea de produção capitalista do espaço pode colocá-los em situações peculiares ante a competitividade de usos do solo. De modo geral, na cidade como um todo, é possível inferir que o uso mais rentável prevalecerá no imóvel. O uso mais rentável, no caso, pode ser desde o uso comercial ou de serviços, em substituição ao uso residencial que estivera instalado ou, em casos extremos de áreas em processo intensivo de desvalorização, a desocupação dos imóveis ou o seu aluguel a preços irrisórios enquanto esses se deterioram, em uma lógica de retenção na expectativa que o cenário mude e que seja possível a sua revalorização futura (gentrificação).

Esse último cenário198 se compõe, segundo Smith (1996), a partir de sucessivas

substituições de ocupação dos imóveis, desde uma condição inicial de moradores-proprietários de renda média ou alta a uma condição de moradores-inquilinos de renda cada vez mais baixa, até que se amplie ao máximo a lacuna de renda e se torne viável a instauração de um processo, orquestrado pelo mercado, de gentrificação. O outro cenário, aquele da substituição do uso residencial por outros usos mais rentáveis199, é componente da mudança da dinâmica urbana de

áreas que tradicionalmente se caracterizaram pela heterogeneidade de usos e que tendem a se tornar cada vez mais monofuncionais.

No caso da área central do Recife, embora seja representativa a proporção de domicílios alugados quando se compara à média recifense, assim como a proporção de domicílios ocupados por apenas 1 ou 2 residentes, não é possível aprofundar a análise de modo a associar a tipologia e o nível de conservação do imóvel habitado ao regime de ocupação de aluguel a

197 De fato, entende-se, ao contrário, que aqueles proprietários de terrenos com alto coeficiente é que se encontram em condição de obter rendas exacerbadas e sobrelucros diante da multiplicidade de condicionantes e coeficientes de ocupação e aproveitamento existentes hoje nas cidades de modo geral, e no Recife em particular. Nesse caso, a definição de um coeficiente único para toda a cidade, e a regulamentação de instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade, tais como a Transferência do Direito de Construir, poderia inserir os terrenos e imóveis históricos em uma lógica de produção capitalista do espaço diferenciada.

198 De aluguel a preços baixos na expectativa de mudança de cenário e de revalorização.

199 Aante a impossibilidade de aportar maiores volumes de capital em um terreno a partir do início de um novo ciclo produtivo.

fim de verificar se esse seria um dos componentes demográficos de um estágio pré- gentrificação. Tampouco foi possível construir uma série histórica de usos do solo que permitisse aferir a substituição do uso residencial por outros usos.

É possível inferir, entretanto, diante da forma como o objeto empírico se apresenta, que a competitividade de usos do solo tem levado (i) à instalação de atividades comerciais e de serviços – mais ou menos nobres – em imóveis que outrora tiveram o uso habitacional, com severas descaracterizações e perda de qualidade arquitetônica dos imóveis, (ii) à deterioração intensiva de imóveis ou à demolições parciais (com manutenção da fachada) ou totais para o seu aproveitamento como estacionamento e (iii) à desocupação parcial e/ou total de imóveis.

As tensões a que podem estar submetidas as edificações representativas de ciclos produtivos precedentes parece ser potencializada diante das grandes possibilidades de atuação imobiliária em algumas partes da área central200 que acirra a dinâmica de competitividade de

usos do solo.